sábado, 6 de abril de 2019

A. A. De Assis (Trovas Brincantes) II


16
O bom discurso amoroso
dispensa texto comprido.
Basta um “te gosto” gostoso
Cochichado ao pé do ouvido…
17
Como se diz lá na roça,
o amor é um bichim-de-pé;
quanto mais a gente coça,
melhor a coceira é…
18
Disse o gambá pra “gamboa”:
– Que delícia de catinga!
E ternamente beijou-a,
depois da terceira pinga…
19
Tal como o povo, pisada
por tantos, a todo instante,
a alegria da calçada
é o tropicão do passante!…
20
Pão-duro de carteirinha,
veja a que extremo ele vai:
para poupar letra e linha,
faz trova em tamanho haicai…
21
Uma andorinha, voando,
sozinha não faz verão…
Passando, no entanto, em bando,
chove “adubo” em profusão!
22
Quem foi que disse ao senhor
que amor não enche barriga?
Foi justo “fazendo amor”
que encheu a dela uma amiga…
23
Muito cara que se julga
ladino, culto, elegante,
no fim não passa de pulga
com mania de elefante…
24
Se o vovô quer ir à praia,
deixe que vá… não resista.
– é Bom que ele se distraia
indo lá dar pasto à vista…
25
Tudo o mais é mera intriga,
fabulazinha bizarra…
– O chato é ser a formiga
“cantada” pela cigarra!
26
– Chamaste meu pai de otário?…
Repete-o se és homem… vem!
– Chamei não, pelo contrário…
mas que ele tem cara, tem!
27
Para o marido inocente,
surpresa é a cada domingo
mostrar-lhe a esposa um presente,
dizendo: “Ganhei no bingo!”
28
Depois de tomar “uns treco”
para aquecer a moringa,
o trovador de boteco
dá um soluço… e a rima pinga!
29
Foi abacate, seu moço,
o pomo que Adão papou.
Tanto é fato, que o caroço
em seu pescoço encalhou…
30
Se tens filho, escuta aqui,
que um lembrete eu vou deixar-te:
– Guri que já faz guri…
se fica solto, faz arte!

continua…

Fonte:
José Fabiano & A. A. De Assis. Trovas brincantes. 2007.

Monteiro Lobato (A Garça Velha)


Certa garça nascera, crescera e sempre vivera à margem duma lagoa de águas turvas, muito rica em peixes. Mas o tempo corria e ela envelhecia. Seus músculos cada vez mais emperrados, os olhos cansados – com que dificuldade ela pescava!

- Estou mal de sorte, e se não topo com um viveiro de peixes em águas bem límpidas, certamente que morrerei de fome. Já se foi o tempo feliz em que meus olhos penetrantes zombavam do turvo desta lagoa…

E de pé num pé só, o longo bico pendurado, pôs-se a matutar naquilo até que lhe ocorreu uma ideia.

- Caranguejo, venha cá ! – disse ela a um caranguejo que tomava sol à porta do seu buraco.

- Às ordens. Que deseja?

- Avisar a você duma coisa muito séria. A nossa lagoa está condenada. O dono das terras anda a convidar os vizinhos para assistirem ao seu esvaziamento e o ajudarem a apanhar a peixaria toda. Veja que desgraça! Não vai escapar nem um miserável garu.

O caranguejo arrepiou-se com a má notícia. Entrou na água e foi contá-la aos peixes.

Grande rebuliço. Graúdos e pequeninos, todos começaram a pererecar às tontas, sem saberem como agir. E vieram para a beira d’água.

- Senhora dona do bico longo, dê-nos um conselho, por favor, que nos livre da grande calamidade.

- Um conselho?

E a matreira fingiu refletir. Depois respondeu.

- Só vejo um caminho. É mudarem-se todos para o poço da Pedra Branca.

- Mudar-se como, se não há ligação entre a lagoa e o poço?

- Isso é o de menos. Cá estou eu para resolver a dificuldade. Transporto a peixaria inteira no meu bico.

Não havendo outro remédio, aceitaram os peixes aquele alvitre – e a garça os mudou a todos para o tal poço, que era um tanque de pedra, pequenininho, de águas sempre límpidas e onde ela sossegadamente poderia pescá-los até o fim da vida.

Moral da Estória: Ninguém acredite em conselho de inimigo.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas

quinta-feira, 4 de abril de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) IV


BORBOLETAS

Aos casais... - ante a espessa ramaria
verde, e rendada ao sol deste verão
- livres, felizes, cheias de alegria
as borboletas pelos céus se vão...

Despreocupadas... pela floração
se perdem, numa inquieta correria...
- Onde foram?... e em que lugar estão?
Já não se vê o olhar que as perseguia...

Mas... de repente, voltam pelo espaço,
- trêmulas e amorosas de cansaço,
asas roxas e azuis coo violetas...

E invejoso pensei, vendo-as pelo ar:
- quem me dera nascer, viver e amar,
como aqueles casais de borboletas !

BUCÓLICA

Invejo a vida humilde da criatura
dos  lugares distantes, sossegados,
onde a terra é mais simples e mais pura
e os céus são transparentes e azulados...

Onde as árvores crescem, na beleza
da  galharia exuberante e farta,
e o sol transforma a inquieta correnteza
num dorso rebrilhante de lagarta...

E onde os galhos são mãos cheias de flores
e as flores, taças multicores, vivas,
servindo mel aos tontos beija-flores
e às borboletas trêmulas e esquivas...

Desses lugares cheios de caminhos
como garotos, rabiscando o chão,
e onde os homens são como passarinhos
que são felizes sem saber que são...

E onde as casa, pequenas, de brinquedo,
com  os olhos das janelas, como a gente
de dentro do aconchego do arvoredo
olham tudo ao redor, serenamente...

E onde o sol sai mais cedo, e sobre a serra
desdobra o seu lençol feito de luz
e acorda a seiva que intumesce a terra
nos campos verdes ou nos campos nus...

Gosto desses lugares sossegados
onde a vida é mais simples e mais pura,
os céus são transparentes e azulados
e é mais humana e humilde a criatura...

CAMINHEIRO

Eu ando pela vida à procura de alguém
que saiba compreender minha alma incompreendida,
alguém que queira dar-me a sua própria vida
como eu lhe dar pretendo o meu viver também...

Caminheiro do ideal - seguindo para o além
vou traçando uma rota estranha e indefinida,
- não sei se em minha estrada hei de encontrar guarida,
ou se eterno hei de andar, sem rumo e sem ninguém.. .

Já me sinto cansado... E em vão ainda caminho
na ilusão de encontrar um dia a companheira
que me ajude na vida a construir meu ninho...

Boemia do destino!...  Hei de andar... hei de andar...
até que esta minha alma errante e aventureira
descanse numa cruz cansada de sonhar!...

CARNAVAL
  
Ela passou na minha vida
vazia
de boêmio e sentimental,
como passa num ano de tristeza
o relâmpago de alegria
do carnaval...

Seus braços me envolveram como serpentinas
frágeis, de papel,
e se romperam coo as serpentinas
que se arrebentam quando o vento sopra
e se soltam no céu....

Ela passou na minha vida, assim,
tal como passa na monotonia
de uma existência banal,
a furtiva beleza e a loucura de um dia
de  carnaval !...

Nossa história, - o romance desse dia
sem ódio, sem despeito, sem rancor, sem ciúme,
nem podemos lembrar,

teve o destino irreal de toda fantasia
e a existência de um jato de lança-perfume
atravessando no ar...

O nome dela, não sei;
ela não sabe o meu, - que importa ? - não faz mal...
- Não fôssemos nós dois apenas fantasias
não fosse a nossa história apenas carnaval !...

CARTA 

Aqui, tudo é bonito e quieto, a gente
vai vivendo uma vida sempre igual...
- Há um dia que o regato de cristal
de águas turvas ficou devido à enchente...

Os dias têm passado, lentamente,
e um tédio sinto em mim, de um modo tal,
que às vezes, fico até sentimental,
lembrando-me de ti, saudosamente...

Quando estavas aqui, - tudo era lindo...
Como um doce casal de beija-flores,
vivíamos os dois sempre sorrindo...

Por que não voltas?... Vem!... - Se tu voltares
o céu há de cobrir-se de outras cores...
- as flores voltarão pelos pomares!..

CARTA CINZENTA

As palavras amargas que te escrevo
são aquelas que pensas mas não dizes,
e esta, - é a carta cinzenta onde me atrevo
a despertar o nosso falso enlevo
e a confessar que somos infelizes...

Esta é a carta cinzenta que põe termo
ao sofrimento que te suplicia...
Meu amor, pobre amor! - vacila enfermo...
Teu amor, falso amor! - já nasceu ermo
como uma noite longa de invertia...

Onde o antigo calor do teu carinho?
Onde o esplendor dos teus olhos castanhos?
Segues só, ao meu lado... Eu, vou sozinho...
- como dois vultos por um só caminho
um do outro perto, e totalmente estranhos...

Não aceito o teu tolo sacrifício
que eu não nasci para inspirar piedade.
Essa carta cinzenta é o precipício
onde atiro esse amor... E marca o início
da tua mais completa liberdade!

Não deve haver passado entre nós dois...
Esquece o que já fui e o que te digo,
o Destino entre nós tudo interpôs
e assim, pelo que fui... nunca depois
por consolo me chames teu amigo!

Se eu cruzar o teu passo, volta o rosto!
Devo ser menos que um desconhecido,
- se eu era o teu Senhor e fui deposto
que no exílio final do meu desgosto
guarde a ilusão de ao menos já haver sido!

Juro por esse deus em quem não creio
em quem tu crês, - que em minha dor imensa
só desejo ficar de tudo alheio,
- não receio por mim, eu só receio
que ainda me negues tua indiferença!

E que um dia, quem sabe? não compreendas
as palavras de fel que hoje te digo,
- receio que mais tarde não me atendas
e queiras debruar talvez de rendas
o desespero que guardei comigo!

Uma coisa, no entanto, me conforta
depois que por teu bem tudo desfiz,
- é que enfim minha vida já está morta,
e, afinal, minha vida pouco importa
quando se trata de te ver feliz!
....................................

Bem. Paremos aqui. Daqui por diante
seguirás o teu rumo e eu sigo o meu...
Hás de ser mais feliz se mais constante,
e que ao menos te lembres, certo instante,
de quem nunca um instante te esqueceu...

É o fim... Mas sem lamúrias nem piedade.
Guarda a piedade, - eu já fiquei com a dor... -
Quem pode mais do que a fatalidade?
Se o Destino assim quis, fique a saudade
florindo triste sobre o nosso amor!...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (A Melhor Vingança)


O Vieirinha namorou durante dois anos a Xandoca; mas o pai dele, quando soube do namoro, fez intervir a sua autoridade paterna.

– A rapariga não tem eira nem beira, meu rapaz; o pai é um simples empregado público que mal ganha para sustentar a família! Foge dela antes que as coisas assumam proporções maiores, porque, se te casares com essa moça, não contes absolutamente comigo – faze de conta que morri, e morri sem te deixar vintém. Tu és bonito, inteligente, e tens a ventura de ser meu filho; podes fazer um bom casamento.

Não sei se o Víeirinha gostava deveras da Xandoca; só sei que depois dessa observação do Comendador Vieira nunca mais passou pela Rua Francisco Eugênio, onde a rapariga todas as tardes o esperava com um sorriso nos lábios e o coração a palpitar de esperança e de amor.

O brusco desaparecimento do moço fez com que ela sofresse muito, pois que já se considerava noiva, e era tida como tal por toda a vizinhança; faltava apenas o pedido oficial.

Entretanto, Xandoca, passado algum tempo, começou a consolar-se, porque outro homem, se bem que menos jovem, menos bonito e menos elegante que o Vieirinha, entrou a requestá-la seriamente, e não tardou a oferecer-lhe o seu nome. Pouco tempo depois estavam casados.

Dir-se-ia que Xandoca foi uma boa fada que entrou em casa desse homem. Logo que ele se casou, o seu estabelecimento comercial entrou num maravilhoso período de prosperidade. Em pouco mais de dois anos, Cardoso – era esse o seu nome – estava rico; e era um dos negociantes mais considerados e mais adulados da praça do Rio de Janeiro.

Ele e Xandoca amavam-se e viviam na mais perfeita harmonia, gozando, sem ostentação, os seus haveres e de vez em quando correndo mundo.

Uma tarde em que D. Alexandrina (já ninguém a chamava Xandoca) estava à janela do seu palacete, em companhia do marido, viu passar na rua um bêbedo maltrapilho, que servia de divertimento aos garotos, e reconheceu, surpresa, que o desgraçado era o Víeirinha.

Ficou tão comovida, que o Cardoso suspeitou, naturalmente, que ela conhecesse o pobre-diabo, e interrogou-a neste sentido.

– Antes de nos casarmos, respondeu ela, confessei-te, com toda a lealdade, que tinha sido namorada e noiva, ou quase noiva, de um miserável que fugiu de mim, sem me dar a menor satisfação, para obedecer a uma intimação do pai.

– Bem sei, o tal Víeirinha, filho do Comendador Vieira, que morreu há três ou quatro anos, depois de ter perdido em especulações da bolsa tudo quanto possuía.

– Pois bem – o Vieirinha ali está!

E Alexandrina apontou para o bêbado, que afinal caíra sobre a calçada, e dormia.

– Pois, filha, disse o Cardoso, tens agora uma boa ocasião de te vingares!

– Queres tu melhor vingança?

– Certamente, muito melhor, e, se me dás licença, agirei por ti.

– Faze o que quiseres, contanto que não lhe faças mal.

– Pelo contrário.

Quando no dia seguinte o Víeirinha despertou, estava comodamente deitado numa cama limpa e tinha diante de si um homem de confiança do Cardoso.

– Onde estou eu?

– Não se importe. Levante-se para tomar banho!

O Vieirínha deixou-se levar como uma criança. Tomou banho, vestiu roupas novas, foi submetido à tesoura e à navalha de uni barbeiro, e almoçou como um príncipe.

Depois de tudo isso, foi levado pelo mesmo homem a uma fábrica, onde, por ordem do Cardoso, ficou empregado.

Antes de se retirar, o homem que o levava deu-lhe algum dinheiro e disse-lhe:

– O senhor fica empregado nesta fábrica até o dia em que torne a beber.

– Mas a quem devo tantos benefícios?

– A uma pessoa que se compadeceu do senhor e deseja guardar o incógnito.

O Vieirinha atribuiu tudo a qualquer velho amigo do pai; deixou de beber, tomou caminho, não é mau empregado, e há de morrer sem nunca ter sabido que a sua regeneração foi uma vingança

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Fernando Sabino (Como dizia meu pai...)


Já se tornou hábito meu, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução: 

— Como dizia meu pai... 

Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião. 

De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi. 

Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma ideia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim. 

— No fim tudo dá certo... 

Ainda ontem eu tranquilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso: 

— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim. 

Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de balas que o paizinho nunca deixava de trazer. 

Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma boia de descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje. 

Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento. 

— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem. 

Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloquente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs: 

— O que não tem solução, solucionado está. 

E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gérson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si. 

Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria mineira: esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas, dormir no chão para não cair da cama. Os dele eram mais singelos: 

— Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida. 

— Negócio demorado acaba não saindo. 

— Dinheiro bom em coisa boa. 

— Antes de entrar, veja por onde vai sair. 

Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com mãos desajeitadas: 

— Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos. 

Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu ensinamento. A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada serviria, a não ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a eles devemos tudo o que é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho manual às mais complicadas operações, da mais fina sensação do tacto à mais terna das carícias. 

— Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o primeiro. 

Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção jamais será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e estamos vestidos, já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento perfeito. Se contamos com mais de cinquenta por cento, também já estamos no lucro. Quando conseguimos o que é apenas bom, naturalmente devemos continuar aspirando o melhor, se possível - mas perfeição absoluta, só Deus. E creio que Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje em Sua companhia, não consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino: 

— E assim mesmo, olhe lá... 

Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios nascidos da voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por leituras piedosas, poderíamos mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de colher... 

— É o que nos acontece. 

Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como deviam ser, e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não pretendia refletir a impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de acordo com a nossa vontade, mesmo que esta esteja certa. Exprime antes a humilde aceitação da nossa precária condição humana, como frágeis criaturas de Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia, como a dizer que também estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma atribulação. É o que nos acontece. 

Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se inspirar quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo: 

— Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor. 

Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas consequências: o mais importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos Cachaça naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E cada vez acredito mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou diretamente de Confúcio, segundo o qual há várias maneiras de realizar um desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como adverte outro sábio, se desejamos obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado, porque pode nos suceder a infelicidade de consegui-la. 

Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor. No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado: 

Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro. 

Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta falta me faz. 

Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom. 

terça-feira, 2 de abril de 2019

Contos e Lendas do Mundo (Celta: A História da Caveira)


Era uma vez um granjeiro que tinha apenas um filho. Este filho morreu e o pai não quis ir ao enterro porque antes houve uma briga entre eles. Passado um tempo, morreu um vizinho e ele foi ao seu enterro. Depois da cerimônia e ainda estando o granjeiro no cemitério, olhando distraído ao redor viu uma caveira.

Juntou-a e disse, pensativo:

- Gostaria de saber alguma coisa sobre ti...

E a caveira falou:

- Amanhã irei passar a noite contigo, se vieres passar outra noite comigo.

- Assim farei - disse o granjeiro.

No caminho de volta, encontrou um sacerdote e comentou o que tinha ocorrido. O sacerdote lhe disse que deveria ter sonhado, posto que as caveiras não falam. O granjeiro lhe contou que na noite seguinte seria visitado pela caveira, e o sacerdote concordou em ir.

Assim, na noite seguinte, estavam o granjeiro e o sacerdote conversando quando, em seguida, chamaram à porta e apareceu a caveira. Ela subiu à mesa e comeu tudo que nela havia. Depois, saiu e desapareceu.

- Por que não falaste nada? inquiriu o granjeiro ao sacerdote.

- Por que TU não falaste? - respondeu o outro.

Na noite seguinte, como dia combinado com a caveira, o granjeiro foi até o cemitério e, não vendo nada, desceu os três degraus que estavam junto à  Igreja. De pronto se encontrou no meio de um campo, cheio de homens que lutavam entre si. Ao ver o granjeiro, perguntaram-lhe se procurava o crânio. Ao assentir, eles disseram:

- Acaba de ir para o campo ao lado.

No outro campo viu homens e mulheres que lutavam entre si. 

- Estás procurando um crânio? - perguntaram. Pois bem, acaba se ir ao campo do lado.

O granjeiro se foi ao campo do lado e viu uma grande casa. Ao entrar viu que era a habitação de uma dama e uma criada. A dama caminhava de um lado a outro da casa, e cada vez que chegava perto do fogo para se aquecer, a criada a empurrava. Também lhe perguntaram se buscava um crânio e que se era isso, que saíra pela porta esquerda da casa e por ali saiu o granjeiro.

Ao entrar na casa contígua, encontrou a caveira e esta lhe perguntou se queria cear, com o que assentiu o granjeiro. A caveira o conduziu à cozinha onde estavam três mulheres. A caveira pediu a uma delas que servisse a ceia, e esta serviu pão preto e uma jarra d'água, o que ele não conseguiu comer. Em seguida pediu à segunda mulher que fizesse o mesmo, e ela serviu pior ao granjeiro do que a primeira. Por fim a caveira pediu à terceira mulher, e esta serviu uma deliciosa refeição, com uma profusão de pratos e excelentes vinhos.

Depois de comer, perguntou ao crânio o que tinha sido aquilo.

- Os homens que viste no primeiro campo se dedicavam a lutar entre si enquanto estavam vivos, porque tinham terras próximas e se acostumavam a mover as estacas e agora precisam lutar entre si para sempre. Os homens e mulheres que viste eram casais casados que viviam a brigar e agora devem seguir eternamente em brigas. A senhora que viste na casa e que a criada não deixava se aquecer fez o mesmo com a criada, que um dia chegou molhada e com frio, e agora a criada faz o mesmo com ela, até o dia do Juízo Final. As três mulheres na cozinha foram minhas três esposas. Quando pedia à primeira que me preparasse a ceia, me oferecia pão preto e água, a segunda ainda coisa pior mas a terceira me servia o banquete que ceaste.

A caveira então olhou lugubremente o lavrador e disse:

- E quanto a ti? Foste trazido a este lugar por não querer ir ao funeral do teu filho, apesar de teres ido ao de um vizinho. Assim, sugiro que, se queres te salvar, vá onde enterraram teu filho e pede-lhe perdão e, caso o obtenhas, saiba que desde o dia que saíste de casa até chegar aqui se passaram 700 anos.

O lavrador ficou petrificado e, como despertando de um sonho, se viu caminhando pelos campos, por lugares que antes ele havia passado mas que haviam mudado de forma pelo tempo transcorrido. Ao fim chegou ao cemitério e conseguiu localizar a tumba do filho . Ali se ajoelhou e pediu perdão. O perdão a seu filho.

Por fim surgiu uma mão da tumba, que tomou a sua e ambos, pai e filho, subiram juntos ao céu.

Fonte:

Leon Eliachar (O Segredo da Propaganda é a Propaganda do Segredo)


Depois de tantos anos vendo televisão diariamente, chego a uma conclusão definitiva: é muito mais divertido e mais prático ver os anúncios. Enquanto as outras pessoas ficam aflitas tentando decorar os horários das novelas, das paradas de sucesso e dos chamados programas humorísticos, eu não tenho problema: ligo a televisão em qualquer canal e vejo os anúncios sem preocupação de horário.

Vocês talvez achem que é loucura ver os mesmos anúncios diversas vezes, mas posso garantir que os anúncios variam muito mais que as piadas e as músicas que são servidas todos os dias. Pelo menos os anúncios são bem bolados, alguns até inteligentes. A técnica é chatear tanto até ficarem em nosso subconsciente — se é que alguém consegue ter subconsciente assistindo televisão.

Os refrigerantes, por exemplo: quase todos fazem as garrafas dançar na nossa frente e tocam uma musiquinha que chega a dar sede. Aí a gente não resiste: vai à geladeira e bebe um copo de água.

Mas bom mesmo é anúncio de sabonete: aparece cada moça bonita que vou te contar. E com uma grande vantagem, as moças não falam, só aparecem, ligam o chuveiro e ficam noivas dentro da espuma. Por mais que a gente saiba que aquilo é anúncio de sabonete, fica sempre aquela dúvida se um dia eles não vão resolver dar o nome daquele chuveiro ou, quem sabe, o telefone da moça.

Geniais mesmo são as geladeiras que duram toda a vida. Mas muito mais geniais são os textos garantindo que cabe tudinho dentro delas, mas acho que não têm tanta certeza, pois fazem questão de botar uma moça bem bonita pra mostrar a geladeira — e a gente tem é vontade de comprar a moça, mesmo sem o "certificado de garantia".

E as televisões, baratíssimas, cada vez mais vendidas, dentro dos novos planos de venda. Ao invés de bolarem uma televisão mais perfeita, ficam é bolando planos de venda. No dia em que inventarem uma televisão que focalize a cara de um sujeito com menos de três orelhas, não precisam nem fazer anúncio: é só exibir, que esgota no mesmo dia.

Existe anúncio de todo tipo: tecidos que não amarrotam, tecidos que dão prêmios, tecidos que dão desconto, tecidos coloridos que são apresentados em preto-e-branco, tecidos brancos que ficam cada vez mais brancos à medida que vai surgindo um novo sabão em pó. Mas é o que eles pensam: o branco deles, lá em casa, todo mundo tá vendo que é cinza. O mais engraçado são os anúncios de inseticidas que matam todos os insetos, menos as moscas do estúdio.

Anuncia-se também muita banha, muito pneu, muito perfume, muito sapato, muito automóvel, muita calça, muita bebida e muita pílula pra dor de cabeça. Parece até que um anúncio depende do outro — é como se fosse uma novela, com a vantagem de a gente sempre saber qual o final de cada anúncio. E não pensem que sou o único a achar os anúncios mais interessantes que os programas: os donos das emissoras também acham — senão não ocupavam a maior parte do tempo com anúncios. Nos intervalos é que colocam alguns programinhas — por absoluta falta de mais anúncios.

Reparem só: os programas de humor mostram o lado negativo das pessoas, os personagens são quase todos fossilizados, gagos, surdos, cegos, velhos borocochôs ou sem sexo definido. As novelas exploram seres anormais dentro de um mundo de misérias e lágrimas. Já os anúncios apresentam um mundo de otimismo, onde tudo é bom e saudável, não quebra, dura toda a vida e qualquer um pode adquirir quase de graça, pagando como puder, no endereço mais próximo da sua casa. O único detalhe que nos deixa um pouco frustrados é que a moça que dá os endereços fala tão preocupada em não errar que a gente não consegue decorar nenhum endereço. Em compensação, sabe de cor a moça todinha.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A. A. de Assis (Trovas Brincantes) I


01
Meu nome é Assis. Brasileiro.
Setenta e tantos completos.
A profissão?… jardineiro:
cultivo trovas e netos!

02
Quando, à noite, o Sol se deita,
a Lua, em grande escarcéu,
chama a poetada e aproveita:
Faz uma farra no céu!

03
Bate-papo de mulher,
nem mesmo seu Freud entende.
– Um assuntinho qualquer
vira um filme sem the end…

04
Que saudade, companheiro,
do tempo em que eu era bobo…
– Pensava que era cordeiro
quem não passava de lobo!

05
Antiguidade, doutor,
é coisa muito engraçada:
algo que cresce em valor
quando não vale mais nada…

06
Sobremesa preferida?…
Eu vos respondo, ora vede:
– é após a farta comida
me desmaiar numa rede…

07
“Feliz quem feliz se julga”,
diz um ditado antigão.
– Felicidade da pulga
é andar montada no cão…

08
Diz à macaca o macaco
logo ao café da manhã:
– Ou paras de encher-me o saco,
ou te devolvo ao Tarzã!

09
Tão boa é aquela senhora,
tão generosa e tão pura,
que nem passando a ter nora
perdeu jamais a ternura…

10
De biquini ou minissaia,
a verdade se revela…
Não há mentira na praia:
feia é feia, bela é bela!

11
Tenho um galo gozador,
que canta de madrugada…
Troco por despertador
que toque às dez a alvorada!

12
Vingança é coisa de gente
tresloucada ou matusquela…
– A lei do dente por dente
faz tempo ficou banguela!

13
Verde, amarelo, vermelho…
bi-bi… fon-fon… ron-ron-ron…
Mulher, sem pressa, ao espelho,
na esquina ajeita o batom…

14
Pipilam os pintainhos,
que terna a galinha afaga.
“Vamos fazer mais unzinhos?”,
o galo safado indaga…

15
“Filho de peixe é peixinho”,
é o que se diz por aí.
A menos que no escurinho
se entregue a peixa ao siri…

Continua…
Fonte:
José Fabiano & A. A. De Assis. Trovas brincantes. 2007.

Vinícius de Moraes (O delírio do óbvio)


Conheci-a num coquetel no seu apartamento em Roma: uma mulherzinha intensa, minúscula, arredondada. Pensei imediatamente em dar-lhe um lugar de destaque na coleção de gnomos humanos de jardim, que venho selecionando há um ano e já vai bem adiantada. Devia andar pelos 45, mas 45 bem cuidados, a julgar pelo fundo da pele, pelo dorso das mãos e pelo colo almofadado, dando apenas a entender. Um colo arfante, naturalmente.

Olhou-me com olhos úmidos e sua boca rasgada abriu um sorriso à anúncio. O tom com que me falou foi de um recolhimento quase religioso :

- Ah, é o poeta

Fiquei com vontade de engrossar de saída e responder: "Não, é o cobrador da Light!", mas me contive. Ela suspirou fundo - coisa que, aliás, deveria fazer num crescendo assustador - e sem mudar de tom, mas endurecendo ligeiramente as pupilas, voltou-se para minha mulher :

- Que coisa divina ser a companheira de um poeta, a sua musa inspiradora! E que responsabilidade... Porque os poetas, em geral, são pródigos de amor: não é, poeta?

Quis reagir, mas inutilmente. Sorrimos aquele sorriso, e enquanto minha mulher fingia procurar qualquer coisa na bolsa, eu balbuciei um "É!" que merecia ser gravado, pois jamais ouvi nada tão alvar. Ela acertou o vestido nas ancas, num gesto muito característico das mulheres que ainda não desistiram de todo, e aproximando o rosto do meu, segredou-me conivente:

- Aposto que já fez sofrer muitos corações femininos...

Assumi, sem saber bem o que dizer, um ar modesto de "mais ou menos", e já meio baratinado pela ação irradiante de tanto óbvio, respondi sem tirar nem pôr o que aqui vai:

-Qual nada ... A senhora está exagerando... São seus bons olhos... Eu até não sou disso ...

Ela fixou-me ardentemente, numa expressão só-eu-sou-capaz-de-compreender- a-alma-dos-poetas e logo, desviando o olhar do meu para ir perdê-lo na distância, arrematou:

- Dizer que os cientistas estudaram tanto para enviar ao espaço os cosmonautas... E estas mãos (ela tomou-me uma com infinita delicadeza) num simples dedilhar de algumas cordas, nos transportam logo ao céu!

Fiquei com vontade de protestar, de dizer-lhe que estava havendo um erro de pessoa, que ela queria provavelmente se referir a Baden ou Bonfá; mas ela num súbito arroubo que conseguiu elevar-lhe a estatura de dois centímetros, dirigiu-se a minha mulher não sem uma ameaça velada na voz:

- Você sabe a responsabilidade que tem, menina? ser a companheira de um poeta, de um compositor? Você sabe que ele não se pertence, é um patrimônio de todos nós? Você sabe o que é ser musa de um poeta?

Minha mulher, que é muito mais Manuel Bandeira, e tal já me fez ver, chegou a olhar-me com uma certa surpresa enquanto eu, no auge da covardia, procurava abrandar a sagrada cólera da Begum do Lugar-Comum, como a passamos a chamar depois:

- Ela é boazinha, ouviu...

E sem saber mais o que fazer, ofereci-lhe um cigarro, que ela declinou com seca compunção:

- O poeta vai me perdoar, mas uma mulher (e fuzilou a minha com os olhos) deve ter na boca um gosto de amor e não de fumo...

- Falou pouco, mas bem...

Era a rendição. Ela sorriu deliciada:

- Ah! poeta... As mulheres como eu só falam a linguagem do coração...

Na despedida tomou-me familiarmente o braço até a porta, sem dar a menor importância à "minha musa".

- Agora que já sabe o caminho, volte sempre. O ninho é pequeno mas o afeto é grande. Eu serei sempre... toda ouvidos...

A porta fechada, descendo as escadas para a rua, eu me surpreendi com horror dizendo à minha "companheira`.

- Que tal se fôssemos ao Alfredo, comer um fettuccini al triplo burro?