sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Nilsa Alves de Melo (Reduzindo ao Essencial)



Viviam ambos na mesma casa. Tão íntimos.

No início da vida tudo foi muito bom! Cumplicidade perfeita, um “mar de rosas” como se costuma dizer. Alguns anos depois a casa foi se modificando, as diferenças foram aparecendo e as brigas foram aumentando ao ponto de um deles ficar doente e, às vezes, até os dois.

- Sossegue, amor!

- Como quer que sossegue? Tenho de falar, de pôr ordem nessa bagunça que você faz. Falta disciplina!

- Não vês que sofro?

- Tem é de encarar a realidade.

Outras vezes, o que se considerava tão cabeça dizia, até com jeito:

- Sossegue, amor!

- Como? Sinto como se tivesse um nó na garganta, tenho vontade de chorar, até de … morrer.

- Mas ainda ontem você não ocultava sua alegria quando lhe trouxe aquelas flores. Achei quase ridículo sentir-se nas alturas por causa de algumas flores.

- Algumas flores? Era isto para você? Vi foi o amor, a delicadeza, a forma como me foram oferecidas. Ah, me senti nas nuvens, sim, insensível!

Vê tudo atrapalhado, pensou o outro.

E as desavenças continuavam. Não queriam sair daquela casa, o seu universo, mas às vezes era insuportável. Um queria sobrepujar o outro. O disciplinado, enquanto dominava sentia-se bem, mas logo via tudo tão seco, insípido, sem a companhia impulsiva, meiga, sensível, vendo além do invisível…

Quando o mais doçura tentava dominar, ficava como que alucinado. Passava de uma sensação a outra e quase não podia dominar o sentimento que o invadia. Imaginação. Quem mesmo a havia chamado de “a louca da casa”? Ah, o disciplinado poderia pôr ordem naquele caos. Só ele sabia ver o que era prioritário, essencial. À sua intuição ele proporia sua informação; à inspiração, seu saber; à compaixão, a sabedoria.

Separavam-se, cada um para seu lado. Buscavam aprender um com o outro, mas nessas ocasiões eram divergências, na certa.

Pensaram em morar em ambientes separados, mas viram que precisavam um do outro – o doçura é que pensava assim. O disciplinado, nem tanto.

- Um dia, tudo passará!

Nesta afirmação os dois estavam de acordo

Numa bela manhã a doçura começou a sentir umas premonições de que iria deixar a casa. Ficou pensando como o tempo passou depressa. A casa já era considerada como antiga em comparação com outras novinhas que eles viam sendo construídas. A tecnologia apresentava cada vez mais recursos para consertar os estragos causados pelo tempo. Até que dava uma aparência diferente. Mostravam o antes e o depois – o depois sempre aparecia com um sorrisão aberto, forçado, mas não havia como esconder que o tempo passara por ela.

- Querido, vou fazer um puxadinho aqui.

E ele:

- Deixa desses puxadinhos. Só estraga a planta original. É um único conjunto. Esforcemos por conservá-la firme e segura, na medida do possível.

Falou com o disciplinado sobre seus receios, suas premonições. O que ele achava?

- Não são premonições. São fatos. Chegaremos ao fim juntos com esta casa.

- Tenho medo. Você ficará perto de mim?

- Claro. Só que vou pegar no sono antes de você. É você, doçura, quem, corajosamente vai apagar a luz e entregará a casa.

Madrugada. Pressente-se alguma coisa. A casa! Seria o fim a que tudo o que existe está destinado? Seria, sim.

O disciplinado adormeceu logo depois. A doçura ainda ficou pulsando, levando a despedida a todos os cômodos da casa, apagando a luz de cada um deles, até que, cansada, parou. Nem tentou chamar seu companheiro, pois sabia que seria o primeiro a sossegar. Seu amigo fiel por tantos anos naquele lar, também não acordou. Sabia que a doce companheira dormiria um pouquinho mais tarde para não acordar mais.

Cérebro e Coração, adormecidos naquela casa, nem viram quando ela foi soterrada, no outro dia, de tardinha.

Dizem que uma luz diáfana emanou dela. Reduziu-se ao essencial e tornou-se invisível aos olhos dos demais. Esse “essencial” levava, sorridente e envolto em luz, todo o aprendizado obtido pelos dois.

O anoitecer estava lindo!

Fonte:
Academia de Letras de Maringá

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