sexta-feira, 31 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Gamela de Versos) 2



Fonte:
Livro enviado pelo autor
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.

Carolina Ramos (A Hora)


Sentiu-se perdido! Encurralado!

Tentou prolongar o túnel, escavando-o com empenho desesperado, Usaria as unhas... usaria os dentes se os tivesse!

A tensão roubava-lhe o fôlego e as derradeiras forças.

Pouco antes, ouvira vozes abafadas. Confabulavam, lá fora. Tramavam-lhe o fim.

— "Com esta, não escapa!" — diziam. A sonda metálica, introduzida no túnel, cada vez mais perto.

A hora se aproximava. Quem não via?! Hora? — Otimismo! — Não teria, quem sabe, um mísero minuto de vida!

E a vida era tão boa... em que hora o reconhecia!

Sentiu revolta interior... amarga e doída! Jamais fizera mal a alguém. Pelo menos, conscientemente. Ambições? — Tão pequenas! — Não invejava. Não criava conflitos... Por quê?! Por que fora cair em tal enrascada?!

Ouvira cochichos... deixara rastros. Isto! Deixara rastros! Idiota! — Deveria ter engolido até os resíduos! Agora... fácil seguir-lhe as pegadas!

Desarmado! Indefeso! Ali estava, absolutamente à mercê do que desse e viesse. E só viria o pior!

Sentia-se um verme nojento. Nojento e impotente... pronto a ser esmagado!

O instinto, animal, de conservação, mais forte quanto maior o perigo, deu base à última arremetida. Impulsionado pelo pavor, atirou-se violentamente contra a parede que o bloqueava.

— Inútil! Algo compacto, frio... duro como aço, lhe truncava os passos. Coisas... coisas, adversas e intransponíveis, decidiam seu destino!

E outra coisa, extremamente ameaçadora, chegava através da sonda maldita. Alguma coisa terrível! — Desagradável, a princípio. Sufocante, depois! Agora, tóxica! Letal!

Sentiu-se flutuante... Com náuseas... As entranhas enovelaram-se. Vomitou... uma, duas vezes... vomitou a alma!

Quis gritar: — Não tinha voz. Debater-se: — Não tinha braços!

Coleou, desesperadamente... lembrando minhoca imunda, no seu túnel de lama.

Sentiu-se viscoso... frio... Estrebuchou... Amoleceu... Morreu!...

Morreu, maldizendo o destino que o fizera nascer cupim.

Cupim indefeso. Débil!,.. Condenado! Cupim impotente, ante a técnica dos homens. Homens-vermes que, através dos tempos, nunca se entenderam, a não ser... para matar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Vinicius de Moraes (Morrer num Bar)


Na morte de Antonio Maria

Aí está, meu Maria... Acabou. Acabou o seu eterno sofrimento e acabou o meu sofrimento por sua causa. Na madrugada de 15 de outubro em que, em frente aos pinheirais destas montanhas queridas, eu me sento à máquina para lhe dar este até-sempre, seu imenso coração, que a vida e a incontinência já haviam uma vez rompido de dentro, como uma flor de sangue, não resistiu mais à sua grande e suicida vocação para morrer.

Acabou, meu Maria. Você pode descansar em sua terra, sem mais amores e sem mais saudades, despojado do fardo de sua carne e bem aconchegado no seu sono. Acabou o desespero com que você tomava conta de tudo o que amava demais: o crescimento harmonioso de seus filhos, o bem-estar de suas mulheres e a terrível sobrevivência de um poeta que foi o seu melhor personagem e o seu maior amigo. Acabou a sua sede, a sua fome, a sua cólera. Acabou a sua dieta. Aqui, parado em frente a estas montanhas onde, há trinta anos atrás, descobri maravilhado que eu tinha uma voz para o canto mais alto da poesia, e para onde, neste mesmo hoje, você deveria chamar porque (dizia o recado) não aguentava mais de saudades - aprendo, sem galicismo e sem espanto, a sua morte. Quando a caseira subiu a alegre ladeirinha que traz ao meu chalé para me chamar ao telefone - eram nove da manhã - eu me vesti rápido dizendo comigo mesmo: "É o Maria!" E ao descer correndo para a pensão fazia planos : " Porei o Maria no quarto de solteiro ao lado, de modo a podermos bater grandes papos e rir muito, como gostamos…" E ainda a caminho fiquei pensando: "Será que Itatiaia não é muito alto para o coração dele?..." Mas você, há uma semana - quando pela primeira e última vez estivemos juntos depois de minha chegada da Europa, numa noitada de alma aberta - me tinha tranquilizado tanto que eu achei melhor não me preocupar. Eu sabia que seu peito ia explodir um dia, meu Maria, pois por mais forte e largo que fosse, a morte era o seu guia.

Outra noite, pelo telefone, ao perguntar eu se você estava cuidando de sua saúde, você me interpelou: "Você tem medo de morrer, Poesia?" "Medo normal, meu Maria", respondi. " Pois olhe: eu não tenho nenhum" retorquiu você sem qualquer bravata na voz. "Só queria que não doesse demais, como na primeira crise. Aquela dor, Poesia, desmoraliza."

Mas como eu descesse - dizia - para atender à sua chamada, e atravessasse o salão da casa-grande, e entrando na cabine ouvisse (como há 14 anos atrás ouvi a voz materna) a voz paternal de meu sogro que me falava, preparando-me: "Você sabe, Antônio Maria está muito mal...": e eu instantaneamente soubesse... - justo como naquela época soube também, quando a voz materna, em sinistras espirais metálicas, me disse do Rio para Los Angeles: "Sabe, meu filho, seu pai está muito mal…", o nosso encontro marcado deu-se numa dimensão nova, entre o mundo e a eternidade: eu aqui; você... onde, meu Maria? - onde?

Ah, que dor! Agora correm-me as lágrimas, e eu choro embaçando a vista do teclado onde escrevo estas palavras que nem sei o que querem dizer…

Há uma semana apenas conversamos tanto, não é, meu Maria? Você ainda não conhecia minha mulher, foi tão carinhoso com ela... Tomamos uma garrafa de Five Stars no Château, depois fomos até o Jirau e terminamos no Bossa Nova. Eu ainda disse: "Você pode estar bebendo e comendo desse jeito?" "Por que, Poesia? Não há de ser nada... Qualquer dia eu vou morrer é assim mesmo, num bar..."

Eu só espero que não tenha doído muito, meu Maria. Que tenha sido como eu sempre desejei que fosse: rápido e sem som. Mas é uma pena enorme. Você tinha prometido à minha mulher, a pedido dela, que recomeçaria hoje, nesta quinta-feira do seu recesso, no seu "Jornal de Antônio Maria" o seu "Romance dos pequenos anúncios", que foi uma de suas melhores invenções jornalísticas e onde eu era personagem cotidiano: você sempre a querer fazer de mim, meu pobre Maria, o herói que eu não sou...

Mas por outro lado, sei lá... Você disse nessa noite, à minha mulher e a mim, que nem podia pensar na ideia de sobreviver às pessoas que mais amava no mundo: sua mãe, seus dois filhos, suas irmãs e este seu poeta. "E Rubem Braga…", acrescentou você depois, brincando com ternura, "Eu não queria estar aí para ler quanta besteira se ia escrever sobre o Braguinha..."

Não irei ao seu enterro, meu Maria. Daria tudo para ter estado ao seu lado na hora, para lhe dar a mão e recolher seu último olhar de desespero, de maldição para esta vida a que você nunca negou nada e o fez sofrer tanto. Daqui a pouco o sino da casa-grande tocará para o almoço. Verei minha mulher descer, triste de eu lhe ter dito (porque ela dorne ainda, meu Maria...) e de me deixar assim sozinho, sentado à máquina de escrever, com a sua morte enorme dentro de mim.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Trova 354 - André R. Rogério


João Líbero (A Gargalhada do Morto)


Antigamente o velório era feito em casa. Punha-se uma mesa na sala (a mesma das refeições!) E o caixão com o defunto em cima. Amarrava-se um pano do queixo até a cabeça, para o defunto manter a boca fechada!

Lembro de um velório que eu fui, que a netinha do morto perguntou: "o vovô tá com dor de dente, mãe?!".

Bom, essa introdução foi pra contar o velório do Adamastor!

Adamastor era técnico na Estação de Transmissão da Light. Ganhava bem e estava próximo da aposentadoria, apesar de ter só 45 anos (começou como aprendiz com 16 anos). Adamastor saia do trabalho e parava  nos botecos pelo caminho bebendo em todos. Ele era o rei da manguaça. Daqueles que ia pra casa no piloto automático. Uma vez, dona Carlota, sua vizinha, ao voltar da igreja, deu com o pinguço dormindo no seu sofá! Naquele tempo não se trancava a casa!

Ele fazia tanto isso, que os vizinhos mais próximos começaram a trancar o portão ao entardecer! Diziam que era a "hora Adamastor"!

Além disso, diziam que era jogador inveterado. Saia duas noites por semana pra jogar baralho e voltava tarde e bêbado. Geralmente perdia dinheiro.

Tinha a mulher, Guilhermina, que todos chamavam de Mina. E tinha um casal de filhos adolescentes. Mina ficava possessa quando ele dizia que tinha perdido no jogo, de novo!

Enfim, um dia Adamastor bateu as botas! No velório, Mina, sentada ao lado do caixão, estava inconsolável, chorava copiosamente. As más línguas diziam que ela esfregou pimenta nos olhos para lacrimejar, e que por dentro estava festejando! Se livrou de um traste, ia receber um seguro de vida muito bom e uma gorda pensão, além da casa que era deles.

Tudo corria dentro do esperado. Até as famosas frases de velório:-

- Coitado, era tão bom!

- Trabalhador!

- Bom pai, ótimo marido!

Mina pensava, nada disso. O filho da mãe era vagabundo, pingaiada, saia do serviço pra beber, mulherengo, morreu bêbado!

Ela soube pelo Cirilo, o melhor amigo dele (outro pinguço), que o encontrou caído na praça e chamou a ambulância e o levou ao pronto socorro, mas, já não puderam fazer nada. Foi infarto fulminante!

Por volta da meia noite, irrompeu na sala, soluçando, aos gritos, a Celina, uma conhecida biscate do bairro!

- Mastô, Mastô, meu lindo, me perdoe, me perdoe, e se jogou em cima do caixão quase o derrubando!

Mina só olhava,  olhos arregalados, e de repente se deu conta do que estava acontecendo,!

Celina, descontrolada gemia:-

- Nunca vou te esquecer meu lindo, você morreu fazendo amor comigo, seu último suspiro foi para mim, nunca vou esquecer isso!

Cirilo, que estava sóbrio, desesperado, puxou Celina de cima morto, mas não foi rápido o suficiente. Mina já pulava em cima da outra, se atracando com ela berrando:

- Sua biscate, vagabunda, era com você que ele andava gastando dinheiro, e eu pensava que perdia no jogo!

A mesa era velha, cambaia, e com o peso do defunto mais o das duas mulheres, cedeu e o caixão caiu! O morto rolou, com as duas mulheres se estapeando em cima dele. Celina abraçada nele e Mina dando porrada nos dois!  Na confusão, o pano que segurava o queixo de Adamastor, se soltou e a boca abriu, dando a impressão que ele estava dando uma gargalhada.

Mina vendo aquilo, começou a socar o rosto do morto:

- Você está rindo do quê, seu desgraçado? Sorte sua que já está morto, senão eu mesma te matava.

Alguém puxou Mina para fora da sala, Cirilo levou Celina embora

Alguém trouxe dois cavaletes, onde puseram o caixão com o morto. Só não conseguiram fechar a boca dele novamente e lá ficou o Adamastor dando sua última gargalhada, até a hora de fechar o caixão!

Fonte:
O Autor

Caldeirão Poético XXII



DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC (1926 – 2017) Sorocaba/SP


Tempo


O tempo apaga um sonho já desfeito
na aridez de uma vida mal traçada,
uma paixão que se evolou do peito
como essência do frasco evaporada.

Tudo finda, como água já passada
que não retorna nunca mais ao leito:
do tempo que se foi não resta nada,
é verbo no pretérito perfeito.

Mas no incontido caminhar dos anos,
paciente, a transportar os desenganos,
ele ameniza o nosso sofrimento.

Lava que esfria e se transforma em rocha,
se algum desgosto ainda nos arrocha,
o tempo é o óleo bom… do esquecimento.

FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

Desistir, Jamais!


Escalava a montanha novamente…
E, alpinista de amor enlouquecido,
chegaria a um lugar desconhecido,
jamais imaginado pela mente.

Eu sentia o infinito a um batente,
e, jamais eu teria desistido!
Mas, por forças humanas, impedido…
- E a chegada tão perto, um pouco à frente.

Um grande sonhador, não fica triste,
de alcançar o ideal, jamais desiste,
quer sempre ir mais à frente, e, se cansado…

Ele tenta vencer o seu limite,
buscando o inalcançável, ele admite,
que se jamais chegar… Terá tentado!

GERSON CESAR SOUZA
São Mateus do Sul/PR

Extremos


Somos assim, estranhamente extremos,
gostos opostos, sonhos discrepantes,
somos canção de acordes dissonantes,
há divergência em tudo o que queremos…

Só defendemos pontos concordantes
até entender que não nos entendemos,
e esclarecendo aquilo que dissemos,
dizemos sempre coisas conflitantes…

Tu, me querendo, dizes que eu não presto,
e ao te querer, sempre de ti reclamo,
mas tu me chamas, disfarçando o gesto,

e entre protestos eu também te chamo,
pois, mesmo amando tudo o que eu detesto,
tu és na vida aquilo que eu mais amo!


JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA
Rodelas/BA, 1920 – 2016, Salvador/BA

O Soneto Moderno


O soneto renasce, e a todo pano,
transita pelos mares da poesia.
é clássico ou moderno, em confraria,
navega ao vento norte ou ao minuano.

É discriminação e puro engano,
dizer que a rima é velha e sem valia.
O belo é sempre belo, na poesia,
na pintura, na música… E que dano

causa o antigo teatro, o enceno, a mímica,
que afaga o espírito e ilumina a química,
do riso alegre, da tranquilidade?

Renascendo o acadêmico soneto,
traz um sentido novo, e, em branco e preto,
tem gosto e aroma de modernidade!

RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895 – 1926

História Antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente…

Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…

SYLVIO VON SÖHSTEN GAMA
Maceió/AL, 1923 – 2013

Abandonei


Abandonei a infância,
ainda cedo,
porque me fiz precoce.

Abandonei a adolescência
na excelência
de seu pleno gozo,
porque ao meu destino quis dar posse.

Abandonei a luta pela vida
quando senti cansaço.
E quanto a esta velhice?
Que é que eu faço?
Se a abandono…
Da vida passo.

Fábulas (Vicente, O Pardal Carente)


Vicente era um pardalzinho muito carente, que queria sua mãe sempre por perto, tomando conta dele. Dona Áurea, a mãe de Vicente não tinha um minuto de sossego, pois ele ficava o dia inteiro pedindo colo. Quando não era atendido, ele começava a suspirar, cada vez mais alto, até fazerem o que ele queria.

Com os amiguinhos na escola era a mesma coisa. Quando ele não era escalado como titular do time de futebol, ele suspirava tanto, que o professor, com pena, acabava colocando-o para jogar como zagueiro. Vicente já estava tão acostumado em conseguir tudo que queria, que ele achava que todos tinham a obrigação de agradá-lo. Mas aos poucos os seus amiguinhos foram se cansando e os suspiros não faziam mais o efeito desejado por Vicente. Ele então passou a tossir, cada vez mais alto, para chamar sempre a atenção para si mesmo. Sua mãe, preocupada com sua tosse, estava sempre inventando xaropes de diversas ervas receitadas pelas amigas e vizinhas. Mas nada fazia efeito. Vicente tossia sempre que alguma coisa não saía conforme ele desejava.

Preocupados com sua tosse, seus pais consultaram vários médicos, que reviraram Vicente do avesso, mas nada encontraram. Até que Dona Áurea resolveu chamar Doutor Iran Raposão, especialista em doenças difíceis.

Doutor Iran logo percebeu as artimanhas de Vicente e preparou um xarope inofensivo à base de mel e agrião. Depois o deu para Vicente dizendo que, caso ele não melhorasse em dois dias, eles teriam que operar para abrir o pulmão e verificar o que estava ocorrendo, pois podia ser algo muito grave. No primeiro dia Vicente tomou o xarope e continuou tossindo, satisfeito por ser o centro das atenções de sua família e de toda a floresta. Mas, ao final do segundo dia, começou a ficar preocupado vendo sua mãe preparar a mala para levar para o hospital. Logo depois Doutor Iran Raposão chegou em sua casa de ambulância dizendo que ele iria primeiro tomar umas injeções e soro em sua asa para depois ir para o hospital para ser logo operado. Vicente então percebeu que tinha ido longe demais e ficou muito arrependido. Parou imediatamente de tossir e prometeu ao médico que nunca mais iria abusar da boa fé da sua família e amiguinhos.

Doutor Iran, satisfeito porque o seu truque tinha dado certo, logo deu alta ao pardalzinho mas o advertiu de que ficaria de olho nele e, na primeira recaída, ele voltaria com a ambulância. Dona Áurea, muito agradecida, comemorou fazendo um enorme bolo de fubá e convidando todos os amiguinhos de Vicente para lanchar.

Fonte:
Universo das Fábulas

terça-feira, 28 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Gamela de Versos) 1

Fonte:
Livro enviado pelo autor
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.

Malba Tahan (A Noiva de Romaiana)

   

Na opulenta cidade de Badu, na Índia, vivia, faz muitos anos, um rico brâmane, chamado Romaiana, que possuía as cinco virtudes desejáveis e era, além disso, destro e valente no manejo dos corcéis de combate.

Três encantadoras donzelas - Nang, Laira e Lamit - requestavam (1) o coração do garboso e gentil Romaiana. Cada uma delas parecia exceder as demais em beleza de formas, lustres de avós e graças de gestos e sorrisos.

Não sabendo o generoso Romaiana qual das três deidades escolher para esposa, procurou um velho sacerdote, chamado Vidharba, que morava na cidade - pediu ao bom guru que lhe indicasse um meio seguro e discreto de averiguar qual das três raparigas seria a mais prendada.

- Aconselho-te um artifício extremamente simples - acudiu o sábio brâmane ao jovem namorado. - Dá a cada uma das jovens um prato de arroz, no meio do qual terás, previamente, ocultado um brilhante, e pede-lhes que te preparem um gostoso manjar.

Depois de aprontar cuidadosamente os três pratos, conforme determinara o sacerdote, Romaiana tomou-o sob as amplas vestes, foi à casa da formosa Nang, e disse-lhe, apresentando-lhe um deles.

- Venho pedir-te, minha querida, que me prepares, tu mesma, com este arroz, um manjar. Virei, dentro de sete dias, saborear a iguaria que fizeres!

Idêntico pedido fez Romaiana, logo depois, a Laira e a Lamit, deixando-lhes os dois pratos restantes.

No dia marcado, ao cair da tarde, foi o moço brâmane, em companhia do judicioso Vidharba, à casa de Nang.

A jovem conseguira, com o alvo cereal que lhe dera Romaiana, um manjar finíssimo e saboroso.

- Como és habilidosa, ó bela Nang! - exclamou o moço, cheio de entusiasmo. - Feliz o mortal que hás de eleger para esposo!

O velho guru disse, porém, baixinho, ao discípulo:

- Esta jovem é, realmente, como disseste, bastante habilidosa, mas não te poderá servir para esposa. É desonesta, e egoísta, pois, tendo encontrado o brilhante no meio do arroz, guardou-o sem nada dizer-te!

E prosseguiu:

- A mulher desonesta e egoísta, conforme li no Hitopadexa (2) - é como o tigre faminto da floresta, que tanto devora um ladrão como um santo!

Romaiana e seu mestre despediram-se de Nang, e dirigiram-se, em seguida, à casa em que morava Laira.
      
Não menos delicioso estava o pudim que esta idealizara. Ao prová-lo, Romaiana ficou maravilhado:

- Não há elogios dignos deste apetitoso prato! Jamais me foi dado saborear iguaria tão fina! Estou encantado.

- Mais encantada estou eu ainda - retorquiu a jovem - pois no meio do arroz achei um valioso brilhante, com o qual mandei fazer, para mim, este lindo anel!
    
E estendendo a mão fina e perfeita, mostrou ao namorado a riquíssima joia que lhe cintilava no dedo esguio e branco.

Mas, sem que Laira o ouvisse, o sacerdote murmurou ao ouvido do jovem brâmane:

- Esta moça é prendada, é honesta, mas tem, a meu ver, um grave defeito: é egoísta! A mulher egoísta - conforme nos ensina o Hitopadexa - é como o pássaro que devora a semente para que ninguém possa aproveitar o fruto!

E rematou, em voz baixa:

- Deixemos esta casa. Vejamos como vai receber-nos a formosa Lamit!

Romaiana seguiu, no mesmo instante, para a casa de sua terceira apaixonada.

Acolheu-o Lamit com grande satisfação, oferecendo-lhes um lauto banquete.

- Que vejo! - exclamou Romaiana. - Pedi-te que me fizesses, apenas, um manjar com a pequena porção de arroz que te dei, e encontro iguarias tão diversas e tão finas que só mesmo na ceia de um príncipe poderiam figurar!

- Pois tudo isso que aí está - retorquiu a jovem - preparei apenas com o arroz que me trouxeste!

- Como foi possível tal milagre?

- Nada mais fácil - explicou Lamit. - Ao examinar e lavar o arroz, achei um brilhante. Se esse brilhante veio com o arroz - pensei - deve contribuir para a preparação dos pratos! E. assim, resolvi empenhar o brilhante. Com o dinheiro obtido comprei vários ingredientes para as demais iguarias que aí estão. Mostrei-os às minhas vizinhas que, encantadas, me pediram lhes ensinasse a tão bem fazê-los. Aquiesci, recebendo, de cada uma, dois thalungs (3) de ouro. Foi com esse dinheiro que consegui retirar o brilhante do penhor!

    E entregando a Romaiana a preciosa gema, disse:

- Aqui está o brilhante! Guarda-o, que ele é teu!

O sábio bramarxi (4), conduzindo o rapaz para o canto da sala, segredou-lhe:

    - Casa, meu filho, une-te hoje mesmo a esta meiga e preciosa menina! Ela é, a meu ver, habilidosa, honesta, boa e econômica!

E concluiu, com firmeza, que os anos e a experiência lhe garantiam:

- A mulher econômica, segundo diz o Hitopadexa, é como a formiga que nunca leva fora de sua vivenda os grãos preciosos de seu celeiro.

Romaiana seguiu, sem hesitar, o conselho do sábio Vidharba, e viveu, muitos anos felizes, sem jamais esquecer os profundos ensinamentos do Hitopadexa:

- "Em verdade, quem não tem, procure adquirir; adquirindo, guarde sem desperdiçar; guardando, aumente convenientemente; aumentando, despenda nos lugares sagrados!"
_______________________________
Notas:
1 - Requestar - 1. Solicitar de modo insistente; requisitar ou suplicar; 2. Almejar ou intencionar as boas graças de alguém; 3. Ação de cortejar ou namorar.

2- Hitopadexa - Livro composto de uma coleção de fábulas, contos morais e apólogos. O Hitopadexa é muito usado na índia para a educação dos meninos.

3- Thalung - Moeda antiga do Sião.

4- Bramarxi - Brâmane dotado de grandes virtudes. Santo da casta bramânica.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

Aurineide Alencar (3º Colar de Trovas)


Organização: Aurineide Alencar - MS

Tema: Primavera

01

A primavera ao chegar,
trazendo perfume e cor,
faz toda a Terra cantar:
“Louvado seja o Senhor!”
MARIINHA MOTA - MG

02    
Louvado seja o Senhor,

para além de qualquer era,   
pois nos faz bem seu calor,  
no inverno ou na primavera
ANTÔNIO CABRAL FILHO - RJ

03
No inverno ou na primavera

seja em qualquer estação,
a felicidade impera
no peito de cada irmão.
ADRIANO BEZERRA – RN

04
No peito de cada irmão

Floresce uma utopia
Brota em nosso coração
Um jardim de fantasia.
GILBERTO CARDOSO  – RN

05
Um jardim de fantasia

cultivo em meu coração,
nasce assim grande alegria
como flor, em minha mão.
AURINEIDE ALENCAR – MS

06
Como flor, em minha mão,

jardim com pétalas mil,
grande fé no coração
E sem pensamento vil.
PROF. ROQUE - RS

07
E sem pensamento vil

olhemos mais para as flores,
pelos jardins do Brasil
no chão, de todas as cores.
ADRIANO BEZERRA – RN

08
No chão de todas as cores

quando chega a primavera,
é lindo vermos as flores
sorrindo pra mais uma era!....
LUIZ CLÁUDIO – RN

09
Sorrindo pra mais uma era,

sempre aguardando o verão,
 junto a uma feliz espera,
que alegra o seu coração.
MADALENA CORDEIRO – ES
                                
10
Que alegra o seu coração

é vê um chão vicejado,
n'uma tão bela estação
separa o seco  e o molhado.   
FRANCISCO QUEIROZ – RN

11
Separa o seco e o molhado,

é rica em seu ministério,
faz cético apaixonado,
distinta em cada hemisfério.
ANTÔNIO DE PÁDUA ELIAS DE SOUZA – MG

12
Distinta em cada hemisfério,

vai por aí minha lira,
segue sem criar mistério,
certa que quem lê delira.
ANTÔNIO CABRAL FILHO – RJ

13
Certo que quem lê delira

e quem vê não desespera.
Abre a janela e respira
o aroma da primavera.
ANTONIO FRANCISCO PEREIRA – MG

14
O aroma da primavera

deixa a terra perfumada,
e o sutil vate assevera
no cantar da passarada!...
LUIZ CLÁUDIO – RN

15
No canto da passarada,

no cheiro da primavera,
recordo a velha morada
voltar para lá, quem dera!
ADRIANO BEZERRA – RN

16
Voltar para lá quem dera!

Cheiro de terra molhada,
sentir de novo quisera
e a vida manifestada!
ANTÔNIO DE PÁDUA ELIAS DE SOUZA – MG

17
E a vida manifestada

Ávida se manifesta,
nos sapos na invernada
pulando e fazendo festa.
GILBERTO CARDOSO – RN

18
Pulando e fazendo festa

em torno de açude cheio,
vendo na nuvem aresta
pra escapar de tempo feio.
PROF. ROQUE – RS

19
Pra escapar de tempo feio

sai espalhando suas flores,
nos jardins, está no meio,
a primavera é só cores.
AURINEIDE ALENCAR – MS

20

A primavera é só cores
de nada tenho receio,
meu país é multicores
pois, canto sem arrodeio!...
LUIZ CLÁUDIO – RN

21
Eu canto sem arrodeio*

os ventos que vêm do mar,
esperando em meu anseio
a primavera ao chegar.
AURINEIDE ALENCAR – MS
_____________________
Nota:
*ARRODEIO: 1. Fazer o caminho mais longo. 2. Dar a volta. 3. Ser prolixo. 4. Percorrer o trajeto em torno de.

Fonte:
Antonio Cabral Filho. Trovadores do Brasil

Carlos Drummond de Andrade (Três Homens na Estrada)


O encarregado do posto de lubrificação, sozinho àquela hora, estranhou os vultos que vinham a pé, na estrada. O sol nascia; apenas alguns caminhões passavam, transbordando de legumes. Os três homens caminhavam sem pressa, no leito da rodovia, indiferentes ao risco. Motoristas jogavam-lhes palavrões, sem que eles se importassem. Estavam vestidos de maneira inabitual, um de vermelho, outro de verde, outro de roxo; as roupas se assemelhavam a túnicas, dessas que o rapaz da lubrificação estava acostumado a apreciar em filmes de Victor Mature e vira uma só vez na vida real, quando passou por ali, rumo a São Paulo, o carro do embaixador da Índia, e uma jovem morena descera para contemplar a paisagem.

Como os estranhos parassem diante do posto, teve vontade de aproximar-se e perguntar o que desejavam. Mas deteve-se. Eram três, ele estava desarmado, não sabia que espécie de gente era aquela.

O mais alto deles ficava ainda mais esguio olhando para o céu, como quem indaga o tempo. Os outros miravam um ponto vago, esperando decerto que ele comunicasse o resultado da inspeção. Não houve palavras, entretanto. O homem comprido, de vermelho, baixou a cabeça e fitou por sua vez os companheiros. Entendiam-se pelo olhar, era evidente. Não careciam de palavras, ou temiam empregá-las. Tratava-se, realmente, de indivíduos suspeitos. Mas a suspeição que irradiavam era de natureza especial. O rapaz do posto — já é tempo de chamá-lo Marcos, pois assim fora batizado e registrado — imaginara no primeiro instante que fossem ladrões. Depois, pela excentricidade dos trajes, supusera-os simplesmente loucos. Agora percebia neles a majestade, ao mesmo tempo gloriosa e simples, de personagens de histórias da infância, no Nordeste, quando Carlos Magno ia com ele morro abaixo, morro acima, e Rolando e d. Pedro I enchiam o ar com o retintim de espadas românticas.

Não sabendo como falar-lhes, nem recebendo deles qualquer pedido, Marcos estendeu-lhes um copo d’água, que um bebeu devagar, embora o rosto fosse sede pura. Os outros dois fizeram o mesmo, sucessivamente. Agradeceram com os olhos, e foram-se.

Ao chegarem os colegas de trabalho, Marcos, pressentindo a importância do encontro, não quis contar-lhes nada. E eles vinham justamente fazendo troça dos tipos encontrados em caminho, que davam dor de cabeça aos motoristas. Nunca se xingara tanto numa estrada do Rio. Pois os três caminhavam para o Rio de Janeiro, sempre consultando o espaço.

O ônibus freou brusco, para não amassá-los. O motorista quis descer justamente para amassá-los, na raça. Entre os passageiros, as definições variavam: eram contratados de casa comercial, em promoção de festas; tinham bebido demais e erravam a esmo; não, são figuras de rancho ensaiando para Carnaval; ou palhaços de circo, descansando. Fugiram do hospício; são doidos mansos; pois sim, experimenta bulir com eles. Desceram do foguete interplanetário, numa praia fluminense. Marcianos? Isso não: uniformes russos,
meu velho.

Marcos trabalhou o dia todo com o pensamento naqueles três homens diferentes que, sem nada falar, lhe insinuaram muitas coisas. Não eram propriamente nobres, se bem que na poeira das vestes se entre-mostrasse nobreza. Em seu entendimento singelo, Marcos apreendia o recolhimento deles, sentia-os empenhados numa busca infatigável e serena, que não se faz por meio de perguntas. Eram ridículos talvez, exatamente porque não tinham qualquer relação com o lugar por onde passavam, não se serviam de nada que hoje em dia se usa para viajar. De onde vinham, por que vinham, o empregado de um posto de gasolina seria incapaz de saber. Mas sabia intuitivamente que levavam consigo uma alta obrigação.

No dia seguinte, Marcos leu no jornal que foram presos na Penha três indivíduos trajados de modo grotesco, ao atravessarem a linha férrea. Pareciam estrangeiros, nada carregavam, nada souberam responder. O delegado solicitara um intérprete da Polícia Técnica, mas não fora atendido porque era meio feriado, com expediente suspenso para que toda gente fosse assistir, no Maracanã, com a presença das autoridades, à festa da recepção simbólica aos Três Reis Magos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Historinhas.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Participe da Coletânea de Poesias da ALIUBI (Prazo: 30 de Junho)


15º. Coletânea de Poesias  “ Poesia Nossa de Cada Dia”  -  Edição 2019

A Associação dos Literatos de Ubiratã  -  ALIUBI, continua em 2019 fazendo o que mais ama, dar continuidade à missão de difundir as artes literárias.

Trinta e um ( 31 ) anos nos palcos da poesia, convida a você, poeta, a participar desta Coletânea, enviando sua(s) poesia(s) via e-mail: aliubinet@hotmail.com ou via correio.

O autor poderá inscrever quantos trabalhos quiser. Obs. Cada página corresponde a uma inscrição.

A taxa de inscrição por página é de R$75,00 ( Setenta  e Cinco Reais ), e o autor terá o direito de utilizar um (1) patrocínio no rodapé de cada página inscrita.

Cada Inscrição dará direito ao autor receber uma cota de dez (10) exemplares da 15ª Coletânea Poesia Nossa de Cada Dia 2019  que será entregue na cerimônia de lançamento que realizar-se-á na cidade de Ubiratã/PR, com local e data a serem definidos e informados aos autores antecipadamente.

Aos que não puderem comparecer no cerimonial, os livros serão despachados via correios com despesas sob responsabilidade do autor. 

As Inscrições encerram-se em 30/06/2019.

Para dirimir qualquer tipo de dúvida, contate aliubinet@hotmail.com

A ficha de inscrição, detalhes do depósito, endereços, etc. podem ser baixados em .doc para preenchimento e envio por email ou pelos correios em:

https://drive.google.com/open?id=1oyP6iSOLzyz3j5aNSN4Xs_vsazA6TCoB

Joacir Zen Ranieri
Presidente da ALIUBI



J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XIII


MAS PARA QUE CONTAR?

Quando passas por mim depressa, indiferente,
e não me dás sequer, um sorriso... um olhar...
- como um vulto qualquer, em meio a tanta gente
que costuma nos ver sem nunca nos notar...

Quando passas assim, distraída, nesse ar
de quem só sabe andar olhando para a frente,
e finges não me ver, e avanças sem voltar
o rosto... e vais seguindo displicentemente...

- eu penso com tristeza em tua hipocrisia...
Ninguém sabe que a tive ao meu amor vencido
e que um dia choraste... e que choraste um dia...

Mas para que contar?... Que sejas sempre assim!
E que ninguém descubra nunca em tua vida
as razões por que passas sem olhar para mim!...

MASCARADOS

Mascarados os dois. Eu, mascarado
na hipocrisia com que levo a vida,
tu, na aparência inútil e fingida
que usas na rua com o maior cuidado ...

Passas por mim e segues ao meu lado
como outra qualquer desconhecida,
- quem há de imaginar nosso passado
e a intimidade entre nós dois perdida ?...

Ninguém... Certo ninguém pensa e adivinha
porque eu não digo e porque tu não dizes
Que eu já fui teu... e que tu foste minha...

Mas, quantas vezes, amargurado penso
em como nos sentimos infelizes
no Carnaval do nosso orgulho imenso !

MENTIRA...
 
Tanta coisa passou...  E, no entanto, vivemos
noutros tempos, felizes, como namorados...
- Nossa vida... ora a vida, era um barco sem remos,
levando-nos ao léu... a sonhar acordados...

Ontem juntos, felizes... hoje, separados,
- (não pensei que este amor chegasse a tais extremos...)
E sorrimos em vão... sorrimos conformados
na mentira cruel de que a tudo esquecemos. . .

Cruzamos nossos passos muita vez: - é a vida!
- eu, volto o rosto (fraco à paixão que ainda sinto),
tu, recalcando o amor, nem me olhas, distraída...

Mentira inútil, cruel... se ontem, tal como agora,
tu sabes que padeço, sabes quanto eu minto,
e eu sei quanto este amor te atormenta e devora !

MEU CALVÁRIO

Ando sempre a seguir-te... a buscar-te distante
como a visão que anseio e os olhos me seduz,
- e espero te encontrar, sentir de perto a luz
do teu olhar feliz em êxtase constante...

Mas tu foges de mim, foges a cada instante,
e eu que a este andar eterno já me predispus,
embora às vezes pare, - sigo logo adiante
sem mesmo perceber que esse amor é uma cruz!

Não sei se hás de ser minha! O teu afastamento
cresce à frente de mim, - no entanto, o imaginário
desejo de alcançar-te ergue o meu desalento...

E, após tanto sofrer, sentir-me-ei consolado,
- se ao cair no caminho... e ao fim do meu Calvário
for morrer sobre a cruz dos braços teus pregado!

MEU CÉU INTERIOR

Se esses teus olhos, no meu livro, imersos,
encontrarem diversas emoções,
- não tentes decifrar... – mil corações
nós os temos num só, todos diversos...

Os meus poemas aqui, vivem dispersos,
como as estrelas... e as constelações...
- no céu das minhas íntimas visões,
no "meu céu interior..." cheio de versos.

Não procures o poeta compreender...
- Os versos que umas coisas nos desnudam,
Outras coisas, ocultam, sem querer...

Uns, são felizes... Outros, ao contrário...
- No rosário da vida, as contas mudam,
e os versos são contas de um rosário!...

MEU CORAÇÃO

Eu tenho um coração - um mísero coitado
ainda vive a sonhar... ainda sabe viver...
- acredita que o mudo é um castelo encantado
e criança vive a rir batendo de prazer...

Eu tenho um coração, - um mísero coitado
que um dia há de por fim, o mundo compreender...
- é um poeta, um sonhador, um pobre esperançado
que habita no meu peito e enche de sons meu ser...

Quando tudo é matéria e é sombra - ele é uma luz...
Ainda crê na ilusão... no amor... na fantasia...
- sabe todos de cor os versos que compus...

Deus pôs-me um coração com certeza enganado:
- e é por isso, talvez, que ainda faço poesia
lembrando um sonhador do século passado!…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Carolina Ramos (O Segredo de Alice)


Se não tivesse dado com a língua nos dentes, ninguém saberia de nada. Culpava-se, socando o peito: — mea culpa... mea culpa!

Mulher é isso mesmo, acaba sempre escorregando no vício da tagarelice. Pior que pisar em sabão!

Guardava o segredo, hermeticamente, há tanto tempo, driblando situações, desviando abelhudos, fugindo a questionamentos que favorecem uma abertura. Evasiva, mas, determinada.

Bastara um momento de descuido e... Bem... "não adianta chorar sobre o leite derramado", é o que ouvira sempre da avó. E as avós sabem o que dizem, que a escola da vida ensina mais que qualquer outra e elas tiveram dias sem conta para decorar as lições.

Lá se fora o segredo, como água entre os dedos!

— Olá, Alice!… Olha, eu soube, um dias destes, pela Renata que...

Era isso… seu segredo, tão bem guardado, já assumira os guizos múltiplos de um autêntico Polichinelo e andava sacudido, por aí, mais do que chocalho em mão de criança!

A humanidade é mesmo assim. Fareja mistério ou segredinho à-toa, e pronto: — não sossega enquanto não traz tudo à tona, sob foco de um holofote, se possível! É por isso que, nem os sarcófagos escapam... os túmulos não são respeitados. As múmias perturbadas em seu sono milenar. E tudo por quê? Porque guardam em si segredos seculares, que fazem cócegas na planta dos pés, nos dedos de multidões bisbilhoteiras, e excitam a curiosidade de sucessivas gerações!

— Oi, Alice... Então é verdade que...

Alice não confirmou... nem negou. Aprendia, aos poucos, segundo as necessidades, a ser enigmática, usando a ambiguidade com habilidade crescente.

Mal contendo a irritação indagou:

— Quem é que lhe disse?

— Bem, o Saulo me disse que a Roberta soube através da amiga de uma amiga… que é sua amiga, também.

O ping-pong da fofocagem em plena função! Uma cortada em regra, desativou o adversário.

— Então, foi assim? Pois não é nada disso! Todo esse mundo de gente, que não tem o que fazer, está muito mal informado. Eu que sou a interessada, não sei nada de nada! Até outro dia …

Perdeu alguns amigos, que se sentiram hostilizados, repelidos ou simplesmente desprestigiados por terem sido os últimos ou penúltimos a saber.

Determinada, Alice fincou pé e colou os lábios. Ninguém, mas, ninguém mesmo, dali para frente, haveria de saber um fiapo a respeito. Cumpriu o que disse! Segredo é segredo!

E se você, leitor amigo, arriscou um olho até o último parágrafo, para ver se pescava alguma coisa, sabe que perdeu tempo, que Alice decidiu a questão nos seguintes termos:

— Sou um cofre. Tranquei-me e perdi a chave.

— Não conto... não conto... não conto. E, ponto final.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Arthur de Azevedo (Chico)


Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.

– Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.

– Estou às suas ordens.

– Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre à espera de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela, nem eu, sabemos quem é.

– Ele chama-se…?

– Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica, em que declarou à Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Já me disseram – e é tudo quanto sei a seu respeito – que esteve empregado na estrada de ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.

O Chico dissimulou uma careta.

– Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?

– Certamente.

– Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem é, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissão com a brevidade possível, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.

O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.

– Está dito?

– Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.

No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.

– Um bêbado! – respondeu prontamente o outro.

– Bêbado?

– Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!

– Mas não se terá corrigido?

– Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança é o Trancoso. – Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.

– Casado?

– Casado, sim!

– Quem é esse Trancoso?

– Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.

– Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?

– Pois não!

No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta do Trancoso.

Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.

Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com “esse bandido”!

– Mas não é ele seu genro?

– Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!

– Eu desejava apenas tomar algumas informações a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para…

– Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazém de pancada, não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!…

Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua. Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas informações, partindo de um homem tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.

Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporções consideráveis, e o Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.

– Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. – exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.

– A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer nada no ar. Trago-lhe informações seguras!

– Boas ou más?

– Péssimas.

O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.

– Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu Pimentel.

– Pois diga! – resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.

Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:

– O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.

– Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora das suas ações.

O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara.

Quando ele acabou o relatório:

– Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! – bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. – E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!

Não houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.

Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!

Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família – e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.

– Maricota apanhou a sorte grande! – diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.

Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.

O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:

– Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas perdoo-te, porque és um desgraçado!

Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.
___________________
Nota:
Serôdio – atrasado, tardio.

domingo, 26 de maio de 2019

Amélia Luz (Pedaço)


Quando a conheci era mesmo cheia de graça. Uma beleza original misturando traços exóticos num corpo perfeito que chamava a atenção de todos. Tão logo chegou à cidadezinha foi trabalhar no bar do Sr. Manoel, um velho português que se estabelecera na rua principal. O bar servia refeições, bebidas, salgados e doces e no fundo mantinha uma escondida casa de jogo.

Assim “Pedaço”, (assim a apelidaram, era mesmo um pedaço de mulher), começou então a conhecer um pouco da vida. Bonita, sorridente, andar provocante em que suas ancas largas se jogavam com elegância chamando a atenção de todos. Acho que na sua ingenuidade nem sabia o poder de sedução que tinha. Sr. Manoel era ranzinza e exigente e também parecia ter ciúmes dela uma vez que se sentia como seu “proprietário”. Na casa dos quase setenta ter ao lado uma mulher daquele porte era coisa rara.

Sempre alegre, saia cantando, servindo a clientela com um especial bom humor que contagiava o ambiente e atraia fregueses, além dos seus dotes culinários que prendiam pelo tempero e pelo paladar dos seus deliciosos quitutes. Com chuva ou sol lá estava ela brincando e fazendo piadas com todos que por ali passavam. Era quase inacreditável ver sempre a brancura do seu belo sorriso iluminado pelo seu olhar brilhante que provocava simpatia. Cantarolando, zombeteira cruzava a cidade fazendo suas piadas conquistando pelo seu poder da comunicação.

Certo dia apareceu no bar um homem de longe. Chamava Zé Carreteiro e dizem que tinha chegado lá das bandas da Bahia. Homem experiente transportava madeira e ficava na cidade hospedando-se na pensão ao lado do Bar do Portuga. A sua vida começou a mudar. Um forte relacionamento surgiu e Pedaço conheceu o amor. Entregou o seu coração ao Zé Carreteiro como também o seu corpo virgem cheio de tanta pureza.

Ele prometera tudo, casamento, casa, cobrindo-a de presentes baratos como perfumes e roupas do velho bazar da esquina. Tudo era novidade. Ela teria, vejam só, um marido. Sairia das rabugices do seu Manoel e iria viver uma vida de dama da sociedade além de viajar na boleia do caminhão e conhecer as estradas que tanta curiosidade lhe despertavam por que os casos do Zé a motivavam a sair mundo afora.

Caiu por amor totalmente apaixonada pelo parrudão do Zé, um baianão bem apresentado que levava todo mundo na conversa. Tinha boa lábia e uma prosa que encantava. Foi assim que ela se entregou. Passou a morar no quartinho da pensão e para acompanhar os carretos deixou o trabalho e saía toda feliz ao lado do Zé para onde o vento a levasse. Que vidão! Nunca pensou que teria tanta sorte.

O tempo foi passando e nada de casamento. Certo dia o Zé foi viajar sozinho. Disse para ela que teria que vazar o sertão da Paraíba e que ela ficasse esperando. Não deixaria de mandar sempre notícias.  Pela madrugada tomou o rumo do Nordeste e partiu não se sabe para que destino. Pedaço ficou esperando. Os dias, as semanas, os meses. Ansiosa vivia de olho no posto de gasolina na esperança de ver o Zé chegar e apear da carreta trazendo de novo a alegria em seus braços. Só que o Zé não mais voltou e o seu coração foi murchando de saudade. Nunca mais sorriu, nem contou as suas pilhérias. Entristeceu de uma dor profunda e adoeceu. A saudade era tanta que Pedaço acabou consolando-se na bebida. O que lhe dava uma falsa coragem para prosseguir. Virava copos e nem podia trabalhar. Embriagada passava pelas ruas desleixada, sem cuidar da sua aparência. Até que foi encontrada no mesmo quartinho onde vivia com Zé, abraçada com o seu retrato. Havia morrido de tristeza, havia morrido de saudade. Deixara para sempre de ser Pedaço!

Fonte:
A Autora

Vinicius de Moraes (Libelo)


De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar - e um barco com o nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar?

E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é pra ele poder se perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um pouco de pensamento pra pensar até se perder no infinito...

- Mas o amigo foi ludibriado, e é preciso por ele lutar!

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra - um pedaço bem verde de terra - e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um modesto pomar; e um jardim - que um jardim é importante - carregado de flor de cheirar?

E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos pra mexer na terra e arranhar uns acordes no violão quando a noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casa sem mistério não vale morar...

- Mas a terra foi escravizada, e é preciso por ela lutar!

De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um amigo bem seco, bem simples, desses que nem precisa falar - basta olhar - um desses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra briga, um amigo de casa e de bar?

E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à vontade ao amigo?

- Mas o amigo foi ludibriado, e é preciso por ele lutar!

De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma mulher com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular? E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de um carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o desatino o carrega em sua onda sem rumo?

Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher - as únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo amigo...

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Ialmar Pio Schneider (A Leitura que Atrai é a que Fica)


Se alguém me perguntar o que estou lendo atualmente, responderia que é um dos livros mais conhecidos e apreciados em todo o mundo depois da Bíblia. E com justa razão: as qualidades e os defeitos do ser humano, como indivíduo e não como peças de uma sociedade fria e desumana, tecem o pano de fundo destas aventuras sensacionais que ninguém se cansa de ler e reler ao longo dos tempos”. Isto li na contracapa deste romance que atravessa décadas e gerações e todos encontram em suas páginas aventuras cinematográficas insuperáveis. Lembro-me que o li na adolescência em texto reduzido e agora o faço em edição de texto integral. Assisti a alguns filmes que fizeram baseados em sua história. Sempre com sucesso. E o lema perdurará – “Todos por um, um por todos.”
 
Sabe-se que os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, pai, eram na realidade quatro com a incorporação do jovem e belo d’Artagnan, que tanto atrai o público feminino e as aventuras de capa-e-espada que empolgam os leitores. Seus nomes serão sempre lembrados: Athos, Porthos, Aramis e d’Artagnan, e quantas pessoas conhece-se com os nomes que os pais escolheram para os seus filhos. Isto prova a força que a literatura criativa e engenhosa exerce sobre o público de todas as idades.

Mas por que me ocorreu escrever a respeito deste famoso romance daquela época romântica da França? Justamente para justificar o título desta crônica despretensiosa. Também por que ouvi professores abordando o tema de leitura em um programa de rádio, em que uma pesquisa acusou que cerca de 60% disseram que leem livros regularmente, 24% o fazem ocasionalmente e 17% simplesmente não.

É possível que a enquete demonstre a realidade, não obstante saiba-se que hoje em dia a leitura de livros para entretenimento só seja realizada por aficionados, uma vez que existem tantos outros canais de diversão, tais como cinemas, TV aberta e a cabo, Internet, etc.

Outrossim, o desemprego que grassa em nossa sociedade leva as pessoas a procurarem se especializar em moderna tecnologia que abrange, com certeza, a Informática. Acontece que não sei até quando isto é válido, uma vez que a leitura sistemática de bons livros de assuntos os mais variados, sempre nos abre novos horizontes e a visão de empreendimentos de sucesso.

Aos que rebatem dizendo que não têm tempo para ler, respondo com a resposta que ouvi de uma psicóloga em programa de TV: “Não é a falta de tempo o problema para não lerem, e sim a falta de prioridade”. Digo mais: é a falta de gostar de ler. E está, mais uma vez, formado o círculo vicioso: não sabe, por que não lê; e não lê porque não sabe.

Espero que me compreendam, ou reflitam. Um dos nossos melhores poetas escreveu: “Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjetiva. De vez em quando passam passos. Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalidade vegetativa de seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois passageiros: leitor e autor.” Augusto Meyer (1902-1970), À Sombra da Estante: “Do Leitor”. – Dicionário Universal de Citações – Paulo Rónai.

Quero acrescentar que o escritor acima citado, foi nosso representante na Academia Brasileira de Letras para a qual foi eleito em 12.05.1960.

(Publicado em 23 de julho de 2003 – no Diário de Canoas)