Ando tão preocupado com as palavras que notei algo interessante: as letras que as formam têm personalidades distintas. A começar pelos dois grupos de vogais e consoantes. As cinco primeiras — A, E, I, O, U — são as cortesãs. A letra A, primeira e única, no eterno papel de candidata ao trono. Em verdade, parece que a letra E disputa a liderança com a A. Pelo menos em quantidade, a E participa mais que todas as suas demais irmãs vogais na formação das palavras. No tempo da composição tipográfica, as caixas de madeira que continham os tipos de metal eram divididas em escaninhos de diversos tamanhos e a casa da letra E minúscula era a maior, bem próxima à vista e à mão do tipógrafo, por ser a mais usada. Reparem no teclado do computador e verão que a primeira vogal a aparecer é a E, já na segunda fila superior, abaixo dos números. E essa disposição foi herdada dos teclados das aposentadas máquinas de escrever. Tudo uma questão de prioridade de utilização.
E o exército de consoantes? Pois toda armada é formada assim: primeiro os generais e depois os soldados. Acima as vogais, que têm som próprio, e depois as consoantes que, como diz o próprio nome, somente soam com a parceria de uma vogal. Se não tiverem uma das cinco irmãs juntinha a si, são letras mudas, a que falta um pedacinho de som. Nossa língua portuguesa ganhou, com a última reforma ortográfica, três outras que se encontravam exiladas há muito – a K, a W e a Y. E deveria ter sido o contrário: com jeitinho e a bem da escrita fonética, teríamos decapitado a letra Q, bem fácil de ser substituída pela C; e a H que também se cuide, pois dá bem para passarmos sem ela. Bastaria adotarmos o simpático eñe espanhol e facilitar a vida de quem já, pela própria natureza, fala errado, dizendo colier e mulier, em vez da verão com H. Vejam como daria certo: “A mulier pegou a colier e acompañou seu marido na sobremesa”. Assim estaríamos criando, formalmente, o portunhol que dominará, dentro de algumas décadas, a América Latina.
Mas as consoantes também têm fortes personalidades. Eu, por exemplo, gosto da letra C, que por acaso inicia meu nome; uma questão de afinidade. Acho que ela é uma letra aberta, sempre pronta a um harmonioso abraço com a vogal que se lhe avizinhe. Há quem prefira a M, estável sobre duas pernas, ao contrário da P que avança seu tórax e se equilibra em apenas uma perninha. A letra R, ao não aguentar a posição circense, desceu rapidamente um esteio e fez com que o Pato se diferenciasse do Rato.
Tenho pena só de uma letra: a Z. A que fica por último, a zelar pela retaguarda do Alfabeto, com ar de zanga permanente, e que de vez em quando se zarelha na vida da S. Como sempre está no meio do azar, também lembra a zebra, a vitória não esperada. Talvez nem seja das mais inteligentes, pois não fala: zurra, à maneira das mulas. Ou, mesmo silenciosa, zumbe incomodamente. Aparentemente quieta, na maioria das vezes, zomba de todas as anteriores letrinhas. E quando se junta a outras suas iguais, onomatopaica, vira sono profundo. Além de azarar os nomes próprios que começam com ela – alguém já ouviu um Zulmar ser o primeiro na chamada escolar?
Examinei a N, uma M com complexo de inferioridade; a S, que conhecemos como cobrinha na escola primária, início de toda serpente e dos sapos. Quando está sozinha, dentro das palavras, em geral é ela que se zarelha, tomando o lugar da Z. A letra V é um pouco despersonalizada, é verdade. Muitas vezes pode ser cobardemente substituída pela B. No Espanhol, então, nem se fala nela. Pode até aparecer graficamente, com aquele ar de A invertido e sem cintura, mas sempre a pronunciam como uma B, coitada.
E a letra F? Uma P de boca aberta, consonante fricativa, lábiodental, surda. Tadinha… Abre a boca, mas apenas sussurra, faz ventinho entre os lábios. Impossível pronunciá-la com a boca cheia de farinha, sem produzir uma nuvem de pó de carboidratos. Já a G, gordinha como ela só, parece estar sempre no engole, engole, mão para dentro da boca. E a J, um cajado invertido, lembra joelhos dobrados a proferir jaculatórias. Ai, Jesus!
A letra Y, a nova irmã, veio para pouco acrescentar, apesar de seu jeitinho de dois dedos levantados em sinal de vitória. O NVOLP (para quem não está acostumado, este sanduíche de letras quer dizer Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela ABL, ou Academia Brasileira de Letras) regsitra apenas 45 vocábulos do(a) Y, incluído(a) ele(a) próprio(a), até a 5ª edição, que vem com anexos. K e W aparecem mais, mas não chegam a encher uma página de cinco colunas, cada uma delas.
Mas já que estamos a conversar sobre a personalidade das letras, descobri outra coisa interessante. Já repararam que tratamos as letras à vezes como femininas e outras como masculinas? Dizemos o A e a A, o B e a B. Fui ao dicionário e vi que elas todas (ou eles todos?) são designadas por s.m., que não quer dizer sua majestade, mas substantivo masculino: “B. S.m. 1. A segunda letra do alfabeto etc.” Seria um caso de androginia gramatical?
Todas as divagações anteriores, que não têm o menor peso adicional na cultura de quem me lê, foram feitas para registrar a importância de uma letrinha sempre misteriosa, a senhora X. Notaram que essa indicação já nos remete a alguma pessoa desconhecida, que se esconde atrás de óculos escuros, sempre cabisbaixa e a percorrer rotas obscuras? É sempre o X do problema, a atormentar detetives. Cruz dos matemáticos, que sempre a utilizam como variável independente das equações ou a põem lá no fim, como a incógnita a ser descoberta. Ou não. A X – ou o X – é letra quase universal, que corta as demais julgadas desnecessárias, nome de todos os analfabetos que assinam em cruz, embora Descartes a tenha utilizada para designar sua primeira coordenada. Valia 10 para os romanos, mas nós a utilizamos sempre que queremos falar de uma quantidade indeterminada: falta X para completar. Os documentos secretos e importantes ficam sempre no Arquivo X. O dois risquinhos entrecruzados também facilitaram a vida dos desenhistas de anúncios de lanchonete, ao assumir as feições do queijo dos sanduíches (em inglês, é claro, que é para não perder a pose): X-salada, banana X etc.
Não é uma letrinha versátil e digna de admiração, talvez dotada de multipersonalidade? Em um exame vestibular, ela substitui quilômetros de textos formados por centenas de milhares de palavras e milhões de letras. Basta que a coloquemos dentro de um determinado quadradinho e pronto: traduz a resposta que queremos dar.
E tem mais uma coisa: ela é multiplicativa. É só colocá-la entre dois números e a magia se realiza. Ou, então, adversativa, a indicar lados opostos. Futebol não se realiza sem um X entre dois clubes.
E lembremo-nos, além de tudo, de sua elegância fonética: quando a Corte portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro, os nativos trataram de adotar falares europeus, trocando os S finais das palavras por maviosos X, hábito que até hoje os cariocas conservam.
Por tantas razões, quero propor o X, rei das letras, como principal candidato à presidência da República, nas próximas eleições. Ele poderá multiplicar o PIB brasileiro e substituí-lo pelo PIX (produto interno xuave), além de axelerar o creximento xoxial (noxa, como me condixionei rápido a exa teoria ideolóxica!).
Pelo menos ele é uma incógnita que poderá gerar uma solução positiva.
Curitiba, março de 2010
Fonte:
http://cdeassis.wordpress.com/cronicas/
E o exército de consoantes? Pois toda armada é formada assim: primeiro os generais e depois os soldados. Acima as vogais, que têm som próprio, e depois as consoantes que, como diz o próprio nome, somente soam com a parceria de uma vogal. Se não tiverem uma das cinco irmãs juntinha a si, são letras mudas, a que falta um pedacinho de som. Nossa língua portuguesa ganhou, com a última reforma ortográfica, três outras que se encontravam exiladas há muito – a K, a W e a Y. E deveria ter sido o contrário: com jeitinho e a bem da escrita fonética, teríamos decapitado a letra Q, bem fácil de ser substituída pela C; e a H que também se cuide, pois dá bem para passarmos sem ela. Bastaria adotarmos o simpático eñe espanhol e facilitar a vida de quem já, pela própria natureza, fala errado, dizendo colier e mulier, em vez da verão com H. Vejam como daria certo: “A mulier pegou a colier e acompañou seu marido na sobremesa”. Assim estaríamos criando, formalmente, o portunhol que dominará, dentro de algumas décadas, a América Latina.
Mas as consoantes também têm fortes personalidades. Eu, por exemplo, gosto da letra C, que por acaso inicia meu nome; uma questão de afinidade. Acho que ela é uma letra aberta, sempre pronta a um harmonioso abraço com a vogal que se lhe avizinhe. Há quem prefira a M, estável sobre duas pernas, ao contrário da P que avança seu tórax e se equilibra em apenas uma perninha. A letra R, ao não aguentar a posição circense, desceu rapidamente um esteio e fez com que o Pato se diferenciasse do Rato.
Tenho pena só de uma letra: a Z. A que fica por último, a zelar pela retaguarda do Alfabeto, com ar de zanga permanente, e que de vez em quando se zarelha na vida da S. Como sempre está no meio do azar, também lembra a zebra, a vitória não esperada. Talvez nem seja das mais inteligentes, pois não fala: zurra, à maneira das mulas. Ou, mesmo silenciosa, zumbe incomodamente. Aparentemente quieta, na maioria das vezes, zomba de todas as anteriores letrinhas. E quando se junta a outras suas iguais, onomatopaica, vira sono profundo. Além de azarar os nomes próprios que começam com ela – alguém já ouviu um Zulmar ser o primeiro na chamada escolar?
Examinei a N, uma M com complexo de inferioridade; a S, que conhecemos como cobrinha na escola primária, início de toda serpente e dos sapos. Quando está sozinha, dentro das palavras, em geral é ela que se zarelha, tomando o lugar da Z. A letra V é um pouco despersonalizada, é verdade. Muitas vezes pode ser cobardemente substituída pela B. No Espanhol, então, nem se fala nela. Pode até aparecer graficamente, com aquele ar de A invertido e sem cintura, mas sempre a pronunciam como uma B, coitada.
E a letra F? Uma P de boca aberta, consonante fricativa, lábiodental, surda. Tadinha… Abre a boca, mas apenas sussurra, faz ventinho entre os lábios. Impossível pronunciá-la com a boca cheia de farinha, sem produzir uma nuvem de pó de carboidratos. Já a G, gordinha como ela só, parece estar sempre no engole, engole, mão para dentro da boca. E a J, um cajado invertido, lembra joelhos dobrados a proferir jaculatórias. Ai, Jesus!
A letra Y, a nova irmã, veio para pouco acrescentar, apesar de seu jeitinho de dois dedos levantados em sinal de vitória. O NVOLP (para quem não está acostumado, este sanduíche de letras quer dizer Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela ABL, ou Academia Brasileira de Letras) regsitra apenas 45 vocábulos do(a) Y, incluído(a) ele(a) próprio(a), até a 5ª edição, que vem com anexos. K e W aparecem mais, mas não chegam a encher uma página de cinco colunas, cada uma delas.
Mas já que estamos a conversar sobre a personalidade das letras, descobri outra coisa interessante. Já repararam que tratamos as letras à vezes como femininas e outras como masculinas? Dizemos o A e a A, o B e a B. Fui ao dicionário e vi que elas todas (ou eles todos?) são designadas por s.m., que não quer dizer sua majestade, mas substantivo masculino: “B. S.m. 1. A segunda letra do alfabeto etc.” Seria um caso de androginia gramatical?
Todas as divagações anteriores, que não têm o menor peso adicional na cultura de quem me lê, foram feitas para registrar a importância de uma letrinha sempre misteriosa, a senhora X. Notaram que essa indicação já nos remete a alguma pessoa desconhecida, que se esconde atrás de óculos escuros, sempre cabisbaixa e a percorrer rotas obscuras? É sempre o X do problema, a atormentar detetives. Cruz dos matemáticos, que sempre a utilizam como variável independente das equações ou a põem lá no fim, como a incógnita a ser descoberta. Ou não. A X – ou o X – é letra quase universal, que corta as demais julgadas desnecessárias, nome de todos os analfabetos que assinam em cruz, embora Descartes a tenha utilizada para designar sua primeira coordenada. Valia 10 para os romanos, mas nós a utilizamos sempre que queremos falar de uma quantidade indeterminada: falta X para completar. Os documentos secretos e importantes ficam sempre no Arquivo X. O dois risquinhos entrecruzados também facilitaram a vida dos desenhistas de anúncios de lanchonete, ao assumir as feições do queijo dos sanduíches (em inglês, é claro, que é para não perder a pose): X-salada, banana X etc.
Não é uma letrinha versátil e digna de admiração, talvez dotada de multipersonalidade? Em um exame vestibular, ela substitui quilômetros de textos formados por centenas de milhares de palavras e milhões de letras. Basta que a coloquemos dentro de um determinado quadradinho e pronto: traduz a resposta que queremos dar.
E tem mais uma coisa: ela é multiplicativa. É só colocá-la entre dois números e a magia se realiza. Ou, então, adversativa, a indicar lados opostos. Futebol não se realiza sem um X entre dois clubes.
E lembremo-nos, além de tudo, de sua elegância fonética: quando a Corte portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro, os nativos trataram de adotar falares europeus, trocando os S finais das palavras por maviosos X, hábito que até hoje os cariocas conservam.
Por tantas razões, quero propor o X, rei das letras, como principal candidato à presidência da República, nas próximas eleições. Ele poderá multiplicar o PIB brasileiro e substituí-lo pelo PIX (produto interno xuave), além de axelerar o creximento xoxial (noxa, como me condixionei rápido a exa teoria ideolóxica!).
Pelo menos ele é uma incógnita que poderá gerar uma solução positiva.
Curitiba, março de 2010
Fonte:
http://cdeassis.wordpress.com/cronicas/
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