sábado, 18 de setembro de 2010

Waldemar Pequeno (100 Trovas)


1
Nunca fales com desprezo
de um vaso, por ser grosseiro.
Só Deus sabe se, ao fazê-lo,
não tremeu a mão do oleiro.
2
Muitos mundos visitei,
levado por meu destino.
Mas nunca mais reencontrei
o meu mundo de menino.
3
Não sei, das flores da vida,
as que sejam do teu gosto.
As do meu - ninguém duvida -
são as rosas do teu rosto.
4
Não há fonte neste mundo,
rolando por entre escolhos,
que tenha o choro tão fundo
como a fonte dos meus olhos.
5
Uma rosa, em minha cova,
talvez brote deste amor,
como se fora uma trova
sob o feitio de flor.
6
Em meu tempo de estudante,
se algum mal me acontecia,
não sei como, tão distante,
minha mãe logo sabia.
7
Se à noite as roseiras sonham,
palpitantes e amorosas,
seus galhos, quando amanhece,
estão cobertos de rosas.
8
O jaó que ao longe pia,
pelas quebradas da serra,
reza, à tarde, a Ave-Maria
mais dolorosa da terra.
9
Se o sonho se foi, Maria,
não julgue o mundo medonho:
- depois de um dia, outro dia,
depois de um sonho, outro sonho.
10
Deus faz pouco da riqueza.
Aqui, ali e acolá,
quem quiser ter a certeza
basta olhar a quem a dá.
11
Goza a fortuna inconstante
antes que chegue a hora triste.
A alegria deste instante
amanhã já não existe.
12
Quando passo no caminho
em meu poldro russo-pombo,
muita gente diz baixinho:
- "Tornara que leve um tombo!"
13
Creio haver um ser divino,
mas duvido que haja ateus.
- O homem, que é tão pequenino,
não pode viver sem Deus.
14
Rio acima, as águas fendo,
remando minha canoa.
Vou cansado, vou sofrendo,
mas Deus me ajuda na proa.
15
Mulher é como perfume,
que se evola exposto ao ar:
- quando expõe os seus encantos,
eles deixam de encantar.
16
Negros eram seus cabelos,
os olhos - claros e francos.
Mas, com seus cabelos negros,
pôs os meus cabelos brancos.
17
Seja o rico, seja o pobre,
escolha os duros caminhos,
pois a coroa mais nobre
é uma coroa de espinhos.
18
Nosso Senhor deu-me a viola,
deu-me o que há de mais profundo:
- o canto que me consola
das tristezas deste mundo.
19
Minha mãe, quando nasci,
- doce mãe! - tanto rezou,
que é por pena que hoje finjo
ser feliz quando não sou.
20
Bem perto havia uma fonte
na terra em que ao mundo vim.
A água descia do monte:
chorando, meu Deus, por mim.
21
Pelas terras em que andei,
entre o belo, o puro e o vil,
nada no mundo encontrei
como o sorriso infantil.
22
Do melhor pinho foi feito
o instrumento que dedilho,
apertado junto ao peito
como se fosse meu filho.
23
Hoje vi quando uma abelha
pousava, tonta de amor,
em tua boca vermelha,
pensando ser uma flor.
24
Ó minha velha tristeza,
minha doce companhia!
Se algum dia me faltasses,
que tristeza eu sentiria.
25
Voam pelo ar as palavras,
leva-as para longe o vento.
- Mas, se as palavras se perdem,
não se perde o pensamento.
26
Quem me dera, solitário,
habitar naquele morro,
apenas com meu canário,
meu cavalo e meu cachorro.
27
Só vi que havia alcançado
tudo o que no mundo eu quis,
quando já tinha passado
o tempo de ser feliz.
28
O lírio o que tem é a fama
da parábola divina.
Vale mais para quem ama
uma rosa pequenina.
29
Não castigues teu filhinho!
Olha, ele erra sem saber:
- quer aprender o caminho
que terá de percorrer.
30
Lá se vão os bois serenos,
tão cheios de mansidão,
obedientes ao aboio,
sem saber para onde vão.
31
Rico, a todos menosprezas,
mas com franqueza te digo:
- por mais que valha a riqueza,
vale mais um bom amigo.
32
Tenho por meu padroeiro
um santo que é de valia.
Foi um simples carpinteiro,
mas é o esposo de Maria.
33
Uma rosa em seu cabelo
é uma coisa que me encanta,
como se fosse uma estrela
no cabelo de uma santa.
34
Quando alguém canta na rua,
tão silenciosa e deserta,
no céu, solitária, a lua
parece uma rosa aberta.
35
Não te queixes do destino
por escassez de prata e ouro.
O homem, por mais pequenino,
tendo Deus, tem um tesouro.
36
Mais que nunca ao mar adoro
nas noites brancas de luar,
quando o pranto que não choro
parece por mim chorar.
37
Não sei se eu ria ou chorava,
se foi sonho ou pesadelo.
Só sei é que me enforcava
nas tranças do seu cabelo.
38
Dizem que hoje é o nosso dia,
o dia dos pais... Convenho.
- Minha maior alegria
é ter os filhos que tenho.
39
A arvore morre de pena,
dando ao mata-pau guarida.
- Quanta gente também morre
pelo bem que faz na vida!
40
Deus pensava em coisas belas
quando fez a minha amada:
- deu-lhe o perfume das flores,
as cores da madrugada.
41
Nossa casa não é rica,
pobre, pobre, também não.
Mas quem entra, se não fica,
deixa nela o coração.
42
Talvez à casa tranqüila,
onde aos poucos anoitece,
já convertido em argila,
meu corpo um dia regresse.
43
A vida só pela infância
só por ela é bem vivida,
pois é o tempo em que se vive
mais ignorante da vida.
44
Seus olhos, o povo diz,
quando nos olham de frente,
parecem dois colibris
bicando os olhos da gente.
45
De tudo o que fui e fiz,
afinal, que resultou?
Que importa se fui feliz,
agora, que já não -sou?
46
A esperança nos afaga
como um sonho em nosso afã.
Mas é um sonho que se apaga
como a bruma da manhã.
47
Duas coisas neste mundo
bastam para meu agrado:
- pito de fumo de rolo,
mulher cosendo ao meu lado.
48
Quem tudo nos deu no mundo:
- água, fogo, leite, pães -
o que deu, de mais profundo
foi o amor de nossas mães.
49
Ouvindo, às vezes, na mata,
o seu gemido profundo,
penso que a fonte retrata
as mágoas todas do mundo.
50
Neste mundo de viageiros,
que vão por montes e valos
uns vão como cavaleiros,
outros vão como cavalos.
51
Talvez, teu fado ajustando,
Deus se omitisse um instante.
Por isso. vives lutando
por algo sempre distante.
52
Vais feliz, fico a chorar-te.
Afinal, isso se explica
se a saudade de quem vai
não dói como a de quem fica.
53
Os que dão esmola são,
quase todos, fariseus,
pensando, por um tostão,
ganhar o reino de Deus.
54
Minha terra, como és bela
com teu modo sempre novo!
- No alto do morro a capela
pedindo a Deus pelo povo.
55
Há uma luz que me alumia,
uma luz que o céu não tem,
nem de noite, nem de dia:
- a dos olhos do meu bem.
56
Sepulto-te, meu amigo,
meu pobre, meu velho cão,
como se neste jazigo
sepultasse o coração.
57
O que é bom para o Mateus,
é mau para Napoleão.
Como é difícil ser Deus
com tamanha confusão.
58
Para Deus, quando amanhece,
e ouve os pássaros cantar,
soa o canto como a prece
que a gente reza no altar.
59
Se, por mentira contada,
a boca perdesse um dente,
ó meu Deus, que desdentada
seria a boca da gente!
60
Que eu viva sem abastança,
sem amigo ou alegria,
mas seja minha esperança
o meu pão de cada dia.
61
Não gracejes das mulheres,
se não podes falar bem.
- Não há mulher que não seja
uma santa para alguém.
62
Lá, bem longe, na distância,
em cada esquina, um lampião
lembrava, na minha infância,
uma ilha na escuridão.
63
A memória é um telefone
entre o passado e o presente.
Como é grato ouvir por ele
as vozes de antigamente!
64
Seja meu túmulo aberto
de minha casinha em frente,
que eu quero ficar de perto
olhando por minha gente.
65
Messalina que ela seja,
não merece injúria tanta.
Não há mulher que não tenha
alguma coisa de santa.
66
De todos os bens do mundo,
jamais se alcança o melhor.
- Mas, dos pesares da vida,
o nosso é sempre o pior.
67
Por que, pensando na morte,
tesouros acumular?
Feliz será minha sorte
se só saudades deixar.
68
Ela é a melhor mãe que existe,
com seu grande amor profundo.
Pena é que eu também não seja
o melhor filho do mundo.
69
Estranho comboio é a vida,
que sempre passa a correr:
- ninguém o toma por gosto,
ninguém desce por prazer.
70
No mar cinzento da sorte,
cruzado de navegantes,
não há nau que me transporte
aos meus castelos distantes.
71
Que desencontro sem jeito
o mundo às vezes nos traz:
- eu ... perder a paz do peito
ao ver Maria da Paz!
72
A fruta caiu à toa,
porque ninguém a colheu.
Era uma fruta tão boa,
e foi em vão que nasceu.
73
Brilham em suas orelhas
duas jóias preciosas
lembrando duas abelhas
pousadas em duas rosas.
74
Não humilhe a quem é pobre,
nem ao rico inveje tanto.
Deus nos irmana e nos cobre,
a todos nós, com seu manto.
75
No azul dos seus olhos vejo
algo que me faz pensar
nos infinitos do céu,
nas profundezas do mar.
76
Na alma tenho uma paineira
que solta paina todo o ano.
Cada floco que ela solta
representa um desengano.
77
Quando ouço um trem apitar,
parece que a alma também
se perde, triste, pelo ar,
no longo, apito do trem.
78
Misteriosa fruta é a vida,
com outras não se parece:
- doce, quando ainda verde,
trava, quando amadurece.
79
Se no mundo o mal é tanto,
que torna a existência atroz,
as estrelas são o pranto
que a Virgem chora por nós.
80
Um mal com outro se casa,
qualquer deles prejudica:
- homem que não sai de casa,
mulher que em casa não fica.
81
Atravessei-te, Ano-Velho,
as águas em calmaria.
Grato pelo que me deste:
- sossego, sonho e poesia.
82
Na arquitetura do espaço,
as nuvens, singularmente,
dão forma, traço por traço,
a muito sonho da gente.
83
Há tanta coisa sem jeito,
sem que este mundo desande
- Como cabe no meu peito
uma saudade tão grande?
84
Uma casinha na mata,
uma espingarda e meu cão,
meu amor à espera e o fogo
sempre aceso no fogão.
85
Depois de minha partida,
virá o caos num momento,
pois tudo acaba na vida
quando acaba o pensamento.
86
Segundo ouvi de um emir,
homem de bom parecer,
o mal nem sempre é cair,
mas, cair e não se erguer.
87
Voa o espírito até lá
pelos confins da amplidão.
Mas, por mais longe que vá,
vai mais longe o coração.
88
Possam meus filhos também,
agora que a alma se vai,
pensar de mim tanto bem
quanto penso do meu pai !
89
Choro tão triste no mundo,
da tanta mágoa na terra,
só mesmo o choro profundo
de um carro-de-bois na serra.
90
Um cacho de uvas, Maria,
bom é de ver-se na vinha:
- a cor, o olhar aprecia,
- o gosto, a boca adivinha.
91
Ninguém desfaça de um crente
a fé que do céu lhe vem.
Seria como se a gente
cegasse os olhos de alguém.
92
A maior graça divina,
obtida por um cristão,
é essa filha pequenina
na palma da minha mão.
93
Pelo Cruzeiro do Sul,
em celeste resplendor,
à noite vela por nós
o olhar de Nosso Senhor.
94
O que mais a Deus eu peço,
quando ouço tocar o sino,
é que abençoe a meus filhos,
e lhes dê um bom destino.
95
Arde o fogo na lareira
contra a neve da estação.
- Mas, por mais que o fogo aqueça,
não aquece o coração.
96
Quanto maior a distância,
menos se ouve a voz do sino.
Mas, quanto mais longe a infância,
mais lembro que fui menino.
97
Bandeira de minha terra,
não te veja alguém jamais
içada em tendas de guerra,
mas só em templos de paz.
98
Veja o céu como tem vida,
chorando na noite langue:
- cada estrela é uma ferida
por onde escorre o seu sangue.
99
É vã toda a nossa lida,
pois tudo, afinal, se encerra
e se resume, na vida,
em sete palmos de terra.
100
Já posso morrer sem queixa,
eu, que vivi tão sem brilho,
pois nem toda gente deixa
um livro, uma árvore e um filho.
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Fontes:
OTÁVIO, Luiz e JORGE, J. G. de Araujo. 100 trovas de Waldemar Pequeno. Editora Vecchi, 1959. Coleção Trovadores Brasileiros.
Imagem = montagem de José Feldman com imagem de Trovador obtida na Internet e Bandeira do Portal São Francisco.

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