domingo, 12 de setembro de 2010

Igor Martins de Menezes (O Imortal Kalymor)


A busca por um amor perdido pode levar à imortalidade?

A cidade é Florianópolis, o lugar é a Catedral Metropolitana. Definir os acontecimentos desta noite não é tarefa fácil. A princípio um homem comum, atormentado como também um homem comum, deseja uma confissão. Expor a um padre seus pecados, na ânsia de que Deus possa estar ouvindo. Pecados que ele cometeu por causa de seu amor perdido. Crimes contra outros e contra si mesmo. E ele se perdeu no abismo de sua própria amargura.

RESENHA

_ “Quem diria que um dia eu estaria do outro lado do mundo? Quem diria que existiria o outro lado?” Lembro de ter ouvido este pensamento ecoando pelas paredes de meu apartamento, assim que ele cruzou a porta da frente. Encharcado pela forte chuva que caía naquela noite de carnaval, onde pelas ruas tomadas de foliões perseguia sorrateiro uma de minhas crias. Palavras simples em singelas frases, que certamente qualquer pessoa diria, sempre que chegasse a um lugar completamente novo. Mas, pronunciada por aquele ser peculiar, o sentido era muito, mas muito mais abrangente...

Uma busca frenética por uma vida não ocorrida. Um deus com o poder de gritar, mas que apenas sussurra. Um oceano de possibilidades, movido por uma simples poça. Estas seriam uma das definições mais plausíveis para Hans Kalymor. Um universo mensurável. Uma montanha com o ideal de uma simples pedra. Uma grandiosidade reduzida. Sim, reduzida, mas reduzida a quê? Reduzida por quê? Isto me assolou por um breve momento, mas, como poucas coisas neste mundo me intrigam, o instante logo passou. Deduzi, então, o que mantinha aquele pássaro preso ao ninho de seus medos. O que lhe prendia em sua incoerente inferioridade. Uma contradição, onde o mais sublime dos sentimentos fora capaz de marginalizar um homem. Duas facetas de um anseio, com extremos mais opostos que o céu e o inferno. Onde quem o tem, possui livre acesso a qualquer um deles...

E esse sentimento é, logicamente, o amor...

Lá estava ele então, a personificação do amor. Em sua forma mais doentia, mais destruída. Um homem, mais morto do que vivo, tanto em carne como em alma. Tão maravilhosamente perfeito para mim. Encantei-me também por seu apetite voraz para com as curiosidades distintas de meus aposentos. Cálices, criaturas empalhadas, livros. Quadros... Olhos que farejavam. Isto a eternidade lhe permitiu desenvolver com afinco. Talvez por isso contei-lhe todos meus segredos. E talvez por isso hoje ele detenha, simples e inteiramente, o conhecimento absoluto...

Então, depois de longos anos, evidentemente curtos para mim, vejo-o novamente. Desta vez saindo de uma catedral. Está próximo do amanhecer e minha condição não me permite ficar aqui à espera desse fenômeno. Eu até que poderia, mas é algo que não me agrada. A mesma capa, o mesmo caminhar arrastado. A mesma dor. Mas agora seus passos estão lentos e confusos, quase tímidos. Desta forma ele desce toda a escadaria. No final, se vira, fitando a catedral com olhos maravilhados de uma criança. E de longe eu ouço um “obrigado”. Seus ombros, então, não mais pesam. Sua dor se esvai como chuva em bueiro. E sinto sua alma, pela primeira vez, sorrir. Hans Kalymor, o filho que não tive, a cria que não me pertenceu, teria finalmente encontrado o fim de sua eterna busca? Leio seu pensamento novamente, assim como o fiz em meu apartamento há alguns anos. E descubro tudo o que ocorreu. Daria um excelente conto. A narrativa de uma eternidade em uma simples madrugada...

Este é apenas mais um dia trivial de nosso tempo. Na verdade, mais uma noite trivial. A cidade é Florianópolis, o lugar é a Catedral Metropolitana. Definir os acontecimentos desta noite não é tarefa fácil. A princípio um homem comum, atormentado como também um homem comum, deseja uma confissão. Expor a um padre seus pecados, na ânsia de que Deus possa estar ouvindo. Pecados todos que giram em torno do amor. Poderiam então, ou sequer deveriam, ser chamados pecados? Eis o amor, levando ao céu e ao inferno... a chave-mestra de dois distintos aposentos. Ele entrou no início desta noite, acanhado e temeroso. Por séculos não se confessava, literalmente. A catedral o atormentou logo em sua chegada, como se ele fosse um insulto, uma afronta. E realmente o era, pois aquele templo de paz estava sendo visitado pelo maior de todos os pecadores. Era o que ele pensava, o que julgava ser. A dor do remorso aumenta consideravelmente o sentimento de culpa. Acho isso uma tolice, mas infelizmente é uma verdade, até mesmo em seres superiores como ele. Mas não vou meditar sobre isso agora. Vou apenas me deliciar com as lembranças que extraí de sua mente neste instante...

“_ Padre! Faz muito que não venho num lugar como este. E só hoje reuni forças para aceitar meu castigo. O que devo fazer?

_ Conte-me sua historia, meu amigo!_ Diz o padre_ Deus está lhe ouvindo e pronto para perdoá-lo por qualquer pecado que tenha feito. Apenas abra seu coração e ele abrirá seus braços.

_Acredita que ele esteja ouvindo? Acredita mesmo na igreja, nos santos e nos anjos? Acredita na sua fé?

_Se eu não acreditasse estaria aí no seu lugar agora. E, se você também não acreditasse, este lugar estaria vazio.”

Assim eles começaram. Visivelmente Hans estava receoso, e logo desejou uma espécie de afronta com o padre. Uma defesa instintiva, um ataque na hora do medo.

“_Meu nome é Hans Kalymor, filho de Carlos e Simone Kalymor. Ambos cristãos que morreram em nome de Deus. Não sei como foi. Era muito pequeno e foi só o que me disseram. O lugar era uma planície ao leste do reino de Yarkan, na atual Eslováquia. O ano, bem, não vá se assustar, padre, 1196 depois de Cristo.”

Isto foi um choque...

“_Como disse, a planície era linda. Vivíamos em barracas ou casas construídas para logo serem abandonadas. Éramos nômades. Uma tribo de nômades que pregava a palavra de Deus e os ensinamentos de Cristo por todo o reinado. Não éramos a única tribo de cristãos que existia. Havia dezenas. As pessoas gostavam das palavras e da felicidade que passávamos para elas. Claro que existiam outros credos e seus seguidores não gostavam nem um pouco de nós. Mesmo assim continuávamos. Vivíamos da hospitalidade do povo, da caça, da venda de artesanato e da luz dos céus.

Quando meus pais morreram, um grande amigo deles me criou. Altair, clérigo de Deus. Era assim que chamavam os atuais padres. Ele não tinha filhos, e viu em mim uma possível família. Eu o via da mesma forma.”

Altair. Há muita consideração quando ele pensa nesse nome. Muito carinho e devoção. Mas também aí reside um de seus maiores pecados...

“Observava a alegria dos pais quando os filhos traziam a primeira presa. Ficava um pouco triste. Não tinha para quem trazer aquilo como as outras crianças tinham. Lembrava do dia da colina e sempre que conseguia caçar algo, levantava em direção ao sol. Mostrava minha presa, de alguma forma, para meus pais.”

Um órfão. A dor de uma criança sem os pilares de uma família. Projetando em um elemento grandioso suas imagens. Representando a importância que tinham para ele tanto quanto o sol para o mundo. Desta forma invejava os outros. E a inveja o isolou.

“Certa vez no almoço as crianças estavam jogando restos de comida umas nas outras e um pouco bateu no meu rosto. Todos riram sem parar. Fiquei muito bravo. Até que uma menina, que eu jamais havia conversado antes, tocou em meu rosto, me pedindo desculpas. Por um instante me paralisei. Não sabia por que, mas não consegui dizer uma única palavra. Ela limpava meu rosto e eu apenas observava. Depois disso, olhei para Altair. O velho clérigo já estava me olhando. E, por baixo daquela curta e grossa barba, pude ver um sorriso.”

Até este momento. Quando conheceu a pequena e doce Marina...

Mas no que me delicio mesmo não são nesses momentos. Prefiro me ater na afronta. Nas tentativas de Hans de querer confundir e ludibriar o padre. A história alucinante de seu passado, habitado por centauros, minotauros e dragões. E sobre o que ele mesmo era de fato.

“_E como posso ter mais de 800 anos? Seria um imortal? Um elfo? Um vampiro? Talvez só um louco qualquer?

_Um imortal? Não. Pois não temeria o julgamento de Deus a ponto de estar num confessionário. Um elfo? Bem, desconheço essa espécie, mas creio que não são cristãos. Um vampiro? Jamais entraria aqui. Um louco? Não levantaria essa hipótese, se realmente o fosse.”

E também em diversos outros pontos...

“O clérigo falava algo sobre anjos. Dizia se tratarem de seres celestiais, que existiam cada um com um propósito. Uma missão. Não como um fardo, ou uma responsabilidade que representasse uma espécie de “peso” em suas costas. Mas um motivo que justificasse sua existência. Não eram seres que devessem ser venerados como semideuses. Mas, no meu entender, criaturas que deveriam ser idolatradas pelo que representavam. Mesmo que muitas vezes não pudéssemos compreender o que representavam. E também o que eram. Anjos, segundo Altair, eram a personificação de uma causa, que talvez fosse inatingível para um mortal, mas que deveria ser alcançada em benefício dos próprios mortais. Como um guia para uma pessoa perdida e sozinha. Talvez mais como uma correção de um fato que estivesse seguindo um curso errado. No caso dos mortais, uma força para que não se perdessem de seu destino.”

Mesmo que eu busque com afinco por estes questionamentos, sua mente se perde em lembranças. E o sentimento de amor sempre retorna...

“Começava a ver o mundo com outros olhos. Mais precisamente, começava a ver Marina com outros olhos. Ela encantava-me. Sua simpatia, sua beleza. Responsabilidades na tribo limitavam nossas brincadeiras juntos. Mas quando tínhamos um tempo para nós, aproveitávamos da melhor maneira possível. A alegria de estar com ela há muito já havia mudado de nome. Passou a se chamar amor. Meu primeiro. Meu único. Minha semente que germinava em meu coração.”

Este amor então se estendeu. À medida que Hans tornava-se um homem...

“Como foi lindo amar. Como foi puro. Como foi saboroso. Nem o mais poderoso dos elfos pode imaginar uma magia como esta. Nenhum mago pode replicá-la. O amor é a alma da vida. E sem ele, não passamos de corpos animados, que vagam numa eterna busca por um sentido. Poucos homens têm isso na vida. E poucos homens, no fardo de seu machismo, se permitem isso. Há homens que têm tudo, mas não têm amor. E há homens que nada têm, mas possuem um amor. Qual deles é o mais rico? Qual deles é o mais feliz? Qual deles possui o maior sorriso? Se perguntarmos para o ego, ele dirá o primeiro. Mas, e se perguntarmos para o coração? E se perguntarmos para a vida?”

Quase posso sentir seu coração pulsar novamente quando se lembra deste momento. De como acreditou que sua união com ela seria eterna...

“Levantei seu véu em seguida. Retirando a última barreira que nos afastava. Com um beijo concretizamos nossa união. Deus, em seu pergaminho celestial, deu mais um ponto, a partir do qual iniciaria um novo parágrafo.

Abraçados nos deitamos. Ela respirava ofegante. Seus músculos estavam todos contraídos. Seus olhos cheios de lágrimas. Apertava-me forte, e quanto mais seu medo crescia, mais forte era seu abraço. Mesmo com toda delicadeza possível, nós, na condição bruta de homens, jamais saberemos como tocar em uma mulher. Jamais entenderemos tudo o que seus olhos nos pedem. Tudo o que a força de seu suave toque nos quer dar. A expressão de seus corpos, quando o tocamos, jamais será corretamente descrita. Palavras não definem a divindade de uma mulher. O seu colorido jamais será pintado. Sua forma jamais será esculpida. Quando as tocamos, mesmo com o mais leve dos toques, sempre será como um urso acariciando uma borboleta. Como um relâmpago beijando o chão. Ainda lembro do seu calor. Do seu envolvente cheiro. Do suor lavando meu corpo, como um batismo em água benta. Não havia céu, ou terra, ou festa, ou barraca. O mundo não estava ao nosso redor. Havia apenas ela e eu. E a soma de nossas vidas.”

Se felicidade para os mortais é o amor, o que lhes resta quando o perdem?

“Ele a segurava pelos cabelos com uma das mãos. Enquanto a outra alisava seu pescoço, retirando delicadamente uns poucos fios que ali restavam, como numa espécie de ritual. Eu não sabia o que fazer. Correr em sua direção me parecia a atitude mais óbvia, mas o vampiro poderia atacá-la ao ver minha aproximação. Por outro lado, ele poderia atacá-la a qualquer momento, já que ninguém o ameaçava. O que fazer? Que reação tomar perante essa situação? Enquanto eu corria, amaldiçoando minhas pernas por não poderem fazer mais, por não serem mais rápidas. Enquanto eu olhava o rosto de Marina, enquanto eu era dominado pela sensação de incapacidade. Enquanto percebia que de nada valiam as súplicas, ele, num rápido movimento, expondo seus enormes dentes caninos, a mordeu.”

Eis o início de sua dor. O começo de seus sórdidos pecados. Sua queda. Sua esposa não apenas morta, mas transformada. Convertida na mesma forma bizarra que o monstro que a atacou. Situação esta ainda mais terrível. Pois, como todo monstro, não poderia ser aceita ali. E a morte veio mais uma vez para ela. Conseqüentemente também para ele...

“_Marina, _comecei _olhe nos meus olhos. Veja bem fundo, e somente eles. Quero que, não importa o que aconteça, acredite em mim. Saiba que tudo isso não passou de um sonho. Um terrível pesadelo, e somente eu estou aqui.

_Nós morremos, não foi? Morremos, e nossos espíritos estão se despedindo. Não sei o que está acontecendo, mas acho que faço alguma idéia. Não sei se eu morri, ou se morremos ambos. Apenas sei que algo não está bom. E acho que tenho que falar algumas palavras. Você foi a coisa mais maravilhosa que me aconteceu. O homem da minha vida. Quem sempre sonhei para seguir ao meu lado. Sou grata a Deus por ter me concedido esta oportunidade. Sou a mulher mais completa deste mundo, pois tenho o mais verdadeiro dos amores. Desculpe se fui a culpada disso que ocorreu. Mas obrigada por estar comigo numa hora como esta. E em todas as outras que você esteve. Para onde quer que nossas almas possam ir, por mais distantes que fiquem, eu sempre vou amar você, meu querido Hans Kalymor!

_Há um pequeno espaço no tempo. Uma brecha onde não estamos totalmente vivos nem totalmente mortos. Um pedaço em que nos esquecemos de viver e não nos lembramos de morrer... é quando dormimos. Será lá, Marina, nesse intervalo de vida, quando acordo para os meus sonhos e durmo para minha existência, que estarei te esperando!”

Os primeiros raios de sol da manhã a destruíram. Em seus braços ela se foi, como em uma lufada de vento. E ele se perdeu no abismo de sua própria amargura. A dor chega até mesmo a me corroer. Hans tornou-se uma mera carcaça. Vagou desolado, até esta mesma desolação tornar-se revolta. Ele um cristão, dos verdadeiros, servidor de Deus desde seu nascimento, fora abandonado no único momento em que precisou. Naturalmente a descrença tomou sua alma. E a dor virou atitude. Hans embeveceu-se de vingança, e odiou a Deus por sua ausência. Sua revolta fora tamanha, que contagiou a outros de sua tribo. Um grupo de homens que nada mais tinha a perder, pois tudo já lhes havia sido tomado. Buscaram por vampiros, então. E procurando a morte, naturalmente a encontraram. Deus os abandonou mais uma vez. Fazendo a injúria não somente assolar, mas zombar de sua alma. O abismo tornou-se mais profundo. As lutas foram tantas quantas foram as baixas. A cada brandir de sua espada percebia os gumes de sua fraqueza. De sua reles condição humana. E entendeu que como homem não poderia seguir em frente. Sua busca era maior que sua condição. Então, por uma cilada do destino, ele novamente caiu. Tornou-se imensurável o abismo de sua alma. Um monstro agora. Um morto, um zumbi. Para mim, maravilhosamente belo em sua essência. Um imortal. Eterno em sua dor, banhado em culpas que se perdem nas linhas dos séculos...

“Dei-lhe um forte abraço! Como um filho faz em agradecimento ao seu pai. Senti suas lágrimas se mesclarem às minhas e inundarem um dos lados de nossas faces. Eu amava aquele velho com uma força incrível. Ainda hoje remôo minha alma quando penso no que poderia ser diferente se eu não tivesse fechado aquela porta.”

Despediu-se de Altair...

“Galhos que se projetavam em direção às plantações, que pareciam braços me chamando para não partir. Observei admirado que, nas raízes da árvore, uma forma humana erguia-se como que por encanto. Havia uma figura, fantasmagórica pelo seu modo de surgir, e bela por sua graciosa forma. Uma menina linda havia se conjurado diante de meus olhos, com cachos negros escorrendo em frente de sua face. Numa respiração profunda, puxou para dentro de si não somente ar, mas com ele toda a vida que antes não tinha. Logo, não mais era uma escultura, mas uma criança. Começou a escalar a árvore, como um fruto que deseja voltar à sua mãe. Lentamente, à medida que fugíamos do chão, seu corpo parecia crescer a cada vez que suas unhas e pés se prendiam nas frestas da madeira. Logo, eu estava rindo como há muito não fazia, pois me dei por conta de já ter feito aquilo antes, com aquela mesma pessoa. Marina estava graciosa, e como num leve e implorado sonho, começamos a subir a árvore como crianças novamente. E os anos que vivemos passavam diante de nós, à medida que subíamos, deixando os galhos que ficavam para baixo como testemunhas de cada época. No final, quando as estações do tempo não mais se apoiavam nos galhos, Marina estava como da última vez em que a vi. Ela mantinha o sorriso nos lábios, e com uma alegria infantil pegou-me pela mão. E surpreendentemente se jogou da árvore. Como bailarinos do espaço, de mãos dadas, iluminados pela lua e tendo o trigo como um imenso tapete, cortávamos o vento na velocidade dos pássaros. E esquecendo completamente da altura, nos amamos, cavalgando as correntes do ar. Talvez Deus tenha tentado se redimir, e a tenha tornado um anjo.”

Despediu-se de Marina? Ou talvez a tenha encontrado para somente se despedir mais uma vez?

“Entrei no corredor de árvores retorcidas que dava acesso à porta da frente da casa de Zacchi. O mago apareceu uns passos adentro. O necromante fitou-me de uma forma que nunca havia feito antes. Olhava para mim quase como se não me conhecesse mais, ou como se fosse a primeira vez que nos víssemos. A lua lancinou de uma absurda intensidade. Não, não era mais a lua, mas o sol, que mostrava seus primeiros raios. Virei meu rosto em sua direção, pois o astro ainda não tinha tanta força para me cegar. Por sobre as densas árvores que compunham os arredores da morada de Zacchi, vi, a silhueta, perfeita, de meus pais. Estavam de mãos dadas, lado a lado. Pareciam seres feitos de porcelana. Bonecas divinas. Uma melancólica imparcialidade eclodia naquela imagem. Com um movimento leve, ambos acenaram para mim, em despedida. Tirando minha atenção daquela imagem, o necromante me chamou. E falou palavras ainda mais estranhas do que tudo o que havia acontecido até então.

_Hans Kalymor! Conseguimos!”

E compreendeu que estava, sim, despedindo-se de sua própria vida...

“Você morreu, Hans Kalymor! Era o início desta madrugada. Sua alma deixou este corpo e vagou. A morte é diferente para cada um, assim como sua aceitação. Não sei o que viu, não sei o que sentiu, mas as portas do outro mundo foram ignoradas, por isso está aqui. Você não quis, Hans, entrar definitivamente para o outro lado. Isso é único. E, no meu ponto de vista, uma tolice. Eu o matei, neste mundo, e o impedi de ir para o outro. Não há definição correta para o que se tornou. Você é uma linha tênue, uma corda bamba, o extremo do meio, o início do fim. Um morto-vivo, nem vivo e nem morto.”

Zacchi, o mago necromante que o imortalizou. Tornando-o pior que os monstros que buscava destruir. Bestial por opção, grandioso aos meus olhos, mas miserável por si mesmo. Eis agora o Imortal Kalymor. O extremo desgarradamente sofredor do amor. Agora eterno. Eterno em pecados, eterno em sina. Acima das ordens e leis do tempo. Com infinitas possibilidades de aprender no leito dos séculos. Com este propósito ele desejou a mudança. E foi exatamente assim que ocorreu...

“_Espantosa sua capacidade em aprender! _Disse o mago. _Os livros são devorados numa única leitura. E nada é perdido. Todas as nuances são por você fixadas. Estranhamente não passa de um zumbi, mas o invejo. A incrível grandeza de sua inferioridade. Em pouco tempo será um mago muito mais poderoso do que eu.”

Aprendendo magias do plano dos mortos. Por aí ele começou...

“Quando compreendi minha nova natureza, tudo ficou mais claro. Vi o que realmente somos, o que deve corretamente ser chamado de “eu”. Somos nosso espírito, e o corpo simplesmente nos pertence. A correta definição de alma é que ela é a manifestação de nosso espírito, quando unido ao corpo através do cordão de prata. A alma é nossa personalidade, nossas escolhas, nossa forma de viver este pequeno instante no mundo. A alma é somente uma característica do espírito.”

E não mais parou...

“A alma não se materializa da forma humana, como estamos acostumados a imaginar. Tinha que procurar as maneiras que cada um se via em sua morte. Às vezes eram imensos rochedos, se uma pessoa fosse extremamente conservadora e egoísta, ou uma simples fagulha de luz, quase imperceptível, se fosse de alguém que se achasse muito insignificante, mas com um potencial reprimido, representado pelo fato de mesmo a luz sendo fraca, poderia crescer e se expandir, a ponto de clarear totalmente um ambiente.”

Ele aprendeu. Dominou a morte e suas trilhas. O tempo levou o necromante, seu único companheiro. Outros homens surgiram para seu aprendizado, qualquer um que pudesse contribuir para sua evolução. Desta forma viu um mundo que corria ao seu lado. Acompanhou pessoas que em sua comum forma guardavam grandes essências. Inspirou-se em homens maiores que sua condição. Simples humanos tornaram-se eternos em seus atos.
E nesse ínterim, viu também o extremo oposto de seu conhecimento...

“_Você é contrário a tudo isto que está ao seu redor! _Disse ela. _Adverso de uma maneira que talvez não exista nada mais distante. Possui os olhos da morte, e deseja observar a complexidade da vida.

_Abra meus olhos, então, para o que realmente devo enxergar.

_Tem que aprender a usar seus olhos não somente para captar uma imagem, mas fazê-los com que compreendam esta imagem. Veja com a razão. Veja com inteligência. Existem incontáveis árvores e animais. Você capta cada um como um componente desta paisagem. Esta árvore a nossa frente, por exemplo, você a vê desta forma, não é? Mas quando olha para mim, o que vê? Uma mulher? Uma elfa? É isto que irá me responder. Mas por que não pode me ver, também, como uma árvore? Não posso ser para seus olhos mais um detalhe desta paisagem?

_Não! Você é mais que esta simples árvore. Tanto que pode até mesmo movê-la com seu pensamento.

_Então somos, eu e você, completamente diferentes desta natureza toda que nos cerca? Como pode conceber esta incoerência, estando aqui? Se esta árvore é diferente de mim, como pode precisar deste local tanto quanto eu? Será que ela não o ama de uma forma semelhante à minha? Eu sou esta árvore. Assim como ela também é algo como eu. Sou o ninho que sustenta os filhotes dos pássaros. Sou os galhos onde estão esses ninhos. Sou a chuva que beija a terra, e a terra que é beijada pela chuva. Sou tão poderosa por ser tudo isto, e tão simples por ser cada uma dessas coisas. Sou a última gota de orvalho que escorre da folha que possui esta graça. Assim como todas as outras folhas que continham todas as outras gotas que escorreram, detentoras da mesma graça. Sou os pés que pisam a grama, mas também sou as inúmeras folhas desta mesma grama, que em um imensurável esforço conjunto empurram meus pés para cima. Sou a semente que iniciou isto tudo, assim como o último de seus frutos. Quando seus olhos lhe mostrarem a natureza, em sua real forma, saberá que estará também olhando para você mesmo. Eu, você, aquilo ou isto, são termos que não se aplicam a esta imensidão. Pois tudo não passa de um conjunto. Pode parecer estranho, mas esta é a gloriosa unidade de nós mesmos. Isto é o que quero que enxergue. Pois isto é simplesmente a vida.”

Aprendeu sobre a vida, em seu sentido global. Magias relacionadas à natureza o tornaram muito mais poderoso. Nascimento, morte, renascimento. Todos os pontos ele dominava. Da totalidade, agora restavam apenas as nuances. Procurou então inspiração nas mínimas coisas, que para ele tornaram-se divinas. Viu conceitos simplórios, que os mortais tanto prezam, serem elevados ao extremo. Honra, respeito, virtude. Viu homens abdicarem de suas vidas em prol de uma causa. Normalmente um sonho tolo. Mas por vezes, nessas observações que fazia com freqüência, descobria que a simples vontade de alguém pode ser a mais notória das magias...

“Ajoelhou-se e tateou o chão sem explicação. Queria achar alguma coisa que lhe prendesse a atenção e o fizesse, mesmo que sutilmente, esquecer onde estava. Nos escombros, encontrou uma pequena cruz, símbolo de sua antiga adoração. Fitou-a com amargura, fazendo seus dedos escorrerem pelos contornos do objeto, como se pedissem desculpas. Em sua alma suplicava por perdão, e desejava veementemente ser julgado por aquilo. Arrependeu-se de seus crimes, sabendo que não eram somente os crimes das mortes que causou, pois pecou muito antes disso, quando realizou seus sonhos. Errou, quando se tornou um cavaleiro, e viu que de fato nunca fora um. Quando passou a adorar um deus diferente de suas origens, em prol desse sonho. E percebeu que por ele destruiu o Deus que realmente lhe importava.”

Referindo-se a Ismael, um dos Cavaleiros do Dragão, um não nobre de berço, mas de atos. Que me foram importunos por um tempo. Hans fascinou-se por este homem, o que me levou a finalmente encontrá-lo, para um acordo. Para que ele pudesse destruir o cavaleiro, ofereci ninguém menos do que o vampiro que tomou sua amada. No auge da guerra de maior repercussão na história deste mundo, que nenhum mortal de agora sequer ouviu falar, ele o faria. Mas, o fascínio superou seu desejo de vingança, em prol de uma causa maior que sua dor...

“Poderia atacá-lo pelas costas, sem que soubesse o motivo. Pensei incessantes vezes em Winslet e no trato que fiz com Malberon. Lembrei da face do primeiro, ao me reconhecer em seu cativeiro. Em seus olhos rubros observei a vida de Marina, estampada como lágrimas. Como se de alguma forma estivesse ainda viva, mas presa em seu corpo nefasto. Como se aquele ladrão a guardasse em seu bolso, e como um pingente a chacoalhasse de um lado ao outro, brincando exibido, deixando-me a salivar, parecido com um animal esfomeado. Fitando Ismael, ao mesmo tempo em que fitava minha recordação, e nesta constante troca de imagens, fiquei. Constantemente a figura de um acendia, enquanto a do outro se apagava. E nesse vice-versa macabro, que já passava ante meus olhos como fagulhas, meu ódio crescia, assim como minha admiração. Winslet proporcionava o primeiro sentimento, e Ismael o segundo. E por vezes suas imagens, de tão rápidas que eram, chegavam a se sobrepor. E eu não sabia mais a quem odiar ou admirar. O Cavaleiro fora aos poucos sendo visto como mais uma de minhas vítimas. Cuidadosamente selecionado por seus pecados, merecedor de minha punição. Passei a vê-lo desta maneira, para poder cumprir com minha parte no trato. Desta forma, saí das sombras como um lobo, com fúria e bestialidade. Para trás, ficariam somente as pegadas de minha consciência, esculpidas em areia fina, que fácil e rapidamente se apagariam. Eu em nada me parecia com aquele homem. Jamais teria um resquício de sua integridade, de seu valor. Sua coragem para mim era inalcançável como um esticar de braços na noite, na tentativa de colher uma estrela. Suas escolhas, suas renúncias e seus atos ecoavam como histórias de ninar, contadas a jovens anjos. Assim, já entrando na ponte, com a espada gemendo, eu estava na iminência de fazê-lo, quando, interrompendo, percebi o enorme ogro, que se aproximava com o tamborilar de suas passadas.”

Permitiu que Ismael vivesse. E libertasse o reino dos domínios do Deus-Dragão...

“_A vitória lhe sorri, meu Cavaleiro! Mas ao preço de uma tênue comemoração.

_Por que diz isso? _Perguntou Ismael. _Livramos o reinado de você, e todos poderão viver livres a sua maneira, cultivar suas crenças e tradições. Ninguém mais se curvará oprimido, forçosamente tendo que aceitar a sua religião.

_E qual aceitarão? Acha mesmo que seguirão todos os povos para seus cantos, e reimplantarão seus reinos? Acha que se dividirão por uma razão tão fútil? Jamais irão se desgarrar do que há séculos já está formado. Fragmentar novamente Yarkan significa retroceder, significa perder exércitos e relações. Significa fragilizar.

_Podemos então ainda ser esse reinado, mas admitirmos a religião de todos.

_Não seja tolo, Ismael! São apenas homens e jamais conseguirão caminhar por suas próprias pernas. Dependem de algo superior. São por natureza submissos. Os homens não buscam a liberdade para que possam seguir sozinhos. O que os prende, o que os sufoca, é somente a necessidade que possuem de se sentirem inferiores. São os únicos seres neste planeta que buscam por opressão, mas envergonhados não admitem esta palavra, preferindo se referir a ela como “caminho”. Caminho para a salvação, caminho para o certo. Enquanto os homens existirem, existirá algo superior que os guiará, e jamais o contrário. Fala que eu os oprimi, mas apenas dei o que desejavam. Hoje partirei, mas meu lugar terá que ser preenchido. Eles anseiam por isso. E quem melhor que o Deus que os libertou?

_Não! _Ismael balbuciou. _Não será desta maneira.

_Nada mudará, porque os homens são estúpidos demais para mudar. Há somente um derrotado aqui: você! Pois não livrou ninguém. Apenas trocou um deus por outro...”

Desoladora verdade. Ergueu-se desta maneira, continuando assim até os dias de hoje, o Deus dos cristãos...

E o tempo passou. O mundo mudou. Hans conheceu todas suas terras. Enquanto eu lentamente ganhava espaço entre os homens, que distorciam suas visões. Enquanto eu destruí tudo o que era místico e o que não era humano. Enquanto exterminei todas as espécies na Inquisição, e dizimei a magia. Enquanto eu, e eles próprios corrompiam os ensinamentos de Deus. Fazendo com que, desta maneira, eu os domine, o que por séculos venho fazendo. O mundo é hoje fruto unicamente de meus anseios.

Então, novamente nos encontramos. Meio milênio depois. Em meu apartamento ele se deslumbrou com a decoração. Com os detalhes da história da humanidade, em minhas coleções. Mas nada comparado com o que de mais precioso lhe mostrei. A resposta definitiva para o maior questionamento do universo...

“_O restante é inferior! Esta é sua conclusão agora! E isto lhe permite realizar qualquer pergunta que obterá resposta. E sei o que irá questionar. A mais complicada das perguntas, com a mais óbvia das respostas.

_Quem é Deus?

_Pergunta-me isso, _disse então o vampiro _mas sabe até onde deseja compreender? Posso lhe explicar o “tudo”, mas se o fizer que sentido teria o restante?”

Ele não temeu. Ansiou pela compreensão absoluta. E a teve...

Se agora possui o conhecimento completo, isto não o torna também um Deus? A resposta é não, simplesmente porque ainda se limita a pensar que não o é. Isto justifica o fato de ter se confessado esta madrugada. Caso fosse realmente superior, não deveria explicação a ninguém. Mas por que ele saiu purificado daquele lugar? Por que virou para a catedral e agradeceu? Por que agora ele levita como se suas culpas tivessem sumido?

Penso agora que há uma remota possibilidade de ele ter aprendido ali algo que não fui capaz de ensinar-lhe. Certamente algo que a humanidade não está pronta para compreender. Um ensinamento que estes pobres mortais terão que absorver por seus próprios meios. E sei que nunca o farão. Pois não são capazes de se deparar com seus próprios erros. São incapazes de evoluir.

“Quem diria que um dia eu estaria do outro lado do mundo? Quem diria que existiria o outro lado?”... Talvez haja aqui um sentido ainda mais abrangente...

Fonte:
http://www.escritoresdosul.com.br/

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