sábado, 18 de setembro de 2010

Waldemar Pequeno (100 Trovas)


1
Nunca fales com desprezo
de um vaso, por ser grosseiro.
Só Deus sabe se, ao fazê-lo,
não tremeu a mão do oleiro.
2
Muitos mundos visitei,
levado por meu destino.
Mas nunca mais reencontrei
o meu mundo de menino.
3
Não sei, das flores da vida,
as que sejam do teu gosto.
As do meu - ninguém duvida -
são as rosas do teu rosto.
4
Não há fonte neste mundo,
rolando por entre escolhos,
que tenha o choro tão fundo
como a fonte dos meus olhos.
5
Uma rosa, em minha cova,
talvez brote deste amor,
como se fora uma trova
sob o feitio de flor.
6
Em meu tempo de estudante,
se algum mal me acontecia,
não sei como, tão distante,
minha mãe logo sabia.
7
Se à noite as roseiras sonham,
palpitantes e amorosas,
seus galhos, quando amanhece,
estão cobertos de rosas.
8
O jaó que ao longe pia,
pelas quebradas da serra,
reza, à tarde, a Ave-Maria
mais dolorosa da terra.
9
Se o sonho se foi, Maria,
não julgue o mundo medonho:
- depois de um dia, outro dia,
depois de um sonho, outro sonho.
10
Deus faz pouco da riqueza.
Aqui, ali e acolá,
quem quiser ter a certeza
basta olhar a quem a dá.
11
Goza a fortuna inconstante
antes que chegue a hora triste.
A alegria deste instante
amanhã já não existe.
12
Quando passo no caminho
em meu poldro russo-pombo,
muita gente diz baixinho:
- "Tornara que leve um tombo!"
13
Creio haver um ser divino,
mas duvido que haja ateus.
- O homem, que é tão pequenino,
não pode viver sem Deus.
14
Rio acima, as águas fendo,
remando minha canoa.
Vou cansado, vou sofrendo,
mas Deus me ajuda na proa.
15
Mulher é como perfume,
que se evola exposto ao ar:
- quando expõe os seus encantos,
eles deixam de encantar.
16
Negros eram seus cabelos,
os olhos - claros e francos.
Mas, com seus cabelos negros,
pôs os meus cabelos brancos.
17
Seja o rico, seja o pobre,
escolha os duros caminhos,
pois a coroa mais nobre
é uma coroa de espinhos.
18
Nosso Senhor deu-me a viola,
deu-me o que há de mais profundo:
- o canto que me consola
das tristezas deste mundo.
19
Minha mãe, quando nasci,
- doce mãe! - tanto rezou,
que é por pena que hoje finjo
ser feliz quando não sou.
20
Bem perto havia uma fonte
na terra em que ao mundo vim.
A água descia do monte:
chorando, meu Deus, por mim.
21
Pelas terras em que andei,
entre o belo, o puro e o vil,
nada no mundo encontrei
como o sorriso infantil.
22
Do melhor pinho foi feito
o instrumento que dedilho,
apertado junto ao peito
como se fosse meu filho.
23
Hoje vi quando uma abelha
pousava, tonta de amor,
em tua boca vermelha,
pensando ser uma flor.
24
Ó minha velha tristeza,
minha doce companhia!
Se algum dia me faltasses,
que tristeza eu sentiria.
25
Voam pelo ar as palavras,
leva-as para longe o vento.
- Mas, se as palavras se perdem,
não se perde o pensamento.
26
Quem me dera, solitário,
habitar naquele morro,
apenas com meu canário,
meu cavalo e meu cachorro.
27
Só vi que havia alcançado
tudo o que no mundo eu quis,
quando já tinha passado
o tempo de ser feliz.
28
O lírio o que tem é a fama
da parábola divina.
Vale mais para quem ama
uma rosa pequenina.
29
Não castigues teu filhinho!
Olha, ele erra sem saber:
- quer aprender o caminho
que terá de percorrer.
30
Lá se vão os bois serenos,
tão cheios de mansidão,
obedientes ao aboio,
sem saber para onde vão.
31
Rico, a todos menosprezas,
mas com franqueza te digo:
- por mais que valha a riqueza,
vale mais um bom amigo.
32
Tenho por meu padroeiro
um santo que é de valia.
Foi um simples carpinteiro,
mas é o esposo de Maria.
33
Uma rosa em seu cabelo
é uma coisa que me encanta,
como se fosse uma estrela
no cabelo de uma santa.
34
Quando alguém canta na rua,
tão silenciosa e deserta,
no céu, solitária, a lua
parece uma rosa aberta.
35
Não te queixes do destino
por escassez de prata e ouro.
O homem, por mais pequenino,
tendo Deus, tem um tesouro.
36
Mais que nunca ao mar adoro
nas noites brancas de luar,
quando o pranto que não choro
parece por mim chorar.
37
Não sei se eu ria ou chorava,
se foi sonho ou pesadelo.
Só sei é que me enforcava
nas tranças do seu cabelo.
38
Dizem que hoje é o nosso dia,
o dia dos pais... Convenho.
- Minha maior alegria
é ter os filhos que tenho.
39
A arvore morre de pena,
dando ao mata-pau guarida.
- Quanta gente também morre
pelo bem que faz na vida!
40
Deus pensava em coisas belas
quando fez a minha amada:
- deu-lhe o perfume das flores,
as cores da madrugada.
41
Nossa casa não é rica,
pobre, pobre, também não.
Mas quem entra, se não fica,
deixa nela o coração.
42
Talvez à casa tranqüila,
onde aos poucos anoitece,
já convertido em argila,
meu corpo um dia regresse.
43
A vida só pela infância
só por ela é bem vivida,
pois é o tempo em que se vive
mais ignorante da vida.
44
Seus olhos, o povo diz,
quando nos olham de frente,
parecem dois colibris
bicando os olhos da gente.
45
De tudo o que fui e fiz,
afinal, que resultou?
Que importa se fui feliz,
agora, que já não -sou?
46
A esperança nos afaga
como um sonho em nosso afã.
Mas é um sonho que se apaga
como a bruma da manhã.
47
Duas coisas neste mundo
bastam para meu agrado:
- pito de fumo de rolo,
mulher cosendo ao meu lado.
48
Quem tudo nos deu no mundo:
- água, fogo, leite, pães -
o que deu, de mais profundo
foi o amor de nossas mães.
49
Ouvindo, às vezes, na mata,
o seu gemido profundo,
penso que a fonte retrata
as mágoas todas do mundo.
50
Neste mundo de viageiros,
que vão por montes e valos
uns vão como cavaleiros,
outros vão como cavalos.
51
Talvez, teu fado ajustando,
Deus se omitisse um instante.
Por isso. vives lutando
por algo sempre distante.
52
Vais feliz, fico a chorar-te.
Afinal, isso se explica
se a saudade de quem vai
não dói como a de quem fica.
53
Os que dão esmola são,
quase todos, fariseus,
pensando, por um tostão,
ganhar o reino de Deus.
54
Minha terra, como és bela
com teu modo sempre novo!
- No alto do morro a capela
pedindo a Deus pelo povo.
55
Há uma luz que me alumia,
uma luz que o céu não tem,
nem de noite, nem de dia:
- a dos olhos do meu bem.
56
Sepulto-te, meu amigo,
meu pobre, meu velho cão,
como se neste jazigo
sepultasse o coração.
57
O que é bom para o Mateus,
é mau para Napoleão.
Como é difícil ser Deus
com tamanha confusão.
58
Para Deus, quando amanhece,
e ouve os pássaros cantar,
soa o canto como a prece
que a gente reza no altar.
59
Se, por mentira contada,
a boca perdesse um dente,
ó meu Deus, que desdentada
seria a boca da gente!
60
Que eu viva sem abastança,
sem amigo ou alegria,
mas seja minha esperança
o meu pão de cada dia.
61
Não gracejes das mulheres,
se não podes falar bem.
- Não há mulher que não seja
uma santa para alguém.
62
Lá, bem longe, na distância,
em cada esquina, um lampião
lembrava, na minha infância,
uma ilha na escuridão.
63
A memória é um telefone
entre o passado e o presente.
Como é grato ouvir por ele
as vozes de antigamente!
64
Seja meu túmulo aberto
de minha casinha em frente,
que eu quero ficar de perto
olhando por minha gente.
65
Messalina que ela seja,
não merece injúria tanta.
Não há mulher que não tenha
alguma coisa de santa.
66
De todos os bens do mundo,
jamais se alcança o melhor.
- Mas, dos pesares da vida,
o nosso é sempre o pior.
67
Por que, pensando na morte,
tesouros acumular?
Feliz será minha sorte
se só saudades deixar.
68
Ela é a melhor mãe que existe,
com seu grande amor profundo.
Pena é que eu também não seja
o melhor filho do mundo.
69
Estranho comboio é a vida,
que sempre passa a correr:
- ninguém o toma por gosto,
ninguém desce por prazer.
70
No mar cinzento da sorte,
cruzado de navegantes,
não há nau que me transporte
aos meus castelos distantes.
71
Que desencontro sem jeito
o mundo às vezes nos traz:
- eu ... perder a paz do peito
ao ver Maria da Paz!
72
A fruta caiu à toa,
porque ninguém a colheu.
Era uma fruta tão boa,
e foi em vão que nasceu.
73
Brilham em suas orelhas
duas jóias preciosas
lembrando duas abelhas
pousadas em duas rosas.
74
Não humilhe a quem é pobre,
nem ao rico inveje tanto.
Deus nos irmana e nos cobre,
a todos nós, com seu manto.
75
No azul dos seus olhos vejo
algo que me faz pensar
nos infinitos do céu,
nas profundezas do mar.
76
Na alma tenho uma paineira
que solta paina todo o ano.
Cada floco que ela solta
representa um desengano.
77
Quando ouço um trem apitar,
parece que a alma também
se perde, triste, pelo ar,
no longo, apito do trem.
78
Misteriosa fruta é a vida,
com outras não se parece:
- doce, quando ainda verde,
trava, quando amadurece.
79
Se no mundo o mal é tanto,
que torna a existência atroz,
as estrelas são o pranto
que a Virgem chora por nós.
80
Um mal com outro se casa,
qualquer deles prejudica:
- homem que não sai de casa,
mulher que em casa não fica.
81
Atravessei-te, Ano-Velho,
as águas em calmaria.
Grato pelo que me deste:
- sossego, sonho e poesia.
82
Na arquitetura do espaço,
as nuvens, singularmente,
dão forma, traço por traço,
a muito sonho da gente.
83
Há tanta coisa sem jeito,
sem que este mundo desande
- Como cabe no meu peito
uma saudade tão grande?
84
Uma casinha na mata,
uma espingarda e meu cão,
meu amor à espera e o fogo
sempre aceso no fogão.
85
Depois de minha partida,
virá o caos num momento,
pois tudo acaba na vida
quando acaba o pensamento.
86
Segundo ouvi de um emir,
homem de bom parecer,
o mal nem sempre é cair,
mas, cair e não se erguer.
87
Voa o espírito até lá
pelos confins da amplidão.
Mas, por mais longe que vá,
vai mais longe o coração.
88
Possam meus filhos também,
agora que a alma se vai,
pensar de mim tanto bem
quanto penso do meu pai !
89
Choro tão triste no mundo,
da tanta mágoa na terra,
só mesmo o choro profundo
de um carro-de-bois na serra.
90
Um cacho de uvas, Maria,
bom é de ver-se na vinha:
- a cor, o olhar aprecia,
- o gosto, a boca adivinha.
91
Ninguém desfaça de um crente
a fé que do céu lhe vem.
Seria como se a gente
cegasse os olhos de alguém.
92
A maior graça divina,
obtida por um cristão,
é essa filha pequenina
na palma da minha mão.
93
Pelo Cruzeiro do Sul,
em celeste resplendor,
à noite vela por nós
o olhar de Nosso Senhor.
94
O que mais a Deus eu peço,
quando ouço tocar o sino,
é que abençoe a meus filhos,
e lhes dê um bom destino.
95
Arde o fogo na lareira
contra a neve da estação.
- Mas, por mais que o fogo aqueça,
não aquece o coração.
96
Quanto maior a distância,
menos se ouve a voz do sino.
Mas, quanto mais longe a infância,
mais lembro que fui menino.
97
Bandeira de minha terra,
não te veja alguém jamais
içada em tendas de guerra,
mas só em templos de paz.
98
Veja o céu como tem vida,
chorando na noite langue:
- cada estrela é uma ferida
por onde escorre o seu sangue.
99
É vã toda a nossa lida,
pois tudo, afinal, se encerra
e se resume, na vida,
em sete palmos de terra.
100
Já posso morrer sem queixa,
eu, que vivi tão sem brilho,
pois nem toda gente deixa
um livro, uma árvore e um filho.
--------

Fontes:
OTÁVIO, Luiz e JORGE, J. G. de Araujo. 100 trovas de Waldemar Pequeno. Editora Vecchi, 1959. Coleção Trovadores Brasileiros.
Imagem = montagem de José Feldman com imagem de Trovador obtida na Internet e Bandeira do Portal São Francisco.

Waldemar Pequeno (1892 – 1988)


"O trovador é o poeta que vaza sua inspiração em trovas. Possui qualidades específicas. Pode não ser capaz de realizar um poema grande mas deve ser capaz de fazer um grande poema ao compor apenas uma pequena quadrinha.

Nasceu trovador além de ter nascido poeta. São duas coisas distintas numa só. Todo trovador é poeta mas nem todo poeta é trovador
."

Waldemar Pequeno é poeta e é trovador. A trova que abre este volume é de uma sutileza profunda de pensamento:

Nunca fales com desprezo
de um vaso por ser grosseiro.
Só Deus sabe se ao fazê-lo
não tremeu a mão do oleiro.

E que dizer da beleza singela desta confissão?

Muitos mundos visitei
levado por meu destino.
- Mas nunca mais encontrei
o meu mundo de menino.

Em compensação, este mundo que o poeta diz que não encontrou, vai-se fragmentando imperceptivelmente nas suas cantigas.

Ao lado da trova levemente filosófica, a trova lírica desponta, espontânea e fresca:

Não sei, das flores da vida,
as que sejam do teu gosto.
As do meu - ninguém duvida -
são as rosas do teu rosto.

Waldemar Pequeno possui todas as qualidades do poeta-trovador. Simplicidade, aquele sutil jogo de palavras que enriquece tanto a trova em sua estrutura íntima, a imaginação, o lirismo inato. E ainda, essa vivência, indispensável à obra de arte, que lhe dá seiva e cor, perfume e vida.

A sua trova no 4 é arrancada de seu âmago:

Não há fonte neste mundo,
rolando por entre escolhos
que tenha o choro tão fundo
como a fonte dos meus olhos.

E finalmente, esta flor de trova, para usar a sua própria sugestão. A trova no 5:

Uma rosa, em minha cova,
talvez brote deste amor,
como se fora uma trova
sob o feitio de flor.

Nada mais, nada menos. Precisão absoluta na imagem. Floração lírica de singela e sugestiva beleza!

Aí estão as 5 primeiras trovas. Daqui para frente, leitor amigo, você seguirá sozinho, o ameno e sugestivo roteiro da poesia de Waldemar Pequeno. E estou certo de que se emocionará muitas vezes. Parará algumas outras para se extasiar diante da paisagem descortinada; se deixará surpreso, encantado com o canot dos versos; se extasiará com as florezinhas das trovas salpicando de cravos o chão do caminho para a morada do poeta...

Waldemar Pequeno, (Waldemar Dinis Alves Pequeno) é fluminense, de Piraí. Nasceu a 23 de Outubro de 1892, filho do cearense Pio Alves Pequeno e da mineira Maria Isabel Alves Pequeno.

Sua família radicou-se em Minas. Primeiro em Muriaé, depois em Barbacena, onde Waldemar fez o curso, e onde surgiu a vocação literária. Formou-se depois pela Faculdade de Direito, em Belo Horizonte, colaborando nessa época em jornais e revistas de várias cidades do Estado.

Iniciou sua vida como Delegado de Polícia em Aimorés, "em plena mata virgem, à margem do rio Doce, fronteira com o Estado do Espírito Santo, lutando contra a jagunçagem e o caudilhismo!

Waldemar teve uma vida aventurosa. Militou ativamente na política, participou de armas na mão nas revoluções de 1930 e 1932. Foi Delegado de Polícia em Goiânia; criou gado. Mas as rimas e as preocupações literárias eram a sua vocação.

Reside atualmente em Belo Horizonte. Depois das lides revolucionárias, um acontecimento o faria reintegrar-se em suas atividades literárias. Aberto um Concurso de Contos pela Prefeitura de Belo Horizonte, saiu vencedor.

Reescreveu então suas poesias antigas, acrescentou novas páginas e publicou em 1953 o primeiro livro: "Poemas das Vozes Distantes." Em 54, lançou "Ouro de Cuieté e Outras Histórias", livro laureado pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio "Afonso Arinos" e também premiado pela Academia Mineira de Letras. Em 55, saiu "Campanha Educativa do Trânsito". De suas obras publicadas, confessa Waldemar Pequeno que a que lhe é mais cara ao coração é "Ouro do Cuieté", onde narra episódios de sua infância e de sua vida dramática às margens do Rio Doce.

Em elementos que gentilmente nos forneceu, a mim e ao Luiz Otávio, informa que "tem inéditos, além de um livro de trovas a ser publicado, outro de poesia, um de contos e crônicas, e a autobiografia sob o título de "Retorno ao País da Vida".

E mais as obras seguintes: 114 Soldados, 3 Cozinheiras... 12 Netos, em vésperas de 14..."

Waldemar Pequeno viveu praticamente a sua vida no interior, no sertão. E quando me refiro a interior aí, quero dizer a vida nas pequenas cidades, nas pequenas vilas. Suas trovas, por isto, fixam muitas vezes os aspectos pacatos da vida interiorana, sua paisagem, seus costumes. Em algumas de suas quadras, há toda essa filosofia simplória do homem em seu pequeno mundo, realmente muito mais humano que o das grandes cidades, asfixiantes. Daí sua aspiração:

Quem me dera, solitário,
habitar naquele morro,
apenas com meu canário
meu cavalo, meu cachorro.

Eis o seu ideal:

Uma casinha na mata
uma espingarda e meu cão,
meu amor à espera, e o fogo
sempre aceso no fogão.

No morro ou na mata, seu anseio é por tranqüilidade. E' o sonho da casinha pequenina, a casa do caboclo, onde um é pouco, dois é bom, três é demais. Demais, é o modo de dizer, porque o amor multiplica e os filhos fazem da casa do caboclo uma verdadeira creche...

Não foi à toa que escrevi estas redondilhas, no meu "Festa de Imagens", sobre a "Matemática da Vida": "Matemática esquisita que das suas sempre faz... Ao final de nove meses somando dois, - multiplica, e ao invés de dois, às vezes: são três, são quatro, e até mais..."

E tudo começa afinal, com aquelas "duas coisas" que o poeta diz que bastam para a sua felicidade:

Duas coisas neste mundo
bastam para o meu agrado:
- pito de fumo de rolo,
mulher cosendo ao meu lado.

A poesia de Waldemar Pequeno recolheu a paisagem e o meio, nos seus versos. Quem conhece o Brasil por dentro, viaja com o poeta em seus versos, sentindo uma imensa alegria em descortinar o seu mundo.

A inclusão de seu nome ao lado de nomes como Belmiro Braga, Adelmar Tavares, Lilinha Fernandes, Baptista Nunes, é um simples ato de justiça à sua obra, aos seus versos, às suas trovas.

Aí estão rápidos traços da personalidade literária do trovador que não leva apenas o bandolim a tiracolo, para tecer madrigais à vida e à amada, mas que, de mosquete em punho, tem enfrentado o mundo e os homens...

J. G. DE ARAUJO JORGE Rio, XI/1960
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Fontes:
OTÁVIO, Luiz e JORGE, J. G. de Araujo. 100 trovas de Waldemar Pequeno. Editora Vecchi, 1959. Coleção Trovadores Brasileiros.

Robert Silverberg (O Homem que Jamais Esquecia)


Ele a viu na fila de um grande cinema de Los Angeles, na manhã de uma terça-feira ligeiramente nevoenta. Era delgada e pálida, de finos e compridos cabelos de trigo, mal teria quinze anos, e estava só. Lembrava-se dela, naturalmente.

Podia ser engano, mas, atravessando a rua, caminhou ao longo da fila até o lugar onde ela se encontrava.
- Alô! - disse.

Ela voltou-se, encarou-o impassível, passou rapidamente nos lábios a pontinha da língua...
- Creio que... creio que não...
- Sou Tom Niles - disse ele. - Pasadena, ano-novo de 1955. Sentou-se junto de mim no Estado de Ohio 20 versus Califórnia do Sul. Não se lembra?
- Num jogo de futebol? Mas eu raramente... isto é... sinto muito... eu...

Alguém na fila avançou para ele com aspecto ameaçador. Niles sabia quando estava vencido. Sorriu desculpando-se e disse:
- Sinto muito, senhorita. Acho que me enganei. Confundi-a com alguém que conhecia, uma certa Miss Bete Torrance. Desculpe!

E afastou-se rapidamente. Não andou mais de dez pés, quando ouviu um pequeno ofego e as palavras “Mas eu sou Bete Torrance!”... Ele, porém, continuou andando.
“Eu devia ter mais juízo aos vinte e oito anos”, pensou amargamente. “É que me esqueço do fato básico: de que, embora eu me lembre das pessoas, estas necessariamente não se lembram de mim...”

Abatido, caminhou até a esquina, virou à direita, pôs-se a descer uma nova rua – rua cujas lojas lhe eram completamente estranhas, e que, por isso mesmo, nunca antes visitara. Sua mente, como boa máquina que era, estimulada pelo incidente da fila de cinema, vomitou, até alcançar o diapasão normal de atividade, um exército de lembranças tangenciais.

1º de janeiro de 1955, no Rose Bowl de Pasadena, Califórnia, número do assento, G126; dia quente, muito úmido, cheguei ao estádio às doze e três, horário padrão do Pacífico. Fui sozinho. A moça ao lado trazia um vestido azul de algodão e tênis branco, carregava uma fâmula do Califórnia do Sul. Falei com ela. Nome, Bete Torrance, aluna adiantada do Califórnia do Sul, curso especializado. Tinha companheiro para o jogo, mas o rapaz adoecera com sintomas de gripe no dia anterior e insistiu para que ela fosse assistir à disputa futebolística mesmo sozinha. O assento ao lado dela, vazio. Comprei-lhe um cachorro-quente, vinte cents (sem mostarda...).”

Havia mais, muito mais. Porém Niles recalcou as lembranças. Havia entretanto o relatório virtualmente estenográfico da sua conversação durante todo aquele dia:

(“...Espero que ganhemos. Assisti ao último Rose Bowl que ganhamos, faz dois anos...)
(“...Sim, foi em 1953. Califórnia do Sul 7, Wisconsin 0... e duas vitórias completas sobre Washington e Tennessee...)
(“...Puxa, conhece futebol a fundo! Costuma decorar o livro de scores? “)

E as antigas lembranças... O berro escarnecedor de Joe Merrit, o Sardento, naquele caloroso dia de abril de 1937: “Quem você pensa que é, Einstein?” E Buddy Call dizendo acerbamente a 8 de novembro de 1939: “Aí vem Tommy Niles, a máquina humana de somar. Agarrem-no!” Depois, a dor aguda de uma bola de neve acertando logo abaixo da sua clavícula esquerda - dor que ele podia evocar com a mesma facilidade com que evocava quaisquer outras lembranças de dor que trazia consigo. Piscou e fechou repentinamente os olhos, como que golpeado pela gélida pelota, ali, numa rua de Los Angeles, numa manhã nevoenta de terça-feira...

Já não mais o chamavam de “máquina humana de somar”, mas de “gravador humano”: os termos irônicos tinham de emparelhar-se com as décadas que passavam. Só o próprio Niles permaneceu inalterado. O Menino de Cérebro de Esponja virou Homem de Cérebro de Esponja, sempre condenado ao mesmo dom terrível. Sua mente coalhada de dados lhe doía. Viu um minúsculo carro esporte estacionar no outro lado da rua, e pelo feitio, modelo, cor e número da licença, reconheceu-o como pertencente a Leslie F. Marshall, de vinte e seis anos, cabelos louros, olhos azuis, ator de televisão com as seguintes habilitações...

Estremecendo, Niles desligou o circuito e apagou os dados que se avolumavam. Estivera uma vez com Marshall, fazia seis meses, numa festa oferecida por um amigo comum - um amigo de outrora; Niles achava difícil continuar amigo de alguém por muito tempo. Conversara talvez dez minutos com o ator e acrescentara mais isso à sua bagagem mental.

Era tempo de seguir adiante, pensou Niles. Residira dez meses em Los Angeles. O fardo de lembranças acumuladas se lhe tornara excessivamente pesado; cumprimentava um número demasiado de pessoas que já o haviam esquecido. “Ao diabo com o meu quociente, John. Tamanho normal, cinco pés e nove polegadas, cento e sessenta e três libras; cabelos castanhos, olhos castanhos, nenhum traço fisionômico indevidamente saliente, nenhuma cicatriz visível, exceto as de dentro”, pensou. Tencionava voltar para San Francisco, mas desistiu. Fazia apenas um ano que lá estivera; em Pasadena, fazia dois. Percebeu que chegara o dia de uma outra excursão para o leste...

“Para a frente e para trás na superfície da América, lá vai Thomas Richard Niles, o Holandês Voador, o Judeu Errante, o Espírito do Natal Passado, o Gravador Humano...” Sorriu para um jornaleiro que lhe vendera um exemplar do Examiner do último dia 13, recebeu de volta o costumeiro olhar inexpressivo, e dirigiu-se para o terminal de ônibus mais próximo.

Para Niles, a longa viagem começara a 11 de outubro de 1929, na pequena cidade de Lowry Bridge, Ohio. Era o terceiro de três filhos, nascido de pais aparentemente normais, Henry Niles (nascido em 1896), Mary Niles (nascida em 1899). Seus irmãos mais velhos não tinham revelado qualquer manifestação extraordinária; ao contrário de Tom, que revelara...

Tudo começou quando ele principiou a soletrar; uma vizinha, espiando do alpendre para dentro da casa dele, viu-o brincando e observou a Mary Niles:
- Veja como ele está crescendo!

Nessa ocasião, Tom contava menos de um ano, e respondera, virtualmente, no mesmo tom de voz: “Veja como ele está crescendo!”

Foi uma sensação, embora se tratasse de pura mímica, não de discurso. Passou seus primeiros doze anos em Lowry Bridge, Ohio. Tempos depois cismava frequentemente em como fora capaz de ali permanecer tanto tempo. Entrou para a escola aos quatro anos, pois não havia como retê-lo; seus colegas de classe tinham cinco ou seis anos, eram vastamente superiores a ele em coordenação física, vastamente inferiores em tudo o mais. De certo modo, Tom sabia ler, podia até mesmo escrever, embora seus músculos infantis logo se cansassem de segurar a caneta. E podia... lembrar.

Lembrava-se de tudo. Lembrava-se das rixas de seus pais e repetia exatamente suas palavras a quem quisesse ouvir, até que seu pai lhe deu uma surra e ameaçou matá-lo se ele viesse a repeti-las. Também se lembrava disso. Lembrava-se das mentiras contadas por seu irmão e sua irmã, e se esforçava em repeti-las com exatidão. Finalmente, aprendeu a não fazer mais isso. Lembrava-se das coisas ditas por pessoas, e até mesmo as corrigia quando mais tarde elas contrariavam as suas primeiras declarações.

Lembrava tudo.

Certa vez leu um manual, e absorveu-o todo. Quando o professor fazia uma pergunta baseada na lição do dia, o braço magricela de Tommy Niles era o primeiro a se levantar, antes mesmo que os outros a tivessem ao menos assimilado. Passado algum tempo, o professor lhe explicou que ele não podia responder a todas as perguntas, tivesse ou não resposta para elas; havia na escola mais vinte alunos, os quais lhe ensinaram isso fartamente... depois da aula.

Ganhou na Escola Dominical o Concurso de Memorização de Versículos Bíblicos. Barry Harman estudara muitas semanas esperando ganhar a luva de boxe que seu pai lhe prometera se tirasse o primeiro lugar; mas quando chegou a vez de Tommy Niles, assim começou ele: “No princípio Deus criou o céu e a terra”, continuando com “Estas são as origens do céu e da terra, quando foram criados: no dia em que o Senhor Deus fez a terra e o céu”, descambando para “Ora, a serpente era a mais astuta de todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito”; era de presumir que tivesse recitado todo o Gênese, o Êxodo e o Livro de Josué, não tivesse o aturdido professor mandado que ele se calasse, declarando-o vencedor.

Barry Harman não ganhou a luva; em vez disso, Tommy Niles ganhou um olho preto. Começava a perceber que era diferente dos outros. Levou tempo para descobrir que os outros estavam sempre a esquecer coisas, e que, em vez de admirá-lo por lembrá-las, ao contrário, odiavam-no. Era difícil para um menino de oito anos, embora este fosse Tommy Niles, compreender por que o detestavam; mas ele o descobriu finalmente, de modo que começou a aprender como ocultar seu talento.

No decorrer do nono e décimo anos, exercitou-se na normalidade, e foi quase bem sucedido; as surras de após as aulas cessaram, e ele conseguiu obter alguns “B” nos boletins, ao invés de renques de “A”. Crescia; aprendia a fingir Os vizinhos soltavam suspiros de alívio, agora que o terrível diabrete dos Niles já não mais fazia aquelas coisas malucas...

Mas por dentro ele era o mesmo de sempre, e percebia que em breve teria de sair de Lowry Bridge. Conhecia demais a todos e a cada um. Dez vezes por semana apanhava-os mentindo; até mesmo Mr. Lawrence, o ministro, que certa vez rejeitou um convite dos Niles para uma função social, dizendo: “Na verdade tenho de aprontar meu sermão de domingo”, quando, havia apenas três dias, Tommy o ouvira dizer a Miss Emery, secretária da igreja, que ele experimentara um repentino estro de inspiração e escrevera três sermões de uma assentada, de modo que agora teria tempo livre para o resto do mês...

Como veem, até Mr. Lawrence mentia... E era o melhor dos homens. Quanto aos outros...

Tommy esperou até completar doze anos. Era grande demais para a idade e pensou poder agir por si mesmo. Tomou vinte dólares de empréstimo da pseudo-secreta caixinha do fundo da prateleira da cozinha (fazia cinco anos que sua mãe mencionara sua existência e ele ouvira), e saiu às escondidas de casa, às três da madrugada. Tomou o trem de carga para Chillicothe e pôs-se a caminho. Havia umas trinta pessoas no ônibus que deixou Los Angeles. Niles sentou-se sozinho na parte traseira, junto ao banco situado logo em cima da roda de trás. Conhecia de nome três pessoas que viajavam no ônibus - mas confiava em que elas já o houvessem esquecido e não se mexeu.

Negócio incômodo. Se dissesse “alô” a alguém que o esquecera, pensariam que ele era um criador de casos ou um achacador. E se passasse por alguém, pensando que ele o esquecera, quando, ao contrário, isso não acontecia, então, que tipinho mais esnobe que ele era! Niles balançava-se entre esses dois polos cinco vezes por dia. Via alguém, por exemplo a moça Bete Torrance, e recebia de volta um olhar gelado, impassível; ou passava por outra pessoa, acreditando que esta não se lembrava dele mas andando depressa para escapar a um possível reconhecimento, e ouvia um irado “Bem! Que diacho você pensa que é?” acompanhando-lhe a retirada.

Agora estava só, sacolejando para cima e para baixo a cada revolução da roda, com a sua única maleta contendo seus pertences a pular constantemente no compartimento de bagagens sobre a sua cabeça. Uma vantagem do seu talento: poder viajar sem bagagem. Não precisava conservar os livros depois que os lia, e não era proveitoso entesourar pertences de qualquer espécie; estes se tornavam demasiado conhecidos, para não dizer cacetes.

Niles olhava as tabuletas da estrada. Já estavam bem entrados em Nevada. A antiga e cansativa retirada prosseguia. Não podia permanecer demais numa só cidade. Era-lhe preciso dirigir-se a um novo território, a algum lugar desconhecido, do qual não tivesse lembranças, onde ninguém o conhecesse, onde não conhecesse ninguém. Nos dezesseis anos que se passaram desde que saíra de casa, cobrira muito terreno.

Lembrava-se dos empregos que tivera.

Fora revisor de uma casa editora de Chicago. Fazia o trabalho de dois homens. Segundo o costume, um homem lia o manuscrito enquanto o outro conferia as provas. Niles tinha um método mais simples: lendo o manuscrito, decorava-o, depois apenas conferia as provas em busca de discrepâncias. Ganhou por algum tempo cinquenta dólares semanais, antes que chegasse a hora de seguir adiante. Certa vez fora trabalhar como atração num parque de diversões ambulante que fazia o circuito regular de Alabama-Mississípi-Geórgia. Nessa época estava realmente a nenhum. Lembrava-se de como arranjara esse emprego: agarrando o dono do parque pela lapela e pedindo-lhe um teste:

- Leia-me qualquer coisa... qualquer coisa... e eu me lembrarei!

O sujeito estava meio cético e não via nenhuma utilidade num ato desses, mas finalmente cedeu quando Niles praticamente desmaiou de fome no escritório dele. O homem leu para ele o editorial de um semanário do interior do Mississípi, e, quando acabou, Niles recitou-o inteirinho, palavra por palavra. Obteve o emprego de quinze dólares por semana mais as refeições, e ficava sentado numa tenda sob a tabuleta que dizia: “O Gravador Humano”. As pessoas liam-lhe ou diziam-lhe coisas e ele as repetia. Era um trabalho monótono. Às vezes lhe diziam coisas sórdidas, e na maior parte dos casos, daí a minutos nem ao menos se lembravam do que haviam dito. Ficou no parque quatro semanas, e quando se despediu ninguém lhe achou falta.

O ônibus rodava na noite que o nevoeiro bloqueava. Mas ainda houve outros empregos: bons empregos, maus empregos... Nenhum durou muito tempo. Também houve algumas garotas, porém nenhuma delas durara muito. Todas elas descobriram-lhe o talento especial - mesmo aquelas das quais tentara escondê-lo - e o abandonaram. Não era possível ficar junto de um homem que jamais esquecia, um homem que sempre podia catar fraquezas de ontem no reservatório que era a sua mente e lançá-las inopinadamente em público. Um homem de memória perfeita jamais poderia viver muito tempo entre seres humanos imperfeitos.

“Perdoar é esquecer”, pensava ele. A lembrança de velhos insultos e discussões se dissipa, e as relações se refazem. Mas para ele não podia existir esquecimento, e, em consequência, só poderia haver pouco perdão.

Niles fechou os olhos após algum tempo e encostou-se na dura almofada de couro da poltrona. A cadência ritmada do ônibus deu-lhe sono. Durante o sono, sua mente descansava; ele podia enfim repousar a memória. Nunca sonhava. Em Salt Lake City pagou a passagem, desceu do ônibus com a mala na mão e partiu na primeira direção à sua frente. Não queria se afastar muito a leste naquele ônibus.

Sua reserva monetária era agora de sessenta e três dólares, e tinha de fazê-la durar. Descobriu um emprego de lava-pratos num restaurante do centro da cidade, conservou–o o bastante para acumular uma centena de dólares e tornou a partir, desta vez viajando de carona para Cheyenne. Ficou um mês ali, depois tomou um ônibus noturno para Denver, e quando deixou Denver foi para dirigir-se a Wichita.

De Wichita para Des Moines, de Des Moines para Minneapolis, de Minneapolis para Milwaukee, depois através de Illinois, cuidadosamente evitando Chicago, e daí para Indianápolis. Essa viagem era para ele história antiga. Celebrou melancolicamente o seu vigésimo nono aniversário sozinho, numa casa de cômodos de Indianápolis, num dia garoento de outubro, e com o propósito de alegrar a ocasião evocou as velhas lembranças da festa do seu quarto aniversário, em 1933 - uma das poucas datas perfeitamente felizes de sua vida.

Todos estavam lá - seus amigos e seus pais, e seu irmão Hank com um ar muito importante para os seus oito anos, e sua irmã Marian, e havia velas e lembranças festivas, ponche, bolos. Mrs. Heinsohn, vizinha do lado, entrara dizendo: “Ele parece um homenzinho!”, e seu pais ficaram radiantes, todos cantaram e divertiram-se. Depois, jogado o último jogo, aberto o derradeiro presente, quando os meninos e as meninas acenaram um boa-noite e desapareceram rua acima, os adultos sentaram-se em roda e falaram do novo presidente e das muitas coisas estranhas que aconteciam no país, e o pequeno Tom sentou-se no meio do assoalho, ouvindo e gravando tudo e cordialmente satisfeito, pois durante toda a tarde ninguém lhe fizera ou dissera algo cruel. Dia feliz, aquele, e, ao deitar-se, ele ainda se sentia cheio de felicidade.

Niles relembrou a festa duas vezes, como um velho filme ao qual amasse; a imagem nunca aparecia defeituosa e o som continuava tão claro e distinto como nunca. Niles podia provar o doce travo do ponche, podia reviver o calor daquele dia no qual, mercê de algum acidente, os outros lhe haviam permitido um pouco de felicidade. Finalmente deixou se dissipar o brilho da festa, e novamente achou-se em Indianápolis, numa tarde cinzenta e sombria, sozinho num quarto mobiliado, de oito dólares por semana.

“Desejo-me feliz aniversário”, pensou amargamente. “Feliz aniversário.”

Fitou a parede verde cheia de manchas com uma gravura barata de Corot dependurada um pouco de viés. “Bem que eu podia ser algo especial”, cismava ele, “uma dessas maravilhas do mundo. Em vez disso, não passo de um sorrateiro excêntrico que mora nos fundos de um terceiro andar, e não me atrevo a deixar que o mundo saiba o que sei fazer.”

Fez um esforço e conseguiu se lembrar da execução, por Toscanini, da Nona sinfonia de Beethoven, que ouvira no Carnegie Hall certa vez em que estivera em Nova Iorque Estava infinitamente melhor do que a última execução que o mesmo Toscanini aprovara para gravação, todavia nenhum microfone a registrou; exceto na mente de um homem, a fulgurante execução era tão impossível de captar como uma chama soprada há cinco minutos. Mas Niles captara-a: a majestosa entrada dos tímpanos, o ressoante contrabaixo produzindo a grande melodia do finale, até mesmo o balanço do oboé que devia enfurecer o maestro, a tosse exasperadora dos ouvintes no momento mais suave do adágio, o dolorido apertão dos sapatos de Niles, que se inclinava para a frente na poltrona...

Ele gravara tudo, com a mais alta fidelidade.

Três meses depois, numa noite sem lua chegou a uma cidadezinha. Era uma noite de janeiro, fria e cortante, quando o vento de inverno soprava do norte, penetrando-lhe os ossos através da roupa fina e tornando quase insuportável o peso da mala para suas mãos dormentes e sem luvas. Não tivera a intenção de ir para lá, mas em Kentucky ficara sem dinheiro e não tivera escolha. Estava a caminho de Nova Iorque, onde poderia viver anonimamente durante meses sem amolação e onde sabia não ser notada a sua grosseria caso lhe acontecesse esbarrar em alguém ou cumprimentar alguma pessoa que o houvesse esquecido.

Mas Nova Iorque ainda se encontrava a centenas de milhas de distância - bem poderiam ser milhões naquela noite de janeiro. Viu um letreiro: “BAR”. Avançou para a luz pisca-pisca de neon. Ordinariamente não bebia, mas agora precisava do calor do álcool, e talvez o dono do bar precisasse de alguém para ajudar, ou talvez pudesse lhe alugar um quarto em troca do pouco dinheiro que tinha nos bolsos.

Havia cinco homens lá dentro. Pareciam choferes de caminhão. Niles deixou cair a mala à esquerda da porta, esfregou as mãos endurecidas, exalou uma nuvem branca pela boca... O dono do bar arreganhou-lhe um sorriso.
- Frio que baste lá fora, hein?

Niles conseguiu sorrir.
- Não estava suando muito... Dê-me algo quente. Uma dose dupla de uísque, talvez.

Isso custava noventa cents: ele tinha apenas sete dólares e trinta e quatro cents. Niles acalentou a bebida quando ela veio, bebericou devagar, deixou-a escorrer pela garganta... Lembrava-se do verão em que fora parar em Washington, uma semana inteira de noventa e sete graus de temperatura e noventa e sete por cento de umidade, e a vívida memória concorreu para lhe acalmar alguns dos efeitos psicológicos do frio. Logo distendia os nervos, cobrava calor... Atrás dele, o rumor penetrante de uma discussão.
-...digo-lhe que Joe Louis fez de Schmeling uma massa na segunda vez! Nocauteou-o no primeiro round!
- Está maluco! Louis simplesmente o derrubou numa luta de quinze rounds: por pontos, no segundo...
- Parece que...
- Aposto dinheiro. Dez dólares numa decisão por pontos em quinze rounds, Mac.

Risadas confiantes se fizeram ouvir.
- Não quero ganhar tão fácil seu dinheiro, companheiro. Todos sabem que foi nocaute.
- Ofereci dez dólares.

Niles voltou-se para ver o que estava acontecendo. Dois dos choferes de caminhão, homens atarracados, de jaqueta cor de ervilha, encostavam um no outro os respectivos narizes. A ideia lhe veio automaticamente: “Louis pôs Schmeling nocaute no primeiro round, no Yankee Stadium, Nova Iorque, 22 de junho de 1938”. Niles nunca fora grande esportista, e especialmente aborrecia-lhe o boxe, mas certa vez dera uma vista d’olhos na página de um almanaque que catalogava as lutas pelo título, e os dados, naturalmente, lhe ficaram gravados no cérebro.

Olhava indiferente enquanto o maior dos choferes batia na mesa uma nota de dez dólares; o outro imitou-o. Então o primeiro, olhando para o dono do bar, disse o seguinte:
- Certo, mano. Você é um sujeito esperto. Quem acertou nessa segunda luta de Louis e Schmeling?

O dono do bar era um homem de rosto inexpressivo, de meia-idade, já meio careca, com olhos mansos e vazios. Mordeu o lábio um instante, encolheu os ombros, hesitou, finalmente disse:
- Difícil lembrar. Foi há vinte e cinco anos essa luta.
“Vinte”, pensou Niles.
- Vejamos - prosseguiu o dono do bar. - Parece que me lembro... sim, é isso mesmo.

Foram quinze rounds e os juizes deram a vitória a Louis. Houve um grande protesto; os jornais disseram que Joe devia tê-lo matado muito antes disso.

Um sorriso triunfante se esboçou na cara do motorista maior, que destramente empolgou ambas as notas.

O outro homem fez uma careta e soltou um berro:
- Ei! Vocês dois combinaram a coisa de antemão. Sei perfeitamente que Louis nocauteou o alemão em um!
- Ouviu o que o homem disse: o dinheiro é meu.
- Não - disse Niles repentinamente numa voz tranquila, que se diria ecoar até a metade do bar.

“Fique calado”, disse freneticamente com seus botões. “Isso não lhe diz respeito. Fique de fora.”
Mas era demasiadamente tarde.

- O que está dizendo? - perguntou o tal que pusera os dez dólares na mesa.
- Digo que está sendo logrado. Louis venceu a luta em um round, conforme você diz, a 22 de junho de 1938, no Yankee Stadium. O dono do bar está pensando na luta de Arturo Godoy. Essa foi de quinze rounds, completos, a 9 de fevereiro de 1940.
- Está vendo? Eu bem disse! Devolva-me o dinheiro!

Mas o outro chofer não fez caso do grito e voltou-se para encarar Niles. Era um homem de expressão fria, atarracado, e seus punhos começavam a se crispar...
- Espertinho, hein? Especialista em boxe?
- Eu só não queria ver alguém logrado - disse Niles obstinadamente. Mas já previa o que vinha em seguida. O chofer, embriagado, ia trocando as pernas em sua direção; o dono do bar berrava, os outros campeões recuavam...

O primeiro soco acertou Niles nas costelas; ele gemeu, recuou cambaleando para ser agarrado pela garganta e esbofeteado três vezes. Ouviu vagamente uma voz que dizia:
- Olhe aí, solte o rapaz! Ele não queria nada! E você quer matá-lo?

Uma rajada de golpes fizeram-no curvar-se; um soco inchou-lhe a pálpebra direita, outro golpeou-lhe o ombro esquerdo, adormecendo-o. Niles rodou a esmo, sabendo que sua mente se recordaria permanentemente de cada momento dessa agonia. De olhos semicerrados viu os outros arrancando o chofer enfurecido de cima dele; o homem contorcia-se nas garras de três outros, mas desferiu um último pontapé desesperado no estômago de Niles, atingindo uma costela, e finalmente foi subjugado.

Niles ficou sozinho no meio da sala, esforçando-se para ficar de pé, tentando suportar as súbitas pontadas que o incomodavam numa dúzia de lugares.
- Você está bem? - perguntou uma voz solícita. - Diacho! Esses caras jogam duro. Não devia se meter com eles.
- Estou bem - disse Niles numa voz cavernosa. - Mas espere um pouco... deixe-me recuperar o fôlego.
- Isso. Sente-se. Tome um trago. Isso lhe dará ânimo.
- Não - disse Niles. - Não posso ficar aqui. Tenho de ir andando. Logo estarei bom - murmurou sem convencer ninguém. Apanhou a mala, enrolou-se no sobretudo e saiu do bar, passo a passo...

Andou quinze pés antes que a dor se lhe fizesse insuportável. De repente amontoou-se no chão e caiu de bruços no escuro, sentindo de encontro às faces a terra enregelada e dura como aço. Em vão tentou levantar-se. E ali ficou, lembrando-se das muitas dores que sofrera na vida, as surras, a crueldade... Mas quando o peso da memória se lhe tornou demasiado, perdeu os sentidos.

A cama era tépida, os lençóis limpos, frescos e macios. Niles despertou lentamente, sentindo uma momentânea sensação de tontura, mas a sua infalível memória supriu os dados do seu desmaio na neve e ele percebeu que se encontrava num hospital. Tentou abrir os olhos; um se fechara, de tão inchado que estava, mas conseguiu descerrar as pálpebras do outro. Achava-se no quarto de um pequeno hospital – nada de um lustroso pavilhão metropolitano, mas de uma pequena clínica de condado com vistosos objetos moldados nas paredes e cortinas de renda caseira, através das quais penetrava o sol da tarde.

Fora encontrado e conduzido ao hospital. Isso era bom. Podia facilmente ter morrido lá fora, na neve; mas alguém tropeçara nele e o recolhera. Era uma novidade alguém ter-se incomodado em socorrê-lo; o tratamento que recebera na véspera naquele bar - fora mesmo na véspera? - era mais condizente com o que até então o mundo lhe havia dado. Em dezenove anos, ele de algum modo fracassara em aprender a se esconder e se disfarçar adequadamente, por via do que sofria, diariamente, terríveis consequências. Era-lhe tão difícil lembrar (ele, que de tudo se lembrava) que as outras pessoas não eram como ele, e que além disso o odiavam por ele ser o que era.

Apalpou cautelosamente o flanco. Parecia não haver nenhuma costela quebrada – apenas machucaduras. Um dia ou dois de repouso e decerto lhe dariam alta, deixando–o continuar a viagem.

Nisto, uma voz animada lhe falou:
- Oh, já acordou, Mr. Niles? Está melhor? Vou trazer-lhe um pouco de chá.

Ele ergueu a vista e sentiu uma súbita pontada muito aguda. Era uma enfermeira – vinte e dois, vinte e três anos, talvez nova no emprego, com uma ondulante massa de louros cachos e grandes olhos azuis, límpidos e redondos... Sorria, e pareceu a Niles que o sorriso não era meramente profissional.
- Sou Miss Carroll, enfermeira diurna. Tudo vai bem?
- Otimamente - disse Niles com certa hesitação. - Onde estou?
- No Hospital Central Geral do Condado. Trouxeram-no ontem à noite - pelo visto tinha sido espancado e largado na Rodovia 32. Foi uma sorte Mr. Mark McKenzie estar passeando com seu cão, Mr. Niles. - E fitou-o gravemente. - Lembra-se de ontem à noite, não se lembra? Quero dizer... o choque... a amnésia...

Niles riu para si mesmo.
- Essa é a última indisposição no mundo que hei de recear - disse. - Sou Thomas Richard Niles, e me lembro muito bem do que sucedeu. Até que ponto me avariaram?
- Ferimentos superficiais, um pequeno choque, um leve caso de queimadura pelo frio - resumiu ela. - Vai viver. Daqui a pouco o Dr. Hammond lhe fará um exame geral; depois que o senhor comer. Vou buscar-lhe um pouco de chá.

Niles observou a esbelta figura que desaparecia no corredor.

Era certamente uma moça muito bonita, pensou: olhos límpidos... alerta... viva. “O clichê é antigo: o paciente se apaixonando pela enfermeira. Porém ela não é para mim. Receio que não.”

A porta abriu-se abruptamente e a enfermeira tornou a entrar, carregando uma bandejinha esmaltada com o serviço de chá.
- Não adivinha? Tenho uma surpresa para o senhor, Mr. Niles. Uma visita. Sua mãe.
- Minha mãe...
- Ela leu a notícia no jornal do condado. Está esperando lá fora; disse-me que não o vê há uns dezessete anos. Quer que eu a mande entrar?
- Acho que sim - disse Niles com voz seca e frágil. A enfermeira saiu pela segunda vez.

“Meu Deus”, pensou Niles. “Se eu soubesse que estava tão perto de casa, teria ficado fora de Ohio de uma vez!”

A última pessoa que desejaria ver no mundo era sua mãe. Pôs-se a tremer debaixo das cobertas. As mais antigas e as mais terríveis lembranças irrompiam do escuro compartimento de sua mente, onde as julgava para sempre aprisionadas. A súbita emergência do calor para o frio, da treva para a luz, a vibrante pancada contra o seu traseiro, a dor cruciante ao saber que se acabara a sua segurança, e que, de agora em diante, viveria, e que, por isso, seria infeliz...

A lembrança do grito agônico do seu nascimento ressoou-lhe na mente. Nunca se esqueceria de que nascera. E entre todas, sua mãe era a única pessoa que ele jamais perdoaria, uma vez que ela o pusera no mundo que ele odiava. Tinha horror às mulheres, mas...
- Olá, Tom. Faz tanto tempo...

Dezessete anos haviam-na murchado, marcado de rugas o seu rosto e tornado suas faces mais balofas, os cerúleos olhos menos brilhantes, os cabelos castanhos de um cinzento de camundongo. Ela sorria. E para seu próprio espanto, Niles conseguiu retribuir-lhe o sorriso.
- Mãe.
- Li a notícia no jornal. Dizia que um homem de aproximadamente trinta anos fora encontrado nas cercanias da cidade com papéis que traziam o nome de Thomas R. Niles, e fora conduzido ao Hospital Central Geral do Condado. Por isso vim, apenas para me certificar de que era você mesmo!

Uma mentira aforou à superfície de sua mente, uma mentira piedosa... e ele a disse:
- Eu voltava para visitá-la, mãe. Vim de carona. Mas sofri um pequeno acidente na estrada.
- Folgo em saber que você resolveu voltar, Tom. Fiquei tão só depois da morte de seu pai, e, naturalmente, Hank se casou, Marian também... é bom tornar a vê-lo. Pensei que nunca mais o veria.

Ele continuou deitado, perplexo, pensando por que não lhe vinha a costumeira maré de ódio. Só sentia ternura por ela; estava contente em revê-la.
- E como foram todos esses anos, Tom? Não foram fáceis, não? Estou vendo. Percebo em sua cara...
- Sim, não foram fáceis - respondeu. - Sabe por que fugi?

Ela fez com a cabeça um aceno afirmativo:
- Por causa do jeito que você tem. Aquela história de jamais esquecer seja lá o que for... Eu sabia. Sabe que seu avô tinha o mesmo dom...
- Meu avô... mas...
- Você puxou a ele. Eu nunca lhe contei. Ele não se dava bem com nenhum de nós. Abandonou minha mãe quando eu era menina e nunca se soube para onde foi. Por isso sempre pensei que você se fora do mesmo modo que ele. Mas você voltou. Está casado?

Ele sacudiu a cabeça.
- Então já é tempo de decidir, Tom. Tem quase trinta anos!

A porta do quarto abriu-se e entrou um médico de aspecto eficiente.
- Receio que a sua hora já se tenha esgotado, senhora. Mais tarde poderá voltar a vê-lo. Vou examiná-lo, agora que está acordado.
- Naturalmente, doutor. - E sorriu para ele, depois para Niles. - Voltarei mais tarde, Tom.
- Decerto, mãe.

Niles recostou-se, fazendo carrancas à medida que o médico o cutucava aqui e acolá. “Eu não a odiava.” Um crescente maravilhamento o invadia, e ele pensava que havia muito já devia ter voltado. Mudara interiormente, mesmo sem perceber. Fugir foi sua primeira fase de crescimento - fase necessária. Porém querer voltar aconteceu mais tarde e era sinal de maturidade. Voltara. E repentinamente viu que fora terrivelmente idiota durante toda a sua amarga vida de adulto. Possuía um dom, um grande dom, um dom terrífico. Até agora lhe fora demasiado pesado. Condoendo-se de si próprio, atormentando-se, até então se recusara a perdoar as faltas das pessoas que esqueciam, e pagara o preço do ódio delas. Mas não podia andar fugindo a vida inteira. Tempo viria em que teria de crescer o suficiente para dominar o dom, para aprender a viver com ele ao invés de gemer na dramática angústia que a si próprio se infligia. E esse tempo era agora. Já de há muito devia ter chegado.

Seu avô possuíra o dom - nunca lhe haviam dito isso. De modo que a coisa era geneticamente transmissível. Podia casar, ter filhos... e também estes jamais se esqueceriam. Era seu dever não consentir que o dom morresse com ele. Outros de sua espécie, menos sensíveis, de pele menos fina, viriam após ele, e também estes saberiam como evocar uma sinfonia de Beethoven ou um fiapo de conversa, depois de uma década. Pela primeira vez desde aquele quarto aniversário, Tom sentiu um hesitante lampejo de felicidade. Os dias de correria tinham findado; estava de novo em casa.

“Se eu aprender a viver com os outros, decerto também eles aprenderão a viver comigo.” Viu então as coisas de que precisava: uma mulher, um lar, filhos...
-... Alguns dias de repouso, muita bebida quente, e ficará bom como novo, Mr. Niles - disse o médico. - Gostaria que agora eu lhe trouxesse alguma coisa?
- Sim - disse Niles. - Mande-me a enfermeira, sim? Quero dizer, Miss Carroll.

O médico esboçou um sorrisinho e saiu. Niles aguardou cheio de expectativa, exultando no seu novo eu. Ligou a mente para o terceiro ato dos Mestres cantores - jubilosa música de fundo - e deixou que a ternura o invadisse. Quando ela entrou no quarto ele sorria, pensando em como diria o que tinha para lhe dizer.

Fonte:
SILVERBERG, Robert. Outros tempos, outros mundos. SP: Círculo do Livro, 1990.

Imagem = montagem por José Feldman

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Trova 174 - A. A. de Assis (Maringá/PR)

Montagem da trova e TV adicional sobre imagem criada por Márcia Bueno

No Compasso da Trova I

Após causar desencantos e nos fazer peregrinos, a seca fez chover prantos nos olhos dos nordestinos! ADEMAR MACEDO - RN  Não te peço, Deus amigo, igual multiplicação: basta o milagre do trigo, que a gente o transforma em pão! ARLINDO TADEU HAGEN - MG Se entre guizos, eu componho meu disfarce de Arlequim, há sempre um Pierrô tristonho, que chora dentro de mim! CAROLINA RAMOS - SP Não sou ave nem sou peixe, nunca aprendi a nadar, mas peço a Deus que me deixe num dia desses voar! DIAMANTINO FERREIRA – RJ Das alegrias passadas que o tempo ingrato perdeu, guardo lembranças mofadas, relíquias do meu museu. DOROTHY JANSSON MORETTI - SP Amigo é um irmão de fé, que, nas quedas dos caminhos, discreto nos põe de pé e diz que agimos sozinhos... EDMAR JAPIASSÚ MAIA - RJ No tear da solidão, rendeiro em dias tristonhos, basta um fio de ilusão para tecer os meus sonhos! ELIZABETH S. CRUZ - RJ A dor materializou-se, nestas lágrimas sem cor. Meu orgulho evaporou-se... Rendi-me à força do amor! FRANCISCO NEVES MACEDO - RN E’ de ternura o momento em que o Sol sorri no espaço, se faz vida e sentimento e lança ao mar seu abraço! GISLAINE CANALES - SC Sonhei um sonho tão triste!... Sonhei que o mundo acabou... - Logo depois, tu partiste, e o sonho se confirmou... JOSÉ OUVERNEY - SP Herdei de ti, pai querido, essa força de condor que te fez, sendo um vencido, ter ares de vencedor. LILINHA FERNANDES/RJ Tropeçando na soleira da incerteza que me trazes, vivo perto da fronteira dos que só vivem de “quases”... MILTON NUNES LOUREIRO – RJ Quando a neblina é mais densa e a luz parece tão mansa, na estrada o que a gente pensa é que o sol ainda descansa. OLGA AGULHON - PR Sem rodeio e sem firula deixo a todos essa dica: Impostor sempre bajula, amigo às vezes critica! PEDRO ORNELLAS - SP Nesta longa caminhada que fazemos sempre a sós... Nem o silêncio da estrada, quebra o silêncio entre nós PROFESSOR GARCIA - RN Quando à noite, a solidão e a saudade trazem dor, vou dizendo ao coração: -é o preço por tanto amor. ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE - RJ Beija, grato, o chão que pisas, se ele te dá, quando plantas; o trigo de que precisas e as flores com que te encantas! SÉRGIO BERNARDO - RJ Eu sempre lutei sentindo, nesta arena em que se vive, a mão de Deus dirigindo cada conquista que eu tive! VANDA FAGUNDES QUEIROZ - PR Fonte: Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Guy de Maupassant (A noite)


Um exemplo de fantástico obtido com mínimos recursos: este conto não é mais que um passeio por Paris, relato fiel das sensações que o notivago Maupassant vivia em cada uma de suas noites. Uma sensação opressiva, de pesadelo, ocupa o quadro desde o início e se torna cada vez mais intensa. A cidade é sempre a mesma, rua por rua e edificio por edificio, mas antes desaparecem as pessoas e, depois, as luzes; o cenário bem conhecido parece conter apenas o medo do absurdo e da morte.
Maupassant (1850-93) também tem um lugar na literatura fantástica devido a uma série de textos escritos nos anos que antecederam a sua crise de loucura, da qual ele não se recuperou: é das imagens cotidianas que se desprende o sentimento de terror.
––––––––––-
Amo a noite apaixonadamente. Amo-a como quem ama seu país ou sua amante, com um amor instintivo, profundo, invencível. Amo-a com todos os meus sentidos, com meus olhos que a vêem, com meu olfato que a respira, meus ouvidos que escutam seu silêncio, com toda a minha carne que as trevas acariciam.

As cotovias cantam ao sol, no ar azul, no ar quente, no ar leve das manhãs claras. O mocho voa à noite, mancha negra que passa pelo espaço negro, e, radiante, inebriado pela negra imensidão, solta seu grito vibrante e sinistro.

O dia me cansa e me aborrece. É brutal e barulhento. Levanto-me com dificuldade, e visto-me com lassidão, saio a contragosto, e cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como se eu levantasse um fardo que me esmagasse.

Mas, quando o sol se põe, invade-me uma alegria confusa, uma alegria de todo o meu corpo. Desperto, me animo. À medida que crescem as sombras, sinto-me outro, mais moço, mais forte, mais alerta, mais feliz. Olho para a grande sombra suave caindo do céu e se adensando: ela afoga a cidade, como uma onda impalpável e impenetrável, ela esconde, apaga, destrói as cores, as formas, abraça as casas, os seres, os monumentos com seu toque imperceptível. Então sinto vontade de gritar de prazer como as corujas, de correr pelos telhados como os gatos; e um desejo de amar, impetuoso, invencível, arde em minhas veias.

Vou, caminho, ora pelos subúrbios ensombreados, ora pelos bosques vizinhos de Paris, onde ouço rondarem minhas irmãs, as bestas, e meus irmãos, os caçadores clandestinos.

O que amamos com violência sempre acaba nos matando. Mas como explicar o que acontece comigo? E, mesmo, como explicar que sou capaz de contá-lo? Não sei, já não sei, sei apenas que isso existe — pronto.

Portanto, ontem — era ontem? —, sim, sem dúvida, a menos que tenha sido antes, um outro dia, um outro mês, um outro ano — não sei. Mas deve ser ontem, já que o dia não mais raiou, já que o sol não reapareceu. Mas desde quando dura a noite? Desde quando?... Quem poderá dizer? Quem algum dia saberá?

Assim, ontem saí, como faço todas as noites, depois do jantar. Fazia um tempo muito bonito, muito suave, muito quente. Ao descer para os bulevares, olhei acima de minha cabeça o negro rio cheio de estrelas, recortado no céu pelos telhados das casas, que giravam e faziam esse riacho rolante de astros ondular como um rio de verdade.

No ar leve, tudo estava claro, desde os planetas até os bicos de gás. Tantas luzes brilhavam lá no alto e na cidade que as trevas pareciam luminosas. As noites luzentes são mais alegres que os grandes dias de sol. No bulevar, os cafés rutilavam; todos riam, passavam, bebiam. Entrei no teatro, por alguns instantes, em que teatro? Não sei mais. Lá dentro estava tão claro que me senti agoniado, e saí com o coração meio obscurecido por aquele choque brutal de luz nos dourados do balcão, pelo cintilar factício do enorme lustre de cristal, pela cortina de luzes da ribalta, pela melancolia daquela claridade falsa e crua. Cheguei aos Champs-Elysées, onde os cafés-concertos pareciam focos de incêndio no meio das folhagens. As castanheiras roçadas pela luz amarela tinham um aspecto de pintadas, um aspecto de árvores fosforescentes. E os globos de luz elétrica, parecendo luas cintilantes e pálidas, ovos de lua caídos do céu, pérolas monstruosas, vivas, faziam empalidecer, sob sua claridade nacarada, misteriosa e imperial, os fios de gás, do feio gás sujo, e as guirlandas de vidros coloridos.

Parei debaixo do Arco do Triunfo para olhar a avenida, a longa e admirável avenida estrelada, indo até Paris entre duas linhas de fogo e os astros! Os astros lá no alto, os astros desconhecidos jogados ao acaso na imensidão, onde desenham essas figuras estranhas que tanto fazem sonhar, que tanto fazem pensar.

Entrei no Bois de Boulogne e lá fiquei muito tempo, muito tempo. Estava tomado por um arrepio singular, uma emoção imprevista e poderosa, uma exaltação de meu pensamento que raiava a loucura. Andei muito tempo, muito tempo. Depois voltei. Que horas eram quando tornei a passar sob o Arco do Triunfo? Não sei. A cidade adormecia, e nuvens, grossas nuvens pretas, espalhavam-se lentamente no céu.

Pela primeira vez senti que algo estranho, novo, ia acontecer. Tive a impressão de que fazia frio, de que o ar se adensava, de que a noite, minha noite bem-amada, pesava sobre meu coração. Agora a avenida estava deserta. Só dois policiais passeavam perto da estação dos fiacres, e na rua apenas iluminada pelos bicos de gás que pareciam moribundos, uma fila de carroças de legumes ia para os Halles. Iam devagar, carregadas de cenouras, nabos e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis; os cavalos andavam no mesmo passo, seguindo a carroça da frente, sem barulho, pelo calçamento de madeira. Diante de cada luz da calçada, as cenouras se iluminavam, vermelhas, os nabos se iluminavam, brancos, os repolhos se iluminavam, verdes; e essas carroças passavam uma atrás da outra, vermelhas como o fogo, brancas como a prata, verdes como a esmeralda. Fui atrás delas, depois virei na rua Royale e voltei para os bulevares. Mais ninguém, mais nenhum café iluminado, apenas alguns retardatários que se apressavam. Nunca tinha visto Paris tão morta, tão deserta. Puxei meu relógio, eram duas horas.

Uma força me empurrava, uma necessidade de andar. Portanto, fui até a Bastilha. Lá percebi que nunca tinha visto uma noite tão escura, pois nem sequer distinguia a Colonne de Juillet, cujo Gênio dourado estava perdido no breu impenetrável. Um firmamento de nuvens, cerrado como a imensidão, afogara as estrelas e parecia descer sobre a terra para liquidá-la.

Retornei. Não havia mais ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Château-d'Eau um bêbado quase me deu um encontrão, depois desapareceu. Por algum tempo ouvi seu passo desigual e sonoro. Eu ia andando. Na altura do Faubourg Montmartre passou um fiacre, descendo na direção do Sena. Chamei-o. O cocheiro não respondeu. Perto da rua Drouot, uma mulher zanzava: "Ei, cavalheiro, escute". Apertei o passo para evitar sua mão estendida. Depois, mais nada. Na frente do Vaudeville, um catador de trapos vasculhava a sarjeta. Sua pequena lanterna tremulava bem rente ao chão. Perguntei-lhe: "Que horas são, meu amigo?".

Ele respondeu: "E eu lá sei! Não tenho relógio".

Então, de repente, reparei que os lampiões de gás estavam apagados. Sei que nesta época do ano eles são apagados bem cedo, antes do amanhecer, por economia; mas o dia ainda estava longe, tão longe de raiar!

"Vamos para os Halles", pensei, "pelo menos lá encontrarei vida."

Pus-me a caminho, mas não enxergava nada nem mesmo para me orientar. Ia andando devagar, como se anda num bosque, contando as ruas para reconhecê-las. Defronte do Crédit Lyonnais um cão rosnou. Virei na De Grammont, me perdi; perambulei, depois reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a cercavam. Toda a Paris dormia, com um sono profundo, apavorante. Mas ao longe andava um fiacre, talvez aquele que tinha passado por mim ainda agora. Tentei alcançá-lo, indo na direção do ruído de suas rodas, pelas ruas solitárias e negras, negras, negras como a morte. Perdi-me de novo. Onde estava? Que loucura apagar o gás tão cedo! Nem um passante, nem um retardatário, nem um vagabundo, nem um miado de gato apaixonado. Nada.

Mas onde estavam os policiais? Pensei: "Vou gritar, eles virão". Gritei. Ninguém respondeu. Chamei mais alto. Minha voz se foi, sem eco, fraca, abafada, esmagada pela noite, por aquela noite impenetrável.

Berrei: "Socorro! Socorro! Socorro!". Meu apelo desesperado ficou sem resposta. Que horas eram? Puxei meu relógio, mas não tinha fósforos. Escutei o leve tiquetaque do pequeno mecanismo com uma alegria desconhecida e estranha. Ele parecia viver. Eu já não estava tão sozinho. Que mistério! Recomecei a andar como um cego, tateando os muros com minha bengala, e a toda hora levantava os olhos para o céu, esperando que enfim o dia raiasse; mas o espaço estava negro, todo negro, mais profundamente negro que a cidade.

Que horas podiam ser? Parecia que eu caminhava havia um tempo infinito, pois minhas pernas amoleciam debaixo de mim, meu peito arfava, e eu sofria terrivelmente de fome. Resolvi bater no primeiro portão. Puxei o botão de cobre e a campainha retiniu sonora na casa; retiniu estranhamente, como se esse ruído vibrante estivesse sozinho naquela casa.

Esperei, não responderam, não abriram a porta. Toquei de novo; esperei mais — nada. Tive medo! Corri para a residência seguinte, e vinte vezes em seguida fiz a campainha ressoar no corredor escuro onde devia dormir o zelador. Mas ele não acordou — e fui mais longe, puxando com toda a força as argolas ou os botões, batendo com os pés, a bengala e as mãos nas portas obstinadamente fechadas.

E de repente percebi que estava chegando aos Halles. O mercado estava deserto, sem um ruído, sem um movimento, sem um carro, sem um homem, sem um molho de legumes ou um ramo de flores — as barracas estavam vazias, imóveis, abandonadas, mortas! Invadiu-me um pavor — horrível. O que estava acontecendo? Ah, meu Deus! O que estava acontecendo?

Fui embora. Mas a hora? A hora? Quem me diria a hora? Nos campanários ou nos monumentos nenhum relógio batia. Pensei: "Vou abrir o vidro do meu relógio e sentir os ponteiros com meus dedos". Puxei meu relógio... ele já não funcionava... estava parado. Mais nada, mais nada, mais nenhum arrepio na cidade, nenhum clarão, nenhum vestígio de som no ar. Nada! Mais nada! Nem mesmo o ruído longínquo do fiacre andando — mais nada! Eu estava nos quais, e subia do rio uma brisa glacial. O Sena ainda corria? Quis saber, encontrei a escada, desci... Eu não ouvia a torrente encapelando sob os arcos da ponte... Mais degraus... depois, areia... lama... depois a água... molhei meu braço... ele corria... frio... frio... frio... quase gelado... quase seco... quase morto.

E senti perfeitamente bem que nunca mais teria força para subir de novo... e que ia morrer ali... eu também, de fome, de cansaço, e de frio.

Fonte:
CALVINO, Ítalo (organizador). Contos fantásticos do século XIX : o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. (Tradução do Conto por de Rosa Freire D'Aguiar)
Imagem = montagem por José Feldman

Altino Afonso Costa (O Poeta e sua Poesia)


NÃO SOU POETA

Não sou poeta; faço tão somente poemas para exorcizar os demônios que tentam perturbar meu equilíbrio emocional.

Faço rimas como um pedreiro assentando tijolos, sem imaginar a altura do edifício.

Lentamente os versos vão sendo argamassados com inspiração e às vezes com desalento, mas continuo o trabalho sem descanso e ao final paro e analiso o que fiz.

Quantas vezes destruo o que já foi edificado, outras vezes, aliso as paredes rústicas, e as transformo em algo digno de ser admirado.

Não sou poeta; sou um simples operário dos meus sonhos desfeitos, erguendo muros que podem ser ruínas, ou recolhendo restos de ruínas, que poderão se transformar num castelo de ilusões.
G G G G G G G G G G G G

A POESIA E O MAR

A poesia é como a pérola;
Temos que mergulhar nas folhas dos livros
Como se estivéssemos abrindo uma ostra
E delicadamente retirá-la,
Para então exibi-la
A quem sabe admirar
Essa jóia literária.
Assim nos sentimos como catadores de pérolas
Em oceano profundo,
Quando fazemos o nosso recital de poesias.
É como se fossemos ao pélago
Silencioso do mar,
Com as algas verdes e azuis
Serpenteando ao sabor das águas,
Ocultando o mundo fantástico
Dos peixes multi-coloridos.
O nosso coração é o atol
Onde as emoções como conchas
Se refugiam nas paredes acolhedoras.
Pulsa o coração,
Pulsa o mar,
Banhando de espumas a eterna poesia
Do nosso universo interior.
G G G G G G G G G G G G

SAUDADE AO CAIR DA TARDE

A tarde fechou suas pálpebras à luz do sol que se escondia no horizontes, enquanto a noite surgia misteriosa e o céu exibia reluzentes estrelas conhecidas, emoldurando a via-láctea.

E o poeta sonhou com a sua amada que não veio ao encontro tão esperado.

O vento corria como louco, levando nas suas asas os lamentos do mundo.

Fiquei envolto na tarde, na noite e no vento à espera da alma gêmea que não veio.

Depois o tempo passou,o vento sumiu, surgiu um novo dia deixando uma saudade pungente no meu coração.

Fonte:
COSTA, Altino Afonso. Buquê de Estrelas: crônicas e poemas. 1. ed. Paranavaí,PR, 2001.
Imagem = Montagem por José Feldman

Altino Afonso Costa (1934 – 2003)



Poeta, cronista, declamador. Altino Afonso Costa nasceu em Avanhadava- São Paulo, em 07 de março de 1934.

Médico diplomado pela Faculdade de Ciências Médicas do Rio de Janeiro, em 1960.

Líder estudantil, durante a faculdade presidiu o Centro Acadêmico, foi representante estudantil na União Nacional dos Estudantes -UNE, e União Metropolitana de Estudantes -UME/RJ, além de representar os acadêmicos no Congresso Internacional de Estudantes de Medicina, realizado em Toluca, no México em 1957.

Pediatra, instalou-se em Paranavaí no ano de 1962, onde fundou o Hospital São Lucas em 1964, e atuou por vários anos na saúde pública e na perícia médica (INSS).

Como político foi um dos fundadores do Partido do Movimento Democrático Brasileiro - MDB em Paranavaí.

Foi presidente fundador da Associação Paranavaiense de Arte e Cultura - APAC.

Considerado "o paizão dos artistas paranavaienses", o poeta deu nome ao Teatro Municipal de Paranavaí, inaugurado em 1º de abril de 2003 com a denominação de Teatro Municipal, sendo em 16 de dezembro de 2004 nomeado Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa.

Faleceu em Paranavaí em 03 de maio de 2003.

Autor do livro de crônicas e poemas Buquê de Estrelas (2001)

Fonte:
Dinair Leite

Nilsa Alves de Melo (Reduzindo ao Essencial)



Viviam ambos na mesma casa. Tão íntimos.

No início da vida tudo foi muito bom! Cumplicidade perfeita, um “mar de rosas” como se costuma dizer. Alguns anos depois a casa foi se modificando, as diferenças foram aparecendo e as brigas foram aumentando ao ponto de um deles ficar doente e, às vezes, até os dois.

- Sossegue, amor!

- Como quer que sossegue? Tenho de falar, de pôr ordem nessa bagunça que você faz. Falta disciplina!

- Não vês que sofro?

- Tem é de encarar a realidade.

Outras vezes, o que se considerava tão cabeça dizia, até com jeito:

- Sossegue, amor!

- Como? Sinto como se tivesse um nó na garganta, tenho vontade de chorar, até de … morrer.

- Mas ainda ontem você não ocultava sua alegria quando lhe trouxe aquelas flores. Achei quase ridículo sentir-se nas alturas por causa de algumas flores.

- Algumas flores? Era isto para você? Vi foi o amor, a delicadeza, a forma como me foram oferecidas. Ah, me senti nas nuvens, sim, insensível!

Vê tudo atrapalhado, pensou o outro.

E as desavenças continuavam. Não queriam sair daquela casa, o seu universo, mas às vezes era insuportável. Um queria sobrepujar o outro. O disciplinado, enquanto dominava sentia-se bem, mas logo via tudo tão seco, insípido, sem a companhia impulsiva, meiga, sensível, vendo além do invisível…

Quando o mais doçura tentava dominar, ficava como que alucinado. Passava de uma sensação a outra e quase não podia dominar o sentimento que o invadia. Imaginação. Quem mesmo a havia chamado de “a louca da casa”? Ah, o disciplinado poderia pôr ordem naquele caos. Só ele sabia ver o que era prioritário, essencial. À sua intuição ele proporia sua informação; à inspiração, seu saber; à compaixão, a sabedoria.

Separavam-se, cada um para seu lado. Buscavam aprender um com o outro, mas nessas ocasiões eram divergências, na certa.

Pensaram em morar em ambientes separados, mas viram que precisavam um do outro – o doçura é que pensava assim. O disciplinado, nem tanto.

- Um dia, tudo passará!

Nesta afirmação os dois estavam de acordo

Numa bela manhã a doçura começou a sentir umas premonições de que iria deixar a casa. Ficou pensando como o tempo passou depressa. A casa já era considerada como antiga em comparação com outras novinhas que eles viam sendo construídas. A tecnologia apresentava cada vez mais recursos para consertar os estragos causados pelo tempo. Até que dava uma aparência diferente. Mostravam o antes e o depois – o depois sempre aparecia com um sorrisão aberto, forçado, mas não havia como esconder que o tempo passara por ela.

- Querido, vou fazer um puxadinho aqui.

E ele:

- Deixa desses puxadinhos. Só estraga a planta original. É um único conjunto. Esforcemos por conservá-la firme e segura, na medida do possível.

Falou com o disciplinado sobre seus receios, suas premonições. O que ele achava?

- Não são premonições. São fatos. Chegaremos ao fim juntos com esta casa.

- Tenho medo. Você ficará perto de mim?

- Claro. Só que vou pegar no sono antes de você. É você, doçura, quem, corajosamente vai apagar a luz e entregará a casa.

Madrugada. Pressente-se alguma coisa. A casa! Seria o fim a que tudo o que existe está destinado? Seria, sim.

O disciplinado adormeceu logo depois. A doçura ainda ficou pulsando, levando a despedida a todos os cômodos da casa, apagando a luz de cada um deles, até que, cansada, parou. Nem tentou chamar seu companheiro, pois sabia que seria o primeiro a sossegar. Seu amigo fiel por tantos anos naquele lar, também não acordou. Sabia que a doce companheira dormiria um pouquinho mais tarde para não acordar mais.

Cérebro e Coração, adormecidos naquela casa, nem viram quando ela foi soterrada, no outro dia, de tardinha.

Dizem que uma luz diáfana emanou dela. Reduziu-se ao essencial e tornou-se invisível aos olhos dos demais. Esse “essencial” levava, sorridente e envolto em luz, todo o aprendizado obtido pelos dois.

O anoitecer estava lindo!

Fonte:
Academia de Letras de Maringá

Sarau em Lingua Inglesa, na Livraria Cultura de Porto Alegre


Sábado, 25 de setembro às 16h

Tema: Sarau em Língua Inglesa

Palestrante: Maria da Graça Paiva e Kleber Schenk

Unidade: Bourbon Shopping Country
Endereço: Av. Túlio de Rose, 80 - Passo DAreia - Porto Alegre/RS
Local: Auditório

Sujeito a lotação. Capacidade de 89 lugares.

O 'Sarau em língua inglesa na Cultura' de setembro tratará de duas regiões do mundo bastante peculiares: a exótica, diversa, paradoxal e nem tão conhecida casa em que moramos, a América do Sul; e uma das mais bonitas regiões do mundo em que se fala inglês: a Escócia, que, culturalmente, está bem mais próxima de nós do que conseguimos imaginar.

O fórum será sobre música: sua importância como legado cultural, recurso terapêutico e instrumento para o ensino de línguas.

O evento terá a presença de Magnum Eltz, que fará um contraponto da Terra do Whisky com o continente em que habitamos e apresentará ao público músicas dos Beatles e do Pearl Jam; Sullivan e o Trio de Cordas apresentarão músicas celtas e tangos; e Milene Torma apresentará canções em diferentes idiomas.

Também haverá apresentação de pequenos poemas e de citações de sul-americanos e de escoceses famosos. O sarau sempre acontece em um clima descontraído e animado para desenvolver a autoexpressão em língua inglesa, em um ambiente cujo nome já diz tudo: cultura.

Fonte:
Livraria Cultura

Marcia Ligia Guidin (Curso: Como Ler Machado de Assis)

O curso abordará contos e trechos de romances do escritor e será dividido por temas. A finalidade é fazer com que o aluno encontre diálogo e coerência no modo de pensar do escritor e o localize como grande observador da sociedade, o que o torna extremamente atual.

Cada aula com duração de 2 encontros de 2hs.

Aula 1 - O tema do adultério
Memórias póstumas de Brás Cubas, D. Casmurro e os contos: A cartomante, A senhora do galvão, Noite de almirante , Singular ocorrência...

Aula 2 – O tema do apadrinhamento e das oportunidades
Memórias póstumas de Brás Cubas, D. Casmurro, Quincas Borba, conto: O caso da vara.

Aula 3 - A maldade humana, a dissimulação, vaidade e a política
Quincas Borba e Contos: A igreja do Diabo, o Enfermeiro, Uma senhora...

Aula 4 -O amor e o ciúme
D. Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Uns braços, Memorial de Aires...

Marcia Ligia Guidin - Mestre e Doutora em Letras (Literatura Brasileira) pela FFLCH da USP. Professora de Teoria literária, Literatura brasileira e Edição de texto. Editora externa e packager para Casas Editoriais em São Paulo. Palestrante para as áreas de Letras, Educação e Produção de textos.

Inscrições pelo telefone 11 3081-5845, visite o nosso site http://www.projetocultura.com.br/

Rua Portugal, nº43 (Fundação Ema Klabin)

Observação: Toda a obra completa de Machado de Assis está disponível na internet no site http://www.machado.mec.gov.br/

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Greta Marcon (Livro de Trovas)


Já vi muito cabra macho
Com medo de um ratinho,
Mas pra não ficar por baixo,
Tenho pavor de pintinho...

Sempre fui mulher guerreira,
Mas não sou feita de aço;
Eu já fiz muita besteira
E assumo o meu descompasso...

Eu tenho minas de ouro,
Pedras preciosas sem jaça;
Mas esse grande tesouro,
Eu dou pra você de graça...

Eu sei pra que serve a fé,
Daqueles que querem crer;
Pra covardes como eu,
ter coragem pra morrer...

Pelas estradas da vida,
Não ande na contramão;
Em cada curva escondida,
Tem perigo e tentação...

Pra mim é tudo sem graça,
Na vida nada me importa;
Sou a fumaça que embaça,
Sou a natureza morta...

No relogio do meu tempo,
Você está atrasado...
Não lhe vejo em meu presente,
Você ficou no passado...

Um dia eu te amei tanto,
Que pensei enlouquecer;
Mas descobri, no entanto,
Que era obsessão te querer...

Eu sei que meu tempo é curto,
Que minha alma tem pressa,
Mas de ti eu não me furto,
És tudo que me interessa...

Nada tenho a te ofertar
Na minha vida de agora;
Minha vida é meu passado,
Aceite como penhora...

Se o meu caminho tem flores
E o teu, somente espinhos,
Eu vou para onde fores,
Não vou te deixar sosinho...

Das trovas que eu fazia
E trovas que eu hoje faço,
Não tem a mesma poesia,
Não são nós do mesmo laço...

Minha comida é gostosa
Meu tempero tem pimenta
Do meu jardim sou a Rosa
Quem me cheirar não aguenta...

Se for uma brincadeira
Aceito até esculacho
Mas, se pisar no meu calo
Aí, não assino em baixo...

Não zombe da sua sorte
Não fique aí de bobeira...
O trem da vida é a morte
E você? A passageira...

Eu busco a felicidade
Mesmo em dias mais tristonhos
Se não quizeres me ajudar
Não se meta nos meus sonhos...

Quando sentir solidão cantarei
Um canto alegre para disfarsar
Quando sentir aflição rezarei
Pedindo à Deus que me faça sonhar...

Amar é deixar em liberdade
Poder confiar em quem se ama
A prisão é sempre crueldade
Que nos faz sofrer e apaga a chama...

Eu tenho duas opções
E pra isso sou bem pago:
Se eu lavo, não cozinho
E se eu cozinho, não lavo...

Precaver e desconfiar
Não faz mal nem paga imposto
Devemos guardar na mente
Que a maldade não tem rosto...

Eu conto muita mentira
Em meio a tanta verdade
Mas muita gente suspira
Dando solidariedade...

Pra ajudante de cozinha
Qualquer mané não esquenta...
Precisa ter pulso forte
Pra mexer minha polenta...
–––––––––––––

Greta Marcon: De família italiana de Jaguari/RS. Cantora, compositora, poetisa e artezã. 74 anos. Mente aberta, arejada, sem preconceitos. Reside em Ponte Nova /MG

Fontes:
http://www.overmundo.com.br/banco/e-tome-trovas
http://www.overmundo.com.br/banco/trovas-ao-leu-1

Rafael Castellar das Neves (Terra Firme)

Foto por Dias dos Reis (Cais das Colunas - Lisboa)
Há tempos me cansei daquela infindável busca por tudo o que sempre entendi e defini como meu complemento, como minha razão de existência.

Há tempos desisti de me aventurar por montanhas, desfiladeiros, desertos, florestas, abrindo caminho, abrindo feridas, me rasgando, me mutilando e me diminuindo nessa busca insana.

Há tempos reneguei a tudo, não por me julgar incapaz; mas por ter entendido que eu mudava a paisagem e me corrompia na busca de algo utópico, absurdamente idealizado.

Há tempos parei e sentei para chorar meu último e mais impotente choro, escondido em uma caverna apertada, onde espantei todos os meus fantasmas e curei todas as minhas feridas.

Há tempos me levantei forte e me dei à luz, de peito aberto, passos firmes e coração limpo.

Há tempos me lancei sorridente ao mar em minha canoa, não em busca, mas avulso à maré e aos ventos, apenas sendo deliciosamente levado e saboreando sedento cada batalha – com os mais diversos monstros marinhos – da mesma forma que a cada por do sol que me era oferecido.

Hoje acordei náufrago em uma terra desconhecida e, ainda desorientado e assustado, entendi que atingira minha tal utopia, absurdamente em minha própria realidade!

São Paulo, 02 de julho de 2010.

Fonte:
Colaboração do autor

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Trova 173 - Tasso da Silveira (Curitiba/PR)

Fernando Sabino (De Mel a Pior)



- Qual é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo adequar? - pergunta-me ele ao telefone.

- Nós adequamos - respondo com segurança.

- Primeira do singular - insiste ele.

- Espera lá, deixe ver. Com essa você me pegou.

E arrisco vacilante:
- Eu adéquo?

- Não, senhor.

- Eu adeqúo? Não pode ser.

- E não é mesmo.

- Então como é que é?

- Quer dizer que você não sabe?

- Deixe de suspense. Diga logo.

- Não tem. É verbo defectivo.

- E você me telefonou para isso? Verbo defectivo. Tudo bem. Eu não teria mesmo oportunidade de usar esse verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nunca me adéquo a questões como esta. Presente do indicativo ou indicativo do presente? - é a minha vez de perguntar. - No nosso tempo era indicativo presente.

E é sua vez de não saber. Desculpa-se dizendo que andaram mudando tanto a nomenclatura gramatical, que a gente acaba não sabendo mais nada.

- E o verbo delinqüir? - torna ele.

- Que é que tem o verbo delinqüir? - quero saber, cauteloso.

- A primeira do singular?

- Não tem. Também é defectivo. Mas ele é teimoso:

- E se um criminoso quiser dizer que não delinque mais?

- Se usar esse verbo, já delinqüiu. - E acresento, num tom de quem não sabe outra coisa na vida:- Além do mais, leva trema no u. Para que se fale delincuir, que é a pronúncia correta.

- Quem fala delinqir, sem o u, vai ver é da polícia.

- Ou quem fala tóchico, como diz Millôr.

- O Millôr fala tóchico?

- Não. O Millôr é que disse que quem fala… Ora, deixa pra lá.

Ele volta à carga:

- O trema já não foi abolido?

- Que abolido nada. Aboliram tudo, menos o trema

- Por falar nisso, outro verbo defectivo.

- Qual?

- Abolir: não tem primeira do singular.

- Como não tem? -reajo - Eu abulo.

- Neste caso seria eu abolo.

- Coisa nenhuma. Eu abulo, sim senhor. - E invoco a autoridade de quem sabe o que diz:- Não é eu expludo? Pelo menos o Figueiredo não me deixa mentir.

- O Cândido ou o Fidelino?

- O João mesmo. O presidente. Ele falou expludo e não explodo.

- Se essa regra vale, deveria ser eu cumo, eu murro, eu murdo…

- Então me diga uma coisa: Você sabe qual é a primeira do singular do verbo parir no indicativo?

- Ninguém pare no indicativo.

- Pare, e em todos os tempos, meu velho.

- Esse quem não corre o risco de usar sou eu.

- Pois então fique sabendo: é simplesmente igual à primeira pessoa do singular do verbo pairar.

- Eu pairo?

- É isso aí. Uma senhora que tem muitos filhos pode perfeitamente dizer: eu pairo um filho por ano.

- Co’s pariu.

- Se não quiser acreditar, não acredite. É a vez dele:

- Você sabe qual é o plural de mel?

- Já vem você. Mel não tem plural.

- Como não tem? Tem até dois. - E me conta que outro dia um entendido em mel fazia uma prelação sobre o assunto na televisão. No que saiu do singular para se meter no plural, quebrou a cara:

- Acabou falando que existem muitos mels diferentes.

- E não existem?

- Existem. Mas não mels. Com essa ele se deu mal.

- Se deu mel então. - Era a asa da imbecilidade começando a ruflar aos meus ouvidos:- Ou você vai me dizer que mel também é verbo defectivo?

- Perguntei a uma amiga minha que entende.

- De mel?

- Não : de plural. Ela confirmou: tanto pode ser méis como meles. Mels é que não.

A esta altura o mentecapto fala mais alto dentro da minha cabeça:
- Dos meles, o menor.

Como ele não responde, acrescento:
- Até logo. Melou o assunto.

E desligo o telefone.
---
P.S.: Quando foi escrito este conto, ainda não havia a nova ortografia.

Fonte:
As melhores Crônicas de Fernando Sabino. 2.ed. RJ: Bestbolso, 2008.