terça-feira, 14 de setembro de 2010

Fernando Sabino (De Mel a Pior)



- Qual é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo adequar? - pergunta-me ele ao telefone.

- Nós adequamos - respondo com segurança.

- Primeira do singular - insiste ele.

- Espera lá, deixe ver. Com essa você me pegou.

E arrisco vacilante:
- Eu adéquo?

- Não, senhor.

- Eu adeqúo? Não pode ser.

- E não é mesmo.

- Então como é que é?

- Quer dizer que você não sabe?

- Deixe de suspense. Diga logo.

- Não tem. É verbo defectivo.

- E você me telefonou para isso? Verbo defectivo. Tudo bem. Eu não teria mesmo oportunidade de usar esse verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nunca me adéquo a questões como esta. Presente do indicativo ou indicativo do presente? - é a minha vez de perguntar. - No nosso tempo era indicativo presente.

E é sua vez de não saber. Desculpa-se dizendo que andaram mudando tanto a nomenclatura gramatical, que a gente acaba não sabendo mais nada.

- E o verbo delinqüir? - torna ele.

- Que é que tem o verbo delinqüir? - quero saber, cauteloso.

- A primeira do singular?

- Não tem. Também é defectivo. Mas ele é teimoso:

- E se um criminoso quiser dizer que não delinque mais?

- Se usar esse verbo, já delinqüiu. - E acresento, num tom de quem não sabe outra coisa na vida:- Além do mais, leva trema no u. Para que se fale delincuir, que é a pronúncia correta.

- Quem fala delinqir, sem o u, vai ver é da polícia.

- Ou quem fala tóchico, como diz Millôr.

- O Millôr fala tóchico?

- Não. O Millôr é que disse que quem fala… Ora, deixa pra lá.

Ele volta à carga:

- O trema já não foi abolido?

- Que abolido nada. Aboliram tudo, menos o trema

- Por falar nisso, outro verbo defectivo.

- Qual?

- Abolir: não tem primeira do singular.

- Como não tem? -reajo - Eu abulo.

- Neste caso seria eu abolo.

- Coisa nenhuma. Eu abulo, sim senhor. - E invoco a autoridade de quem sabe o que diz:- Não é eu expludo? Pelo menos o Figueiredo não me deixa mentir.

- O Cândido ou o Fidelino?

- O João mesmo. O presidente. Ele falou expludo e não explodo.

- Se essa regra vale, deveria ser eu cumo, eu murro, eu murdo…

- Então me diga uma coisa: Você sabe qual é a primeira do singular do verbo parir no indicativo?

- Ninguém pare no indicativo.

- Pare, e em todos os tempos, meu velho.

- Esse quem não corre o risco de usar sou eu.

- Pois então fique sabendo: é simplesmente igual à primeira pessoa do singular do verbo pairar.

- Eu pairo?

- É isso aí. Uma senhora que tem muitos filhos pode perfeitamente dizer: eu pairo um filho por ano.

- Co’s pariu.

- Se não quiser acreditar, não acredite. É a vez dele:

- Você sabe qual é o plural de mel?

- Já vem você. Mel não tem plural.

- Como não tem? Tem até dois. - E me conta que outro dia um entendido em mel fazia uma prelação sobre o assunto na televisão. No que saiu do singular para se meter no plural, quebrou a cara:

- Acabou falando que existem muitos mels diferentes.

- E não existem?

- Existem. Mas não mels. Com essa ele se deu mal.

- Se deu mel então. - Era a asa da imbecilidade começando a ruflar aos meus ouvidos:- Ou você vai me dizer que mel também é verbo defectivo?

- Perguntei a uma amiga minha que entende.

- De mel?

- Não : de plural. Ela confirmou: tanto pode ser méis como meles. Mels é que não.

A esta altura o mentecapto fala mais alto dentro da minha cabeça:
- Dos meles, o menor.

Como ele não responde, acrescento:
- Até logo. Melou o assunto.

E desligo o telefone.
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P.S.: Quando foi escrito este conto, ainda não havia a nova ortografia.

Fonte:
As melhores Crônicas de Fernando Sabino. 2.ed. RJ: Bestbolso, 2008.

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