sábado, 21 de setembro de 2013

Trova 263 - Dorothy Jansson Moretti (Sorocaba/SP)


Folclore dos Estados Unidos (Lenda Wyandot: A Criação do Mundo)

Haviam pessoas que viviam além do céu.  Eles eram os Wyandots. Um dia, o pajé disse para o povo a cavar em volta das raízes da macieira selvagem perto da cabana do chefe e os índios começaram a cavar. A filha do chefe estava deitada próximo.  Assim que os homens cavaram,  um barulho repentino os assustou.  Eles pularam para trás.  Eles haviam quebrado o piso do País dos Céus, e a árvore e a filha do chefe caíram através do buraco.

Nessa época o mundo não era nada mais do que um grande lençol de água. Não havia nenhuma terra em lugar nenhum.  Alguns cisnes nadando sobre a água no ouvido um estrondo de trovão. Foi a primeira vez que se ouviu um trovão no mundo.  Quando olharam para cima, eles viram a árvore e uma mulher estranha caindo da a mulher estranha cair do País dos Céus. Um deles disse: “Que coisa estranha está caindo?”  Então, ele acrescentou, “a água não vai sustentá-la. Vamos nadar em conjunto para que ela possa cair sobre nossas costas. “Então, a filha do chefe caiu sobre suas costas, e se deitou.

Depois de algum um tempo um cisne disse: “Que faremos com ela? Não podemos nadar desse jeito por muito tempo. Os outros disseram: ” Vamos para perguntar à Grande Tartaruga.  Ele provavelmente vai convocar um Conselho.  Então saberemos o que fazer.

Eles nadaram em torno da Grande Tartaruga e perguntaram-lhe o que fazer com a mulher em suas costas. Grande Tartaruga rapidamente enviou um mensageiro com um mocassim para os animais, então eles vieram de uma só vez para um grande Conselho. O Conselho se reuniu por um bom tempo. Então alguém se levantou e perguntou sobre a árvore. Ele disse que talvez os mergulhadores pudessem descer e ficar um pouco de terra de suas raízes, se eles descobrissem onde a árvore havia afundado. Grande Tartaruga disse: “Sim.  Se conseguirmos pegar terra, talvez possamos fazer um ilha para esta mulher. Então, os cisnes levaram todos para o local onde a árvore havia caído no fundo das águas.

Grande Tartaruga convocou mergulhadores. Primeiro foi a lontra, o melhor de todos eles.  Ele afundou de uma só vez para longe da visão.  Ele passou um longo, longo tempo.  Finalmente ele apareceu, mas ele engasgou e estava morto.  Então o rato almiscarado foi enviado. Ele também passou um longo, longo tempo. Muskrat também morreu.  Em seguida o castor foi mandado para baixo para obter a terra das raízes da árvore.  O castor também se afogou. Muitos animais morreram afogados.

Grande Tartaruga bradou:  “Quem vai se oferecer para ir para baixo para buscar a terra?” Ninguém quis se oferecer, até que no último minuto uma velha rã disse que iria tentar.  Todos os animais riram. A velho rã era muito pequena e feia.  Grande Tartaruga observou ela atentamente, mas enfim ele disse: “Bem, você tenta então.”

Para baixo nadou a velha rã.  Enfim ninguém podia mais vê-la, apesar dela descer muito lentamente. Então eles esperaram que ela voltasse. Eles esperaram e esperaram e esperaram.  Eles começaram a dizer: “Ela nunca vai voltar.”  Então eles viram uma pequena bolha na água. Grande Tartaruga disse: “Vamos nadar até lá. Lá é onde a velha rã está vindo. Assim foi feito. Então a velha rã veio lentamente à superfície, perto de Grande Tartaruga. Ela abriu a boca e cuspiu alguns grãos de terra que caíram no casco de Grande Tartaruga. A velha rã morreu também.

Pequena Tartaruga logo começou a esfregar a terra ao redor das bordas do casco de Grande Tartaruga.  A terra começou a crescer e virou uma ilha. Os animais olhavam à medida que crescia.  Em seguida, a ilha se tornou grande o suficiente para a mulher para viver, assim ela pisou na terra.  A ilha cresceu mais e mais,  até que se tornou tão grande quanto o mundo é hoje.

Quando um terremoto acontece, é porque grande tartaruga moveu seu pé. Às vezes ele fica cansado de carregar o mundo.(1)
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Nota:

(1)
Nos mitos cosmológicos de muitas culturas uma tartaruga sustenta o muno nas costas ou até mesmo sustenta os céus.


Fonte:
UDSON, Katherine B. Myths and Legends of British America. 1917.

Ignácio de Loyola Brandão (Sem ? é impossível perguntar)

Serginho olhou para o teclado e apertou a tecla 2.

Em seguida, digitou o shift e apertou 2.

Apareceu o símbolo @ .O que será isso?

Depois,ele apertou o shift e o símbolo + surgiu no monitor. Serginho ria, divertia-se com a novidade.

Se não apertasse a tecla shift, em lugar do + apareceria o sinal =.

O que será que queria dizer?

Que o + e o = são iguais, dependendo da tecla shift?

Se quisesse o 5,bastava apertar a tecla 5.

No entanto, ao apertar o shift junto com o 5,o que apareceu na tela foi um símbolo engraçado,%.

Perguntou e o pai explicou que era porcentagem.

– O que quer dizer porcentagem?

O pai ficou calado uns minutos.

– Veja! Você tem o número 100 .Mas deseja apenas 10% de 100. Ou seja, você deseja apenas 10.

– Por que vou querer 10% de 100?

Era uma boa pergunta, o pai ficou de responder no dia seguinte, estava atrasado para o trabalho.

Serginho teve certeza de que o pai não sabia o que era porcentagem e ficou alegre. Tão bom descobrir que o pai da gente não sabe todas as coisas do mundo. Assim fica igual à gente. Havia meninos cujos pais sabiam tudo, faziam tudo, podiam tudo. Eram meninos chatos, pentelhos, pareciam os pais. Ou será que eram mentirosos?

Todavia, Serginho não estava preocupado com nada disso. Tinha descoberto as mágicas do teclado, as estranhezas que podia fazer com ele.

Ao apertar o shift e o 3, surgia uma gradinha. Assim:#.

O que seria? Para que serve? para fazer uma jaula? Para prender mosquito? A questão era : para que servem as coisas, os sinais diferentes que a gente pode produzir no teclado de um computador?

Serginho gostou do 8 misturado ao shift. Ele produzia uma estrelinha simpática *.

Aproveitou, fez um monte, uma linha inteira

******************************************

Já o 6 com shift fazia surgir um chapeuzinho ^. Serginho não teve dúvidas. ‘’Vou ter uma chapelaria” pensou.

^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^

Havia uma maçãzinha, ele apertou, nada aconteceu.

Ficou desapontado. Imaginou que sairiam maçãs, igual a máquina de refrigerantes que havia na lanchonete da esquina.

Apertou o 1 sozinho. Nada se passou. Quando apertou o 1 com o shift, viu o sinal!.

Quando o pai chegou, ele perguntou o que era.

- Isso é uma exclamação.

- E o que é uma exclamação?

Como explicar uma exclamação?

-Olhe, vou exclamar! Assim você saberá o que é a exclamação.

Então, disse, bem alto:

– Puxa! Meu deus! Ora! Nem me diga! Tudo com ênfase, firmeza, exclamativo.
– entendeu?

– Não!

O pai aproveitou:

– Viu? Esse não que você disse foi uma exclamação! Deu para sacar?
 
– Ah, uma exclamação é um não bem forte?

– A exclamação é o contrário da interrogação.

– E o que é interrogação?

– É uma pergunta.

– Quer dizer que a exclamação é uma não-pergunta?

O pai disse que precisava ir trabalhar.

Serginho apertou a tecla que ficava perto do shift e parecia um tracinho caindo, bêbado. Saiu no monitor um?.

O que é esse pauzinho torto?, pensou. Parece um corcunda!

O irmão mais velho, de 17 anos, passou com o skate nas mãos.

– Sabe o que é isso, Ciro?

– Sei, uma interrogação!

Apesar de brigar muito com o irmão, Serginho gostava dele, admirava. Ficou feliz. Ia saber o que é uma interrogação.

– O que é interrogação ?

– Sabe, é a coisa que você precisa quando vai fazer uma pergunta. Sem ela você não pode perguntar, ninguém vai saber que é pergunta.

– E a exclamação?

– É quando você exclama.

– E quando exclamo?

– Quando você diz puuuuuxxxxaaaaa!

– Puuuuuuuuuuuuxxxxxxxxaaaaaaaa, tão fácil!

Serginho tremeu. Que maravilha! Coisa mais incrível. Se não existisse o ? ninguém poderia perguntar. Como viver sem perguntar? Todo mundo sabe que para ter o sinal ? é preciso apertar o shift e o tracinho caindo? Ciro saiu, estava atrasado, deixando Serginho intrigado. Que coisa engraçada. Quer dizer que se eu não tiver um ? não posso fazer uma pergunta? E se não existisse o shift no teclado, não poderíamos perguntar? Estava achando tudo fascinante. O pai tinha trazido o computador, presente para os filhos, os mais velhos começavam a precisar para trabalhos da escola, para a internet, a irmã queria namorar por meio dele, a mãe desejava planejar o orçamento familiar, era uma família organizada.

    O computador tinha chegado na noite anterior e Serginho desde manhã estava tentando decifrar mistérios. Era divertido, complicado. Acima de tudo, mágico. Ele podia digitar uma letra (ainda que não soubesse que a palavra era digitar) e colocá-la fechada dentro de duas cercas (8),podia criar um mundo de estrelas *,de +,de chapéus ^.,

Não sabia ainda o que fazer com tudo, mas descobriria. Teria de ser sozinho, o pai mostrava não ter paciência. Ou talvez não soubesse. Porque o computador parecia remeter a coisas da vida que não tinham explicações fáceis.

O que é vida?

Por que não se vê o ar ?

Quando nasceram as letras?

Por que a água molha?

Por que o número 7 é o 7 e não o 8,e o 9 é não o 2?

Como a voz vem pelo telefone?

Serginho estava descobrindo que a vida e o computador abrigam coisas que os adultos não sabem, não conhecem, não explicam. Que a vida e o computador têm perguntas sem respostas. Mas que respostas existem e estão dentro do computador e das pessoas.

Disposto a descobrir, ele começou a apertar todas as teclas: Caps Lock, return, shift, tab, clear, help, home, Page up, Page down, control, option.

Estranhas palavras.     Quem fala assim? Língua de computador. Encheu o monitor de números, símbolos, signos, letras.

E ai viu uma tecla delete.

Apertou. Tudo sumiu, ficou branco.

O computador tinha engolido suas coisas de volta, mas estava pronto a devolver.

Devolver seus mistérios, sua mágica, o encantamento do shift, essa tecla solitária que produz tanta diferença.
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Nota:
CIRO=relativo aos ciros, antigo povo germânico que combateu juntamente com os hunos.

Fonte:
Deixa que eu conto. SP: Ática, 2008.

Rachel de Queiroz (Seca)

Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:

- Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.

Aquele “cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bom-dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira e foi-se pondo de pé.

- O quê? Que é que você quer?

O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pelo cal da parede:

- Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha.

- E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?

O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:

- Ninguém perguntou a ela o nome do dono...

Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:

- Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?

Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar:

- Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação.

O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros:

– Era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal... 

O Augusto veio olhar também e ficou danado:

- Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito novo!

Mas o olho do homem escuro era feio, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão . Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor:

- Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!

Depois, retornando ao homem:

- Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças. Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir!

O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava, em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marcavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no terreiro.

Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.

MORALIDADE:
Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.

Fonte:
QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras São Paulo: Ática, 1997.

Ezequiel Theodoro da Silva (A Formação do Leitor no Brasil: o novo/velho desafio)

Ainda que as diferentes motivações para as práticas de leitura estejam vinculadas a condições super e infra-estruturais de uma sociedade, não há como negar que a escola, enquanto instituição encarregada pela formação educacional das novas gerações, exerce um papel de máxima importância no processo de preparação de leitores. Nestes termos, pode ser afirmado que a um ensino de qualidade, atendendo a critérios de excelência, segue-se a formação de leitores maduros, com competência suficiente para caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da escrita.

No Brasil, a leitura vai mal porque a escola está muito mal, vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo. Tais carências, por sinal já reveladas e amplamente conhecidas, não vêm sendo enfrentadas com o devido grau de seriedade e responsabilidade pelos governos; o resultado no agora é um cenário desolador, cuja transformação depende de volumosos investimentos no sentido de recuperar o "tempo perdido". Sabe-se, por exemplo, que a biblioteca escolar é uma estrutura imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor; entretanto, a sua viabilização concreta sempre fica
para depois, fazendo com que o "provisório" ou, pior, o "inexistente" seja reproduzido ao longo dos anos. As boas intenções e as grandes metas, visíveis em todas as políticas de leitura de início de governo, terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na corrente da história.

A contradição maior é esta: o ensino brasileiro é livresco dentro de uma escola sem livros.' De fato, a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu sustentáculo maior, senão exclusivo. A voz e a autoridade do professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de informações. Nestes termos, a convivência prazerosa e produtiva com uma diversidade de obras é, na maior parte das vezes, substituída por um esquema redutor de leitura e, por isso mesmo, destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores durante a fase da escolarização.

No que se refere ao condutor do processo de ensino, o professor, fala-se em baixa quantidade de leitura. E poderia ser de outra maneira? A corrosão da dignidade desse profissional, revelada principalmente por salários vergonhosos, vem acontecendo no país desde o início da década de 70. A sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos empregos e/ou várias funções concomitantes. Não lhes sobra tempo e muito menos energia para ler. Não há dinheiro para aquisições freqüentes de livros. Não existem programas regulares de atualização via leitura e estudo de obras escritas. Dessa forma, ou seja, imerso num oceano de condições adversas, o professor - esse espectro do "espelho quebrado" - raramente pode dar o seu testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem pela frente. Daí a improvisação, a fragmentação, a rarefação do ensino da leitura na escola, o que engendra práticas de leitura em moldes mecanicistas e, no mais das vezes, sem nenhuma significação para os estudantes.

Quando um desafio social permanece no tempo e se esclerosa por falta de ações superadoras, ele aumenta em volume e em potência, tornando a necessidade de base ainda maior. A "crise da leitura" no seio da sociedade brasileira assinala um quadro de necessidades diversificadas, que vem se repetindo e se avolumando há bastante tempo.

As políticas de enfrentamento, visando a minimização e/ou superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas, revelaram-se, até aqui, totalmente inócuas porque operaram apenas no nível do discurso, porque foram descontínuas e/ou porque não receberam verbas suficientes para a sua implementação. Dessa forma, as velhas tradições relacionadas ao encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam inabaladas, configurando um círculo vicioso de dificil combate. O provisório se eterniza; o inexistente se cristaliza ao longo dos anos.

No quadro das velhas - e perniciosas - tradições deve ser também colocada a esfera da indústria editorial, de onde nascem os livros didáticos, privilegiando muito mais os critérios mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais do mundo educacional. Boa parte das editoras brasileiras fatura em cima das desgraças escolares, entre elas a ignorância e as opressões vividas pelos professores. Os sofisticados aparatos para o jogo contínuo do marketing, os lobbies para pressionar a aquisição anual de livros pelas agências governamentais, as manobras exercidas em direção ao livro didático "descartável", a "disneylândia pedagógica", etc... - tudo isso revela uma ação vesga ou caolha, ainda que extremamente lucrativa, frente a uma escola com baixa qualidade de ensino. Se os livros didáticos (por si só) resolvessem as complexas relações do ensino-aprendizagem, o Brasil teria, sem dúvida, o melhor sistema educacional do mundo. Triste panorama de contrastes: indústria editorial viçosa dentro de um terreno escolar bombardeado!

Tão bombardeado, tão carregado de necessidades que se toma dificil, neste momento, saber por onde começar os projetos e programas de transformação. Por exemplo, se é verdadeira a afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do indivíduo, cabe pensar nos altos contingentes populacionais que nem sequer chegam às portas da escola, permanecendo na escuridão do analfabetismo da palavra escrita. Cabe pensar nos altos índices de evasão e repetência escolar, levando os jovens a abandonarem a escola. Se é verdadeiro o pressuposto de que a formação do leitor depende de uma convivência constante com uma diversidade de obras, cabe pensar na ausência de infra-estrutura (biblioteca, bibliotecário, sistema regular para o abastecimento de livros, etc...) nas escolas. Se é verdadeiro o fato de que a formação do leitor depende de professores-leitores, cabe pensar na débil dignidade salarial desses profissionais. Cabe pensar também os aspectos de sua formação e atualização profissional. E ainda cabe saber quando, afinal, o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura, juntos e unidos, vão começar um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas.

A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal... e a sociedade está pior ainda: desemprego, dependência, criminalidade crescente, corrupção, miséria e fome. Nestes termos, a promoção da leitura, com infra-estrutura coerente, e a formação de leitores, com pedagogias adequadas, são apenas grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em expansão a cada ano que passa. O redemoinho da esperança de alguns continua a varrer esse deserto, porém apenas deslocando a areia, sem alterações significativas ou duradouras do árido cenário.

O sofrimento maior, para aqueles que refletem sobre as práticas de leitura no território nacional, é ter que gritar nesse deserto. Continuamente. Dolorosamente. E ter consciência, por exemplo, de que "Pensar a leitura como formação implica pensá-la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor: não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo que ele é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos deforma ou nos transforma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão frente àquilo que somos (...) como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos." ?
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NOTAS

(1) A expressão "O livro é livresco, mas sem livros" é de João Wanderley Geraldi, servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da Leitura (SP: Martins Fontes, 1988, p.IX-XIII). Ele assim a caracteriza: "Sem livros, pratica-se no Brasil um ensino livresco. (...) o ensino livresco é autoritário, mistificador da palavra escrita, a que se atribui uma só leitura, obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins em si mesmos. A ausência do livro é compensada pelas máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e pelos livros didáticos. Produtos de consumo rápido, disponíveis, descartáveis; nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudá-lo para extrair dele o que se busca: não há busca, engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos; não se degustam conquistas, as sopas pré-silábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar, mastigar, degustar - a papa está pronta ".


(2) A questão relacionada aos aspectos provisórios (não-permanentes) para a promoção da leitura nas escolas foi amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia, no livro Biblioteca Escolar. Estrutura e Funcionamento. Pelo fim do provisório eterno (RJ: Paulinas, 1991). Luis Augusto Milanesi, através de vários estudos, também revela as nossas carências de infra-estrutura para a promoção da leitura em sociedade, incluindo a escola.

(3) cf. Jorge LARROSA, La Experiência de La Lectura. Studios sobre Literatura y Formación. Barcelona: Editora Laertes, 1996, p. 16.


Fonte:
Jason Prado e Paulo Condini. A Formação do Leitor: pontos de vista. RJ: Argus, 1999.

Vera Carvalho Assumpção (A Dama Imortal)

Como já disse diversas vezes nas minhas crônicas, sempre fui apaixonada pelas damas do crime, especialmente as inglesas. Também minha primeira crônica sobre o gênero policial fala sobre o final feliz das histórias. As pessoas gostam e se viciam nas histórias policiais porque sabem que, no final, o assassino será apontado e, diferentemente da realidade, de alguma forma a paz e a ordem serão restabelecidas e a justiça será feita. O que significa um final feliz.

São muitas as escritoras que se sobressaíram no gênero policial. No entanto, Agatha Christie continua sendo sucesso no mundo todo e, aqui no Brasil, as reedições se sucedem. Quem investiga o fenômeno começa sempre com a matemática de suas conquistas: só a Bíblia e Shakespeare venderam mais do que ela. Claro que a Bíblia é comprada e nem sempre lida! Shakespeare, não sei.

A questão permanece: como essa mulher conseguiu tanto sucesso e por tanto tempo? Talvez sua força tenha sido usar o próprio talento para fazer bem feito o que sabia fazer. Durante mais de cinquenta anos, Agatha produziu assassinatos e seus misteriosos desfechos, que continuam a surpreender e encantar seus leitores.

Com certeza o apelo universal de Agatha Christie não repousa em sangue ou violência, não nos corpos crivados de balas nas ruas perigosas dos “hard-boiled” americanos, não na selva de pedra do detetive sardônico, rápido no gatilho e gozador, nem na cuidadosa análise psicológica da depravação humana. Embora seus dois detetives, Poirot e Miss Marple, de vez em quando, investiguem assassinatos no exterior (Morte no Rio Nilo etc.), seu mundo é, na maioria das vezes, uma aconchegante e romantizada cidadezinha inglesa, enraizada em nostalgia, com sua hierarquia bem ordenada: o elegante cavalheiro rico (muitas vezes com uma jovem esposa de antecedentes misteriosos), o coronel poderoso e irascível, o médico da aldeia e sua enfermeira, o farmacêutico (útil para a compra e fabricação de venenos), as solteironas fofoqueiras atrás das cortinas de renda, o pároco local. Todos se movimentando previsivelmente em sua hierarquia social como num tabuleiro de xadrez. No entanto, nessa mítica cidadezinha cujos habitantes aparentemente são inofensivos e familiares, há sempre um que vai nos surpreender.

Ela não usa grande sutileza psicológica em suas caracterizações. Seus vilões e suspeitos são desenhados em traços amplos e claros e, talvez por causa disto, têm uma universalidade que leitores do mundo inteiro reconhecem instantaneamente. A base moral dos livros é simples e sem ambiguidades, resumida na declaração de Poirot: “Tenho uma atitude burguesa em relação ao assassinato: não o aprovo”.

Apesar do assassinato, a última coisa que se obtém num romance de Agatha é a presença perturbadora do mal. Não há emoções perturbadoras, estas ficam para o mundo real do qual buscamos na leitura uma tentativa de escapar. Enquanto lemos, todos os problemas e incertezas da vida são agrupados em um foco central: a identidade do assassino. E sabemos que, no final, isto será satisfatoriamente solucionado e a paz e a ordem serão recuperadas.

Seus leitores podem encontrar, livro após livro, a confortável garantia de rever velhos amigos. Ela nos induz, com delicada esperteza, a enganarmos a nós mesmos. Tomamos cuidado ao entrar naquela que é a mais letal das salas: a biblioteca. Suspeitamos do desocupado e insinuante retornado de terras estrangeiras e atentamos cuidadosamente aos espelhos, às portas entreabertas. Além da atenção redobrada ao mordomo.

Tantos truques são invariavelmente mais engenhosos do que críveis. As histórias são brandos enigmas intelectuais, não esquemas verossímeis do verdadeiro assassinato.

Quando a vítima é assassinada, há pouca informação quanto ao suspeito principal. Só no fim do livro reconhecemos que as pistas estavam todas ali e não percebemos, ou a autora as colocou de forma tão sutil que conseguiu nos enganar. Mas aí o leitor já está satisfeitíssimo, pois acabou de encontrar a paz e a ordem que procurava. Descobriu-se o assassino e alguma forma de punição vai ocorrer. Pelo menos na ficção!

Fonte:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/category/vera-carvalho-assumpcao/

Vera Carvalho Assumpção (Livro: Paisagens Noturnas)

Primeira Aventura do Detetive Alyrio Cobra

Um rico executivo tem a irmã assassinada próximo à escola de periferia em que lecionava. Dois alunos confessaram o crime e o motivo: a professora os perseguia e impedia a atividade de venda de drogas nas salas de aula. Existiam assassinos confessos e um bom motivo. No entanto, algumas dúvidas pairam na mente do irmão da vítima que contrata o detetive Alyrio Cobra.

Num crime aparentemente solucionado, Alyrio Cobra se embrenha num mundo onde uma série de quadros que retratam paisagens escurecidas pela noite e assombradas pela lua guia seus passos. O que a princípio parecia um caso resolvido vai se mostrar um desafio para o detetive.

Vera Carvalho Assumpção é pioneira na publicação de livros virtuais e criadora do detetive Alyrio Cobra, sobre o qual publicou "Caldeirão de Raças" e "Paisagens Noturnas". Recebeu vários prêmios por contos publicados, como o “Gralha Azul” e o “Guimarães Rosa”. Participou de várias antologias, como a “Contemporary Brazilian Literature”, da Universidade de Colorado, e teve contos publicados na revista “Semente”, da Universidade de Évora.

Fontes:
Sobre o livro = a autora
Sobre a autora =http://www.kbrdigital.com.br/vera-carvalho-assumpcao.html

Dalton Trevisan (O Leão)


  A menina me leva diante do leão ,esquecido por um circo de passagem. Velho e doente, não está preso em grades de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: pernas reumáticas ,juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, fossem lágrimas.

   Observei em volta: todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o antigo prestígio  as crianças ao redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entrevadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se de pé.

   Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe  um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: estremece a grama a seus pés. Simula ignorara a provocação e mastiga com dificuldade, no canto da boca, um pedaço de carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne. Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.

 - Ele não tem dente?

 - Tem sim, não vê? Não tem a força de morder.

   Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso de derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora ,leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho lacrimoso e doeu.

   O leão abriu a bocarra de poucos dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor elevou-se aos tracos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé.Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco antigo.

   Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão trovejou seis ou setes urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.

Fonte:
Deixa que eu conto. SP: Ática, 2008.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 43

CAPÍTULO XX

Se em casa de Teobaldo corriam as coisas deste modo, em casa de D. Margarida elas não iam melhor. Inês tinha agora um filhinho, e o alferes, depois do casamento, piorara de gênio e de costumes. Se ele até aí era já despejado de maneiras, era agora nada menos do que brutal, e, se dantes costumava beber nos dias de folga, agora se emborrachava toda a vez em que se lhe oferecia ocasião.

E o demônio do homem, quando se punha no gole, ficava que ninguém podia com ele: muito grosseiro, muito exigente, tanto com a mulher como com a sogra, e por tal forma ameaçador que fazia tremer as duas míseras criaturas. Nos sábados à noite era certo o chinfrim em casa de D. Margarida e, como por experiência já sabiam que o Picuinha, quando entrava bêbado, reduzia a cacos quanta louca lhe caía nas mãos, mal o pressentiam de longe, tratavam de esconder às pressas nos armários tudo o que fosse de quebrar.

Ele chegava resmungando e pedia logo alguma coisa para beber; elas negavam, e principiava então a grande luta, cujo desfecho era muita bordoada e uma berraria dos diabos, porque tanto a velha praguejava, como chorava Inês e berrava o pequeno. E o alferes, cada vez mais furioso, ia distribuindo pontapés e murros para a direita e para a esquerda, danado por não encontrar nem um pires ao seu alcance.

Oh! Aquela mania de quebrar a louça era o que mais enraivecia a velha.

— Mas o grande causador de tudo isto, exclamava ela, é aquela peste daquele Coruja! Se não fosse ele, eu não teria agora de aturar este bêbado! Se não fosse ele Inês não teria casado com semelhante homem e não estaria com um filho às costas e outro no bucho!

E naquela casa o Coruja ficou sendo o termo de comparação para tudo o que havia de mal ou feio ou repugnante.

"Ruim como o Coruja! Mais torto que o Coruja! Velhaco que nem o Coruja! Mentiroso nem como o Coruja!"

E, quando Inês fazia recriminações ao marido, este lhe atirava logo em rosto com o nome do outro:

— E, dizia ele, com a sua voz cavernosa de ébrio, você nunca devia ter-se casado senão com aquele coxo! Estavam mesmo talhados um para o outro! Asno fui eu em meter-me neste inferno e ligar-me a semelhante gentinha! Não solto um espirro, que logo não me queiram tomar contas porque espirrei — é o que se pode chamar "não ser senhor do seu nariz!" Aqui todos querem mandar sobre mim — é mulher, é sogra, é o diabo! Ah! Mas um dia cismo deveras e vai tudo raso, faço uma tal estralada que vai tudo de pernas para o ar! Mexam muito comigo e verão!

E, depois de sacudir os braços e repelir do pulmão o ar alcoolizado:

— Caramba! Quero saber se tenho de dar contas de meus atos a safardana algum desta vida!

— Pois então não se casasse!... Arriscava Inês.

— Ah! Se eu pudesse adivinhar, decerto! Antes de tudo a minha liberdade! Agora já nem com o que eu ganho posso contar!

— Quem o ouvisse havia de supor que lhe custamos muita coisa! Olha a graça! Depois do tal casamento é preciso puxar aqui muito mais pela agulha e pelo ferro de engomar!

— Ó raio de uma fúria! Berrava afinal o Picuinha, se não calas essa boca do diabo, racho-te de meio a meio!

— Também é só para que você presta, casta de um bêbado!

— É! O Coruja havia de prestar para muito mais!

— E talvez que sim!

— Bem, mas basta! Estou farto! Arre!

D. Margarida em geral só se metia nestas polêmicas de Inês e Picuinha, quando a contenda chegava ao auge, e então é que era barulho!

Quase sempre terminava o banzé com a intervenção dos vizinhos, muita vez com a da Policia. O alferes, porém, longe de tomar caminho, ficava pior de dia para dia.

As duas senhoras já não conseguiam apanhar-lhe dinheiro, senão tirando-lhe à força das algibeiras, e isso mesmo quando sobrava algum da pândega. E que não lhe apresentassem na manhã seguinte a calça engomada e a camisa limpa, que haviam de ver o bom e o bonito!

— Ah! Dizia a velha, aquele malvado, cortado em pedacinhos e posto em salmoura, ainda não pagava a metade do mal que nos tem feito!

Este malvado, a quem ela se referia, não era o alferes, era o Coruja.

Uma ocasião, entretanto, depois de uma tremenda carraspana, o alferes foi acometido por um violento ataque de nervos e viu-se obrigado a guardar a cama durante uma semana inteira; apareceram-lhe perturbações cardíacas e ligeiros sintomas de amolecimento cerebral. O médico declarou que isso tudo era efeito do álcool, e proibiu ao doente que bebesse, que fumasse, e recomendou-lhe que tivesse toda a regularidade na comida, sem o que se arriscava a ficar perdido para sempre. Picuinha ficou muito impressionado com o que ouviu do médico, e parecia seriamente resolvido a mudar de vida.

Principiou arranjando mês e meio de licença e durante este tempo submeteu-se ao mais rigoroso tratamento; logo, porém, que se achou com a saúde mais garantida, foi aos poucos recaindo nos seus antigos hábitos; e então, de cada bebedeira que apanhava, era--lhe preciso ficar em casa dois, três dias, prostrado, muito irascível, muito nervoso, a beber caldos, sem poder suportar no estômago um bocado de pão.

Por estas crises tornava-se tão insuportável à mulher e à sogra, que as duas já pediam a Deus que o levasse por uma vez.

E as bebedeiras repetiam-se. Então no dia do recebimento do ordenado a coisa era feia; nesse dia escondia-se a louça e preparava-se a casa para o infalível chinfrim.

Mas agora o borracho, receoso já de que as duas mulheres lhe dessem busca às algibeiras, como costumavam fazer, escondia o dinheiro em lugares os mais extravagantes que se podem imaginar; escondia-o dentro da meia, escondia-o no forro da farda e às vezes debaixo dos sovacos.

E, logo que a mulher ou a sogra, depois de uma terrível luta com o alferes, conseguiam descobrir e arrancar-lhe o dinheiro, o homem ficava possesso.

— Ladras! Berrava ele quase sem abrir os olhos! Ladras! Não posso ter um vintém que não mo roubem!

O Picuinha afinal caiu nesse estado mórbido das pessoas inutilizadas pela bebida e do qual, como os trabalhadores das minas de mercúrio, só conseguem fugir por instantes refugiando-se no próprio veneno que os corrompe e mata. Acordava muito mole, com um pigarro convulso, que só deixava depois que ele vomitasse a sua pituíta dos ébrios; e pela manhã tinha sempre o corpo dorido, a salivação grossa e amarga, os intestinos em brasa, os olhos ardendo e lacrimejando; mas, era só beber um trago de parati, e ficava logo esperto.

Também, agora não precisava de mais para aprontar-se; uma dose pela manhã, antes de entrar no serviço; outra à tarde, ao deixá-lo, e ninguém o via senão ébrio.

Os superiores começaram, pois, a repreendê-lo com mais frequência e já o ameaçavam com uma queixa ao chefe; na repartição diziam todos que, se ele há muito não estava na rua, era simplesmente porque o comandante tinha pena de deixar aos paus um pobre diabo com a mulher e filhos.

Não obstante, depois de mais algumas crises como a que o tomou pela primeira vez, o Picuinha ficou irremediavelmente perdido e incapaz de todo e qualquer serviço. Estava até meio idiota e o corpo tremia-lhe todo como o de um velho de cem anos.

CAPÍTULO XXI

— Uma desgraça nunca vem só! Considerou D. Margarida, pois que justamente quando o genro se inutilizava para ganhar o pouco que até aí ganhava, era ela acometida por uma carga de reumatismo. e tão forte, que não lhe permitia servir-se dos braços, nem das pernas.

O Coruja, sabendo disto, foi visitá-la incontinente.

— Ah! É você?... Resmungou a velha, ao ver entrar no quarto a entristecedora figura de André.

Inês escondeu-se para não lhe aparecer.

Ele estava muito acabado e abatido; parecia mais velho, ainda no seu andar de coxo.

— Então! Você foi quem se lembrou de vir visitar-me, hein? Grande caiporismo, o meu!
E a voz da velha era repreensiva e dura.

— É exato... Respondeu Coruja, indo assentar-se ao lado da cama em Que ela estava estendida. — É exato; ouvi dizer que a senhora e os seus têm curtido ultimamente bem maus pedaços...

— Por sua causa, atalhou Margarida, gemendo pelo esforço de mexer com um dos braços — só ao senhor devemos tudo isto!

— Pois acredite, minha senhora, que nunca pensei em fazer-lhe mal de espécie alguma... Resmungou o acusado, sentindo-se já comovido em meio de toda aquela desgraça.

— Ora! Rosnou a outra, se o senhor não tivesse procedido pelo modo imperdoável com que procedeu conosco, minha filha não teria caído nas mãos daquele homem e ambas nós não estaríamos neste bonito estado!... Até digo-lhe mais: o senhor, se tivesse um bocado de consciência, nem poria mais os pés nesta casa!

— Engana-se, D. Margarida, justamente por não me faltar consciência é que vim procurá-la; quero ser útil à senhora e à sua filha, naquilo que estiver ao meu alcance.

— E com isso nada mais faz do que o seu dever!

— Bem sei; bem sei que o dever de todos nós neste mundo é auxiliar-nos uns aos outros e, tanto assim que aqui estou. Olhe! Não lhe poderei dar muita coisa, porque desgraçadamente de muito pouco disponho na presente ocasião, mas com o pouco também se ajuda. Por enquanto cá estão vinte mil réis, desculpe; logo mais virá o médico e eu me encarregarei de mandar aviar as receitas que ele fizer. Adeus.

— Passe bem, respondeu a velha.

E o Coruja, arrastando a sua perna coxa, saiu, prometendo aparecer de vez em quando.

Na segunda visita, Inês não se escondeu e foi apertar-lhe a mão, em agradecimento pela parte que lhe tocava, a ela, na "esmola" feita por ele à velha. — Não foi esmola... Disse Coruja, abaixando os olhos envergonhado, pelo menos juro que não foi com essa intenção Que fiz aquele pequeno serviço. Hoje por mim, amanhã por ti! Ora essa!

E, assim falando, ele considerava intimamente a grande transformação física que se havia operado em Inês durante os últimos tempos.

Estava uma velha, e feia. Não parecia mulher de trinta e cinco anos, mas de cinqüenta. Faltavam-lhe dentes; o cabelo lhe encanecera e a pele do rosto lhe estalara em rugas; as mamas, rechupadas, caíam-lhe até a cinta e os braços pareciam, quando se fechavam, espetar com a ponta do cotovelo aquilo que encontrassem. Além disto, muito emporcalhada pelas duas crianças (a segunda nascera), muito cheia de desmazelo e de privações; o pé sujo e sem meia, o cós do vestido despregado e roto; sempre descansado e indiferente, sempre "Tanto se me dá, como se me dê", sempre a repetir o seu velho provérbio "Homem, mais vale a nossa saúde!"

Coruja perguntou-lhe como ia o marido.

— Foi para o hospital, respondeu ela.

— Para o hospital?

— Decerto, pois se lhe deu a fúria!.

— Como a fúria?

— Ora; deu para doido furioso. Quebrou aí uma porção de coisas, rasgou toda a roupa e afinal fugiu para a rua, a dar berros e quase nu. A polícia agarrou-o e meteu-o no hospício. Nós o deixamos lá, porque ele aqui não podia ficar; já bastam as consumições que temos, e não são poucas! Se eu lhe disser que seu Costa não nos deixou sequer uma xícara inteira!... Quebrou tudo, tudo que era louça!

— Coitado! Lamentou André.

— Ora! A culpa foi só dele; para que bebia daquele modo? Ah! O senhor não imagina às vezes enxugava três garrafas de parati durante o dia! Nunca vi assim! Credo!

— Coitado!

— Não apanhava um vintém, que não fosse para o demônio do vício! Ultimamente estava até descarado; pedia dinheiro a todo o mundo — Para beber!

— É uma desgraça!

— Ora! O médico bem que o preveniu. Importou-se esta mesa com o que disse o médico. Assim fez ele! Até parece que ao depois que lhe proibiram os espíritos, bebia ainda mais!

— Uma verdadeira desgraça, coitado!

— Coitado! Coitado! Coitada mas é de mim, que me casei só para ficar com duas crianças às costas e agora de mais a mais com minha mãe doente, que era a única pessoa que me ajudava! Coitada de mim e de meus filhos!

— Descanse que a senhora e seus filhos não hão de morrer de fome! Enquanto Deus me der um pouco de forças, hei de olhar por todos.

Inês agradeceu suspirando tristemente, como quem se submete a um vergonhoso sacrifício. E desde esse dia, o Coruja ficou sendo o esteio daquela desgraçada família. Então, todas as tardes, levava-lhes o que podia, pagava-lhes a botica, o padeiro, o açougue e finalmente o aluguel da casa.

Mas só ele sabia os sacrifícios que isso lhe custava; só ele sabia quanto esforço era necessário por em prática para que não faltasse o pão de cada dia àquela gente a quem o monstro, na loucura da sua extrema bondade, entendia dever proteção e apoio.
E quem o visse tão maltrapilho, tão miserável, a bater a cidade de um ponto a outro à procura de fazer dinheiro; quem o visse tão reles, tão ordinário e tão chato, não seria capaz de acreditar que à sombra das asas daquele corvo se abrigava inteira uma família de pardais.

— Por que o senhor não vem morar conosco? Perguntou-lhe Inês, um dia em que o Coruja deixou involuntariamente transparecer o embaraço que lhe causava morar em casa de Teobaldo.

E ela acrescentou para justificar a sua proposta:

— Acho que o senhor faria bem; em primeiro lugar, porque teria aqui quem cuidasse do que é seu, de sua roupa, de seus papéis; segundo, escusava de comer em outra parte, porque comeria aqui conosco e assim a comida sai mais em conta, e, finalmente para deixar por uma vez aquela casa, que digam o que disserem, é a principal causa dessa tristeza em que o senhor vive.

O Coruja, apesar do desgosto que lhe trazia a idéia de separar-se do amigo, reconhecia razão de sobra nas palavras de Inês. Sim, não havia dúvida que ele precisava mudar-se da casa de Teobaldo e, se havia de ir para outra parte, era melhor que fosse para ali, onde todas as despesas já corriam por sua conta. Ao menos seria isso o mais lógico.

— Quer então deixar-nos? Interrogou Teobaldo na ocasião em que ele lhe deu parte da mudança.

— É melhor, respondeu André, ali fico mais à minha vontade; sinto muito separar-me de ti, mas reconheço que a minha presença muitas vezes te constrange...

E, porque Teobaldo fizera um gesto negativo:

— Ah! Não é por tua causa, decerto! Mas pelos que te cercam... Conheço perfeitamente o que são estas coisas... A política e a sociedade têm exigências muito especiais. Não te perdoariam a minha amizade, se soubessem até que ponto de intimidade ela chega. Assim, pois, é melhor mesmo que eu vá e que apenas te apareça de vez em quando, para te ver.

— Bem... Disse Teobaldo, faze lá o que quiseres; não te contrario, mas bem sabes que a minha casa estará sempre às tuas ordens.

— Ah! Quando de todo me faltar um canto para me meter...

— Certamente, certamente. Já sabes que aqui não serás nunca um estranho.

— Eu hei de aparecer sempre.

Mas Teobaldo já não lhe podia prestar atenção, porque era todo de um discurso que pretendia apresentar na câmara no dia seguinte.

Branca mostrou-se em extremo sentida com a mudança do Coruja; foi com os olhos cheios d’água que ela se despediu dele.

— Seja sempre meu amigo, disse, e, quando não tiver o que fazer, venha ler-me algumas páginas dos seus poetas favoritos.

— Deixo-os todos com a senhora, respondeu André, era essa a minha intenção desde que pensei na mudança. É para não se esquecer de mim.

— Obrigada; creia que não era preciso isso; o senhor nunca será esquecido nesta casa.

Depois disto, ele foi abraçar o velho Caetano, despediu-se de todos os outros criados, e saiu logo para não perder de vista a sua bagagem, que já havia partido adiante.

Uma coisa o mortificava agora, era que Teobaldo não tinha mais para com ele aquelas expansões primitivas; já se lhe não abria nos seus momentos penosos; já não lhe expunha, como dantes, as suas preocupações, e já igualmente não lhe pedia conselhos.

Agora dir-se-ia até que ele o tratava com um certo ar de proteção; que o ouvia distraído e apressado, sem conversar e dando-lhe muito menos atenção do que qualquer dos seus amigos dos mais modernos.

— É que ele vive lá preocupado com os seus negócios... Pensou o Coruja, para se consolar. Mas sentiu perfeitamente que no fundo azul do seu coração um principio de sombra se formava, como a nuvem negra que surge no horizonte, ameaçando logo a estender-se pelo céu inteiro e transformar-se em medonha tempestade.

Perder a amizade de Teobaldo! Oh! De todas as suas desilusões seria essa com certeza a mais cruel e dolorosa!

— Não! Não era possível!

E André nem pensar queria em semelhante coisa. Defronte de tal hipótese o seu pensamento recuava aterrado, fugindo de todo e qualquer raciocínio. E no entanto, logo à primeira visita que ele fez ao amigo depois da mudança, ainda o encontrou mais frio e distraído.

André ia pedir-lhe algum dinheiro e Teobaldo deixou muito claramente perceber a sua impaciência.

— Sabes, filho, estou, que não imaginas, atrapalhado com uma infinidade de coisas! Agora não posso tratar disso. Aparece logo! Adeus.
–––––––––-
continua…

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Folclore dos Estados Unidos (O Fantasma de Dangerfield Newby)

Um dos rebeldes comandados por John Brown, era um homem negro chamado Dangerfield Newby. Ele foi libertado por seu pai branco, mas sua mulher e sete filhos ainda estavam escravizados perto de Warrenton, VA.  O dono de sua esposa disse a Dangerfield, que pelo valor de $ 1.500,00 (mil e quinhentos dólares) iria vendê-la e os seus filhos mais novos. Quando Newby levantou a soma com o pai branco para comprá-los, o capitão subiu o preço. Ele ficou angustiado e ainda mais pensando na carta que recebeu da esposa:

“Querido marido: Eu quero que você me compre logo que possível, pois se você não o fizer, alguém fará. Os empregados são ruins e fazem de tudo para me jogar contra a patroa. Querido marido. . . Nos últimos dois anos foram como um pesadelo para mim. Diz-se que o dono está com falta de dinheiro. Se assim for, não sei quando ele pode me vender, e depois todas as minhas esperanças brilhantes no futuro são destruídas, pois se há uma coisa que me ilumina em meus problemas, é estar com você, porque se eu pensar que eu nunca mais iria vê-lo, esta terra não teria encantos para mim. Faça tudo que puder por mim, e eu não tenho nenhuma dúvida que você vai. Eu quero vê-lo tanto.”

Desesperado, então ele se juntou a John Brown, um abolicionista, na esperança de libertar sua mulher e filhos.

Mas os rebeldes não foram felizes, pois os cidadãos se armaram contra eles  na madrugada do dia 17.  Havia uma grande quantidade de armas na cidade pois eram fabricadas lá, mas não havia muita munição, e os habitantes da cidade atiravam em qualquer coisa.

Um tiro atingiu Dangerfield Newby na garganta, matando-o instantaneamente. Ele se tornou o primeiro a morrer na revolta. O povo se lembrou da Rebelião de Nat Turner 30 anos antes, em South Hampton e eles se ficaram tão enfurecidos em seu medo e ignorância, que descontaram a frustração no corpo do Newby. Ele foi mutilado e arrastado para um beco próximo, onde foi deixado aos porcos. Inclusive há um livro da época que cita, que “os bons cidadãos da cidade nem deram bola ao gosto da carne dos porcos nessa época”.

Desse dia em diante o beco foi chamado de “Beco do porco”. Algumas noites, se você andar pelas ruas de Harpers Ferry, pode acontecer de você encontrar um homem negro de aproximadamente 45 anos, vestindo calças largas e um velho chapéu, com uma terrível cicatriz em sua garganta, e você vai saber que você encontrou Dangerfield Newby, ainda tentando libertar sua esposa e filhos.

Fontes:
http://www.pbs.org/wgbh/aia/part4/4p2941.html

Carlos Leite Ribeiro (Esta Juventude…)

Mais velhos, não direi, talvez os mais antigos – de acordo?

No nosso tempo não se via disto – uma frase que se ouve com certa frequência aos mais antigos. Agora, vimos os jovens sempre agarradinhos e aos beijinhos por todo o lado.

No nosso tempo, não se via “esta vergonha” não; tínhamos uma enorme ingenuidade quase a roçar a santidade. Nós quase não olhávamos para as jovens pois tínhamos grande pudor e éramos demasiadamente envergonhados e tímidos. No meu tempo nem tínhamos tentação de saber se as carnes da nossa moça eram rijas ou moles; se ela sabia beijar bem; nem sequer um encosto mais apertado. Nada disso. Éramos uma perfeição. Nos bailes, dançávamos afastados das moças pelo menos um palmo; no escurinho do cinema, ficávamos sempre com as mãos em posição de oração e nunca por nunca a fazer pesquisas por sítios proibidos; para mais, tínhamos sempre a mamã sentada a nosso lado. Nenhuma parte de nosso corpo reagia à aproximação ou quando estamos junto da nossa amada. Nos dias de chuva, nunca procurávamos a entrada de um edifício ou mesmo o vão de uma escada; nunca (o pior era quando esses espaços já estavam ocupados por outro casal).

Nunca por nunca invejámos e muito menos desejámos a namorada dos outros ou mulher casada; nunca!

Rapazes como nós, já não existem.

Um certo colega, o Mário, certa vez foi apanhado por uma vizinha a fazer algo que não “devia” com uma moça. A dita (cuja) vizinha, chamou-o a sua casa para lhe dar uma grande lição de moral e, ao mesmo tempo, dar-lhe umas lições de sexologia prática; no dizer desta senhora já viúva há muitos anos, as lições seriam vinte… Mas o Mário contou a situação aos amigos e, quando a vizinha marcou nova lição, aparecemos a sua porta cerca de dez amigos. Resultado: não passou da primeira lição. O que éramos capazes para perder a nossa ingenuidade para nos integrarmos no mundo dos já muito adultos!

Volto a repetir: rapazes como nós, já não existem…

Também é preciso não esquecer que namorávamos com a moça à janela, mesmo que morasse num 5º andar enquanto o rapaz ficava na rua. Não tínhamos hipóteses nenhumas … Embora há quem diga que nós tínhamos uma “engenharia deveras criativa”; mas isso são boatos!
O caso melhorou (só um pouco) quando apareceram as “lambretas” que só tinham dois lugares e a mamã tinha que ficar de fora. O pior era quando a tal mamã marcava que de dez em dez minutos tínhamos que passar à sua porta ou num local pré-combinado.

E quando apareceram os Volkswagens de três mudanças para a frente e uma para trás? Para “conduzir” era precisa certa “habilidade” pois senão saiam dentro do carro que dolorosos torcicolos.

Rapazes como nós, já não existem…

Em 2001, escrevi este apontamento “MOMENTOS MARCAM UMA ÉPOCA ...”

Há nomes que nos marcam para sempre, principalmente, quando se referem à nossa juventude. Para mim, o nome Nan, traz-me recordações da minha meninice.

Teria uns dez anos, morava num rés-do-chão de um prédio da Pascoal de Melo (Estefânia – Lisboa), e no último andar, por sinal o 4º, morava a Nan, uma moça que na altura teria uns 16 ou dezassete anos. A mãe da moça, de nome Sen, viúva de um obscuro subchefe de uma repartição da função pública, era uma figura muito castiça: Muito magra, não muito alta, sempre vestida de preto e, fosse em que estação do ano fosse, andava sempre de sombrinha. Quando aqui em Portugal passou a telenovela “Tieta do Agreste” (que eu parodiei para a radiodifusão), logo me lembrei da D. Sen, que a vi retratada na “Charifú” desta novela. A Nan era filha única e sua mãe a defendia de todos e quaisquer “Moinhos de Vento” (eram como as mamãs tratavam os rapazes). Se a moça lhe ia fazer algum recado (compra) perto de casa, logo a mãe se empoleirava na varanda começando logo a berrar assim que ela saía do prédio: “Nan ! não te demores, olha que eu estou aqui à tua espera !” ; ou “Nan ! estás a demorar muito ! Que estás para aí a fazer ?...”. Se nas traseiras da casa, a moça estava a estender a roupa na varanda, lá estava sua mãe ralhando comigo:

- “Olha lá menino, estás a olhar para as pernas da Nan ... etc ...”.

Recordo-me uma vez minha tia dizer em voz alta para ela ouvir bem:

- “Carlitos, não olhes para cima !Podes estar a cobiçar umas pernas que não valem nada ... “.

Claro que a opinião era de minha tia, porque a minha, embora não me recorde bem, talvez fosse uma “bela panorâmica” !

Mas voltando à Nan, andava num colégio de feiras, onde a mamã a ia levar e trazer. Recordo-me de um carnaval no Clube Estefânia, em que a D. Sen quando notava (?) que o par da filha a estava a agarrar “demais”, levantava-se e o ia afastar do corpo da filha. De tantas vezes que repetiu, que se tornou um escândalo hilariante. Nessa altura, um D. Juan da época, virou-se para a D. Sen, perguntando-lhe:

- “Olhe lá minha senhora, é católica ?”. A senhora olhando-o de frente, replicou-lhe:

- “Sou sim, seu desavergonhado !.

Então o “malandreco” respondeu-lhe perante a hilaridade de todos:

- “Então vá com Deus e deixe sossegada a sua filha!”.

Era assim a vida da Nan ...

Meses depois, a pequena, não se sabendo muito bem porquê, apareceu grávida. É verdade !. Já na gravidez avançada, tanto a mãe como ela, juravam a pés juntos que não sabiam com “aquilo tinha acontecido”. Algumas vizinha, (daquelas mais aconselhadas), aconselharam a D. Sen a ir a uma senhora de grande virtude, que morava na Horta das Tripas (Casal de Santa Luzia – Rua D. Estefânia) para que ela expulsasse o “Mafarrico” do corpo da moça, porque tal só podia ter sido “obra do diabo”. Outras menos “cultas” diziam que tinha era sido “obra e graça do Espírito Santo”...

Fosse como fosse nasceu um bebé que teve como nome Francisco (o Chiquinho).

Muito mais tarde, já a D. Sen tinha entregado a alma a Deus e o corpo à terra fria, a Nan confessou que “talvez fosse obra de um ajudante de limpa-chaminés”. Na altura, existiam em Lisboa o “limpa-chaminés” que subiam aos telhados, ponham uma corda muito comprida dentro das chaminés e tiravam a “ferrugem”; pelo menos faziam muito lixo. Normalmente quem tinha a chave da porta que dava para o telhado era o locatário do último andar. Assim, um dia, a Nan foi abrir a porta ao ajudante de limpa-chaminés, enquanto o mestre ficava junto às chaminés das cozinhas, segurando a corda, o ajudante abanava - a no telhado.

Ainda segundo o relato da Nan “foi tudo muito rápido”. Nós podemos acrescentar: Rápido e Eficiente! Ficámos sem saber se teria sido no abrir da porta, ou, ao abanar da corda. Mas isso também não interessa.
 
Claro que a moça teve depois vários namorados.

Enquanto estes esperavam pela dama, havia sempre um “malandreco” a avisá-lo:

- “Não cuspas para cima que ela pode engravidar ...”.

E assim, o nome de Nan, ficou sempre gravado na minha memória ...

Fonte:
O Autor (Marinha Grande – Portugal)

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : Lembranças do Nosso Amor)

Qual berra a vaca do mar
Dentro da casa do Fraga,
Assim do defluxo a praga
Em meu peito vem chiar.
É minha vida rufar,
Ingrata, neste tambor!
Vê que contraste do horror:
Tu comendo marmelada,
E eu cantando, aqui, na escada,
Lembranças do nosso amor!

Se o sol desponta, eu me assento;
Se o sol se esconde, eu me deito;
Se a brisa passa, eu me ajeito,
Porque não gosto de vento.
E, quando chega o momento
De te pedir um favor,
Alta noite, com fervor,
Canto, nas cordas de embira
De minha saudosa lira,
Lembranças do nosso amor!

Mulher, a lei do meu fado
É o desejo em que vivo
De comer um peixe esquivo,
Inda que seja ensopado.
Sinto meu corpo esfregado
E coberto de bolor...
Meu Deus! Como faz calor!
Ai! que me matam, querida,
Saudades da Margarida,
Lembranças da Leonor!

O anjo da morte já pousa
Lá na estalagem do Meira,
E lá passa a noite inteira
Sobre o leito em que repousa.
Com um pedaço de lousa,
Ele abafa toda a dor,
E, por um grande favor,
Manda ao diabo a saudade,
E afoga, por amizade,
Lembranças do nosso amor!

Arthur Quiller-Couch * (O Natal de um Ladrão)

Ilustração: R. Zamboni
Esperava que aquele negócio rendesse muito, pois o senhor Félix, o velho solteirão em cuja casa acabava de me introduzir, passava por ter consagrado trinta anos a adornar de boas coisas o seu gabinete. Qualquer nababo ou milionário pode dar-se ao luxo de colecionar; mas, o sr. Félix, pessoa de modesta fortuna, devia ter feito uma escolha cuidadosa. Só deveria ter comprado coisas de valor. E todas elas estavam dispostas dentro de lindas e pequenas vitrinas, com as respectivas etiquetas e defendidas por fechaduras, que eu teria podido abrir com um alfinete de. cabelo.

A vitrina superior continha amuletos, mas disso eu nada entendo. A segunda, vinte ou trinta camafeus, sobre os quais eu projetava a luz da minha lanterna surda. Examinei cinco ou seis deles antes de os meter na maleta; reconheci Europa e o Touro; Ganimedes e a Águia; Agavé levando a cabeça de Penteu; Ícaro com as suas asas partidas, caindo de cabeça para o mar, aí representado por uma linha ondulada. . . Todas essas jóias eram de um valor inestimável.

Na terceira vitrina, havia uma esmeralda desmontada, digna de um resgate real; um broche com duas ametistas e um colar de pérolas negras. Tudo isso me demonstrava claramente que tinha de me haver com um artista que não amontoava coisas ao acaso, na sua coleção. "Que pena — pensava eu — ver-me na necessidade de dar um desgosto a um homem tão inteligente!"

A quarta vitrina era reservada às miniaturas, quase todas orladas de diamantes. A quinta guardava as tabaqueiras: tabaqueiras de ouro, ostentando monogramas reais; tabaqueiras de concha de tartaruga e ouro; tabaqueiras de esmalte azul, incrustadas de diamantes. Duas destas, ao caírem juntas na maleta chocaram-se. Este ligeiro ruído fêz-me estremecer, e detive-me um momento a olhar para trás.

A janela continuava aberta, tal como eu a tinha deixado. Fora, na noite calma e gelada, a neve dos telhados brilhava à luz clara do luar. Mas, embora não houvesse vento, a corrente de ar, que entrava pela janela aberta, havia avivado uma pequena chama na lareira, onde, três minutos antes, mal se via luzir o carvão. No andar de baixo, nalgum salão afastado, os violinos tocavam uma valsa e um violoncelo marcava o compasso, pois o senhor Félix dava uma festa de Natal.

Não perdi muito tempo escutando e observando o local: comecei o trabalho e peguei noutra tabaqueira. No momento em que esta caía na maleta, a música ressoou um pouquinho mais forte; uma das portas se abriu, e um homenzinho rechonchudo, de casaca, apareceu no umbral.

— Oh, lá! — exclamou com um ligeiro estremecimento de surpresa. — Não, não, meu amigo; o senhor enganou-se de sala.

Sem me dar tempo a que pudesse dominar os nervos, dirigira-se à janela fechando-a.

— O melhor que o senhor tem a fazer é não se mexer — disse. — Poderemos conversar. Há criados na escadaria, e se o senhor tentasse sair por onde entrou, encontraria três policiais, que mandei vir, para assegurar a ordem à entrada. Mas, agora que os meus convidados já entraram, devem estar precisamente aqui por baixo de nós e tenho um apito para os chamar. Tenho também um revólver.

Num abrir e fechar de olhos, tinha ido a um armário e pegara na arma.

— E está carregado — acrescentou, sempre com a mesma voz, fria e indiferente, na qual passada a primeira exclamação de supresa, eu não tinha podido distinguir nenhum sinal de espanto.

— Pois bem, seja; falemos — disse eu.

Avançou para a lareira, mas deteve-se ao ouvir a minha voz, e, voltando-se vivamente:

— Eh! Dir-se-ia que é um perfeito cavalheiro!

Pousou o revólver sobre a chaminé, tirou de um cesto um pedaço de papel, chegou-o ao fogo e julgou do seu dever acender as luzes de um antigo candelabro, que adornava a parte superior da lareira. Havia ali cinco velas c ele acendeu-as todas.

Até então não tínhamos tido outra luz senão a claridade, era distante, que vinha do corredor; mas à luz daquelas velas, pude ver que o meu interlocutor era um velho, de cara rapada, cabelos brancos e muito bem vestido. Como a princípio só o vira de perfil, as enormes dimensões do seu nariz tinham-me surpreendido. Porém, agora, verificava que a sua cabeça era suficientemente forte para manter as proporções e tirar-lhe todo o aspecto de caricatura. Os seus ombros largos eram suporte digno daquela volumosa cabeça. E enquanto ele se mantinha encostado à chaminé, pude ver que apesar do peito arqueado e do busto de atleta, não era isento de certa delicadeza de atrativos, quase femininos. Naquela atitude, fêz-me pensar num matador que linha visto diante de um touro numa praça de Sevilha. Por trás dele, a luz da lareira desenhava, claramente, o contorno das suas pernas nervosas. Tinha no braço esquerdo um sobretudo e na mão uma claque fechada, apoiada contra o peito. Ao cerrar a janela e ao pegar no revólver, bem como ao acender as velas, só se servira da mão direita.

— Será o senhor um cavalheiro? — tornou a perguntar.

— Sim; e então? — respondi-lhe nervosamente. — O senhor é certamente daqueles que associam o cavalheirismo à moralidade. . .

— Até certo ponto. . . — disse. — Além disso, todo o mundo pensa assim.

— Seja como fôr, não tenho pretensões ao título de gentleman — respondi. — Mas o senhor se engana se julga que não recebi nenhuma educação. Fui aluno de Oxford, embora não tivesse obtido todos os graus. . .

— Ah! — disse, inclinando a cabeça. — E foram as cartas que. . . ?

— De maneira alguma! — repliquei, vivamente. — Reconheço que as aparências são contra mim; mas as cartas nunca me atraíram. Na realidade, o que me deitou a perder foi. um cavalo.

Ele fêz um gesto de assentimento.

— De maneira que o senhor — retorquiu ele — embora não tenha a pretensão de ser um gentleman, reconhece também que há certa relação entre a educação e a conduta da vida. . . Ah Oxford! Se não me engano os estudantes estão, neste momento, no grande vestíbulo, a celebrar o Natal, escutando o Glória de Pergolése.

— Essa recordação me é penosa — disse eu. — Pode acreditar, quer isso lhe seja agradável ou não.

— E, além de tudo, o senhor é um sentimental! — exclamou o senhor Félix, cujos olhos brilhavam. — Ótimo! Tenho uma tarefa para o senhor. . . mas disso falaremos depois. Deixe-me apenas dizer-lhe que me apareceu aqui como que caído do céu, mesmo na hora. Vejo que até agora tenho dado demasiada importância à minha coleção, visto que há outros que a cobiçam mais do que eu. . . Por exemplo, essa tabaqueira que o senhor tem aí na mão…, em determinado momento da sua história, valia por si só cerca de duzentos x milhões. . .

Comecei a pensar que tinha de me haver com um louco.

— Ou, melhor ainda, — corrigiu: — os duzentos milhões representavam o valor de uma pitada do rapé que ela continha. Abra-a com cuidado, peço-lhe, e nela verá autêntico tabaco de cheirar, que ateou uma guerra entre a França e a Áustria. Como diz Virgílio? Sim. Si motus animorum atque haec certamina tanta Pulveris exigtii jacto. Sim, mas no meu exemplo verá que a pitada do tabaco foi realmente a causa. Ora, ouça, senhor: O embaixador da Áustria recusou-se numa tarde fatal, a cheirar o conteúdo dessa tabaqueira, e eu ouso afirmar que, três semanas depois, ele teria dado milhões para ter a honra de introduzir nela a ponta dos dedos. Repare na coroa imperial que a ornamenta e que. rodeada de abelhas, dir-se-ia estar aí para ilustrar a advertência de Virgílio. Comprei esse objeto pela módica quantia de seis ducados, mas o seu valor aumentará, atingindo provavelmente uma dezena de milhares de francos na altura da minha morte, e esses dez mil francos servirão, de certa maneira, para 0 meu monumento.

— O seu monumento?

Teve um novo gesto de assentimento.

— A seu tempo, me ouvirá falar disso, pois vejo que sabe escutar. O senhor tem qualidades, e mesmo mais do que as que julga. Quanto a mim, sou um sentimental como o senhor. Por isso, nunca quis casar-me. . . mas agora não disponho do tempo necessário para lhe expor os meus pontos-de-vista, pois, segundo ouço, parece que

O baile está no fim, e os meus convidados vão impacientar-se. . .

Calou-se, aproximou-se de mim. . . e agarrou-me vigo rosamente pela gola do casaco.

Esse movimento, que por nada eu esperava, fêz-me cambalear. Retrocedi um passo, fechando instintivamente os punhos, mas percebi que a sua mão se afrouxara, sentindo, logo a seguir, uma série de pequeninos toques no pescoço, como se o senhor Félix estivesse entretido a tocar piano sobre a minha nuca. Ouvia-o rir-se, e antes que pudesse adivinhar o que se passava, ele afastou-se. tendo na mão um coelho branco.

— Um velho truque, não é verdade? É tão simples!

Abriu a claque, meteu dentro o coelho, tornou a meter a mão, e de lá tirou os dois coelhos brancos.

— Tudo isto vai divertir os meus jovens convidados! Estudei muito prestidigitação nos meus momentos de ócio.

Pôs os coelhos no chão e dirigiu-se de novo para o armário.

~ O senhor é exatamente a pessoa que me fazia falta — disse — e vou lhe dar oportunidade de ganhar a sua ceia.

Abriu o armário e tirou uma grande capa vermelha, guarnecida de arminho.

— Eu mesmo pensava em vesti-la — disse, mostrando-~ma, .— mas. . .

Deteve-se ao ver que o meu rosto tomava uma expressão lastimosa, e desatou a rir, de uma maneira que me deu vontade de lhe deitar as mãos ao pescoço.

— Meu caro senhor — exclamou — compreendo-o perfeitamente. Pura associação de idéias com o Supremo Tribunal, não é assim? Pura analogia fortuita, pois isto não é toga de juiz, mas, muito simplesmente o traje do Papai Noel. E aqui tem agora a sua cabeleira encimada pela sagrada coroa e também a barba enorme, maravilhosamente orvalhada de prata.

Fez brilhar todos esses objetos à luz da lua que entrava pela janela, voltando-se depois para mim.

.— Vista depressa! — ordenou. — E aqui tem também as botas.

Tirou do armário um par de botas em que tinha cuidadosamente colado pedaços de algodão, para simular a neve.

— Felizmente são bastante altas — disse — de outra forma, como o traje é demasiadamente curto para o senhor, as pernas lhe ficariam à mostra.

Recuou um passo para apreciar se tudo aquilo me assentava bem.

— Há castigos e castigos — disse eu — e espero que, qualquer que seja a sua intenção, me levará em conta este de me vestir de Pierrot.

— Ah! Garanto-lhe que vai interessar-se pelo seu papel dentro em pouco — respondeu ele, esfregando as mãos.

Depois refletiu um minuto.

— O Papai Noel devia descer pela chaminé — prosseguiu, olhando para a lareira. — Estaria mais de acordo com a tradição. Esta chaminé comunica com a de baixo, e creio que o senhor não é gordo demais para não poder passar por ela; mas não tenho certeza se o meu mordomo a tenha mandado limpar recentemente. . . Evitar-lhe-ei, pois. a chaminé. *

Nos salões, a música deixara de tocar. O senhor Félix pegou nos seus coelhos, tornou a metê-los na claque, que fechou com um movimento rápido e seco, e, pum!, os coelhos eclipsaram-se.

— Desculpe-me — disse eu, enquanto ele me acompanhava até a porta; — mas essas várias coisas que eu linha metido aí na maleta. . .

— Sim! É bom traze-las, pois pode ser que tenhamos de distribuir lá embaixo alguns presentes.

Saímos do gabinete e chegamos a uma galeria, que dominava um grande hall, todo ele iluminado e decorado de hera, musgo e balões venezianos. Um grande lustre fazia rebrilhar os seus inúmeros prismas e ao pé da escadaria estavam dois criados com bandejas cobertas de doces e pastéis.

Eram criados muito bem educados, pois, ao me verem vestido daquela maneira, não manifestaram a menor surpresa.

Um deles, ao avistar-nos pousou a bandeja e abriu-nos a porta, que se encontrava à direita da escadaria. Vime então, à entrada de uma ampla sala, deslumbrante de luz e no fundo da qual se descobria o pano de boca de um pequeno teatro. Diz-se que a velocidade da luz é maior do que a do som; não estou muito certo disso, pois seria capaz de jurar que ouvi o ruído alegre de mil vozes in-fantis. que enchiam a sala, antes de me sentir deslumbrado pela luz ofuscante que nela havia.

A sala regurgitava de crianças. Havia lá centenas delas. Algumas quase sem força para dançar, tinham-se atirado para cima dos bancos dispostos por toda a volta da sala. Mas, a maior parte estava estendida em macas ou apoiadas em muletas. Outras tinham as mãos cruzadas sobre o peito e eram cegas. Não tenho a pretensão de gostar de crianças: mas, quando descobri que quase todas as que se encontravam em casa do senhor Félix eram aleijadas, enfermas ou cegas, então senti no fundo do meu velho coração uma piedade imensa.

Em todo o caso, foram os olhos cegos os únicos que me pareceram misericordiosos, quando o senhor Félix convidava Papai Noel a segui-lo até o palco do pequeno teatro, por entre a dupla fileira das crianças. Oh! Oh! Foi o primeiro grito que elas soltaram no momento em que eu apareci à porta; e ouvi esse oh! espalhar-se e multiplicar-se sem cessar, enquanto atravessava a sala cujo chão encerado refletia os meus passos como um espelho.

Sempre precedido pelo senhor Félix, subi ao palco por um pequeno corredor, todo enfeitado de bandeiras. O meu companheiro, com um sinal da sua claque, deu ordem à orquestra para começar a bem conhecida marcha A fine old English Gentleman anunciando a minha chegada; ou, se preferir, a do Papai Noel.

Depois daquele trecho de música, avançou até o proscênio e apresentou-me: explicou que me tinha encontrado vagueando pelas dependências da casa, ocupado a esvaziar qavetas à procura de presentes para dar aos Seus pequenos convidados. Cinco ou seis vezes se interromoeu para passar as mãos pela minha barba e retirar de lá bombons e pirilampos que atirava para o meio da assembléia.

A princípio as crianças mostravam-se espantadas e admiravam-se de que o dono da casa não se importasse de sujar assim tão belo e luzidio pavimento. Mas, loqo uma parotinha mais ousada debruçou-se, apanhou um pirilampo e gritou, deliciada, que, efetivamente, era um pirilampo verdadeiro. Aquilo foi o sinal para uma barafunda indescritível. O senhor Félix continuava a falar, aparentando não perceber nada; mas a sua mão, cada vez mais ágil. passava e repassava pela minha barba, e os pirilampos choviam, em torrentes, sobre a sala. Vi vários pequenos apanhá-los para os levar aos seus irmãozinhos ou irmãzinhas cegas, pondo-lhes. às vezes, nas mãos para que verificassem que eram pirilampos autênticos.

O senhor Félix percebeu isto e a catadupa das suas palavras cessou, de repente, como se fosse interrompida mecanicamente. . .

— Sou um sentimental! — disse, para mim.

Mas ninguém o ouviu, pois, naquele momento, os pirilampos saltitavam por toda a parte, e as crianças soltavam gritos de alegria. O tumulto tinha atingido o auge; mas, o senhor Félix atraiu de novo a atenção geral, agarrando–me pelo pescoço — como fizera, momentos antes, no gabinete — e, oh! prodígio!, tirou de lá dois coelhos brancos. Atirou-os para dentro da claque, que tinha aberto, com um movimento do polegar. Um segundo mais tarde, so-prando-lhe em cima, o chapéu tornava a se fechar, e os dois coelhos tinham-se evaporado. . . Tornou a abrir a claque, com um gesto de assombro, e, franzindo as sobrancelhas, tirou de dentro muitas fitas de várias cores: vermelhas, brancas, verdes, azuis, amarelas, nas quais havia baralhos amarrados. E, enquanto as fitas iam saindo do chapéu, o senhor Félix atirava ao ar as cartas, que, depois de formar um fole debaixo do lustre, tornavam a cair, juntas.

— Isso é para o senhor! .— disse-me, exibindo uma enorme couve, que saía da claque presa à ponta das fitas.

Arremessou tudo aquilo para o centro da sala, e, agarrando na minha maleta meteu-a debaixo da capa, para logo Iornar a apresentá-la transbordando de bonecos, trombones, trombetas, árvores de Natal, caixas de soldados, etc.

— Agora é a vez do Papai Noel! — gritou com toda a força. — Deixai passar o Papai Noel!

A febre da festa tinha-se apoderado de mim, e. descendo ao palco, pus-me a distribuir o conteúdo da maleta, à direita e à esquerda. Esgotei-a antes de ter percorrido a terça parte da sala, pois distribuía com ambas as mãos e. quando uma criança cega se punha a palpar um brinquedo, ou o deixava cair, dava-lhe outro até que o seu sorriso me satisfizesse completamente.

Os brinquedos abandonados ficavam no lugar onde tinham caído. Eu estava entusiasmado. Mas, estremecia cada vez que, mexendo dentro da maleta, os meus dedos roçavam pelos objetos de ouro e de prata, que se encontravam no fundo. Em breve percebi que já não tinha mais brinquedos e que, pelo menos, dois terços das crianças linda não tinham recebido nada… Voltei para apanhar Os objetos que não tinham agradado às crianças cegas; e, ao fazê-lo, tive medo que elas percebessem a coisa. . . Mas, vi a tempo, que o senhor Félix, sempre de pé sobre o palco, me fazia um sinal. . . E, como num sonho, voltei. ..

— Perfeitamente! — disse-me, enchendo, de novo, a maleta..  …… …..

Tornei a começar a minha distribuição. Por três vezes esvaziei-a… Ah! Quanto não era preciso para encher todas aquelas mãozinhas trêmulas de desejo e de alegria! Mas, consegui, e voltei a fim de receber novas instruções.

Entretanto, o senhor Félix tinha saído do palco e fazia sinal aos músicos, que começaram a tocar um belo trecho de música. O pano desceu e, um segundo depois, tornou a subir, deixando ver um cenário, que representava uma rua coberta de neve e ladeada de lojas, com vitrinas magníficas e deslumbrantes.

Então, enquanto a música executava uma marcha alegre. Arlequim entrou em cena com Colombina: pegou-a por um braço e. com um qesto rápido, fê-la rodopiar até a janela de um barbeiro; ele próprio, logo a seguir, entrou de um salto na de um vendedor de peixe. O “clown” apareceu então, pisando com medo como se caminhasse sobre um chão escorregadio; Pantaleão seguia-o. apoiado à sua bengala, no momento em que, à esquina da rua, apareciam dois policiais, vestidos de salsichas. O clown puxou as orelhas de Pantaleão. Pantaleão esbofeteou os policiais e todos, um atrás do outro, desapareceram dentro da loja do peixeiro. O clown foi o primeiro a sair, com um grande bacalhau roubado ao comerciante; entregou-o a Pantaleão. que vinha logo atrás, enquanto os policiais perseguiam a ambos. Mas. o peixeiro, o último a sair^ começou a correr atrás do clown que, tendo voltado à passar diante da vitrina se apoderara de um barril de arenques, que enfiou pela cabeça abaixo do infeliz comerciante. Este se desembaraçou como pôde, enquanto todos os personagens atiravam uns aos outros os arenques espalhados pelo chão.

As crianças torciam-se, literalmente, de riso. Oh! Que engraçada era aquela pantomima! Foi ela que, segundo o uso, fechou o serão, e realmente, depois de uma pantomima, que melhor pode fazer uma criança se não ir deitar-se e sonhar um lindo sonho, sobretudo se tem os braços carregados de brinquedos?

Cinco minutos depois de ter descido o pano, encontrava-me no hall, ao lado do senhor Félix, que se despedia dos convidados. Na rua, os carros estavam à espera. Guardas e criados punham os abrigos nos menores tão ébrios de felicidade que nem pensavam em agradecer ao dono da casa. . . E as portinholas fechavam-se, e os veículos desapareciam nas sombras da noite.

Quando o último convidado se foi embora, o sr. Félix voltou-se para mim.

— A festa terminou — disse. — Quando eu já não viver, segundo minha vontade, ela repetir-se-á todos os anos no Hospital das Crianças Doentes. Está tudo previsto no meu testamento e esse será o tal monumento de que parece já lhe falei. . . Mas durante alguns anos espero ainda que a festa poderá celebrar-se aqui. Mas, ouça: tire esse manto e essa cabeleira e vá em paz. Gostaria de falar com o senhor um pouco mais; mas estou um tanto cansado, como pode imaginar. . . Vá embora, pois! Vá em paz!

Fazendo um sinal ao criado para que se retirasse, acompanhou-me até o último degrau da escadaria e, ali, com os pés na neve, apertou-me a mão e, enquanto eu me afastava, fez-me alguns gestos de despedida.

Tinha chegado ao extremo da rua e havia já posto o pé na ponte, quando, de repente, me lembrei, com um grande estremecimento de que as jóias roubadas deviam encontrar-se ainda no fundo da maleta. Parei, encostei-me ao parapeito e abri-a. Meti a mão e tirei. . . um arenque. . . As jóias tinham-se convertido em arenques. Tirei-os um a um e fui arrojando-os à água negra, que corria, a vinte pés por baixo. Não; não havia ali objetos de valor. Mas, em todo o caso. . . No momento em que pegava no último arenque, passeando os meus dedos pelo fundo, senti um objeto duro: era um anel ornado com uma turquesa.

Durante alguns minutos fiquei examinando-o à luz de um lampião. Meti-o no bolso e logo tornei a pegar nele sem o observar de novo…

Por fim, decidi-me e voltei para trás, refazendo todo o caminho até à morada do sr. Félix.

Ele se encontrava ainda no mesmo lugar, sobre o último degrau da escadaria, junto ao bordo do passeio, e, por cima, como uma estátua, o criado aguardava que o patrão se dispusesse a entrar.

— Perdoe-me, senhor.. . — comecei eu, tirando do bolso o anel.

— Tinha-o deixado na maleta de propósito — disse, com voz suave, o sr. Félix, — Ofereço-lhe em paga dos seus bons serviços. Comprei-o por duzentos francos e creio que vale um pouco mais. Todavia, se o senhor prefere o dinheiro, o que é natural na sua situação, tome lá! Aqui tem os duzentos francos; e repito-lhe novamente: vá em paz!
––––––––––––––––––––-

* Sir Arthur Thomaz Quiller Couch, "scholar", homem de letras e conferencista de literatura clássica em Oxford, nasceu em Cornwall em 1863 e completou a sua educação frequentando várias escolas, inclusive o "Abbott College", o "Clifton College", etc. Desde 1912 é membro do "Jesus College" e professor de literatura inglesa na Universidade de Cambridge. A sua bagagem de escritor é das mais variadas e estende-se por mais de trinta volumes que alcançam desde a novela policial até a critica literária, passando pelo teatro e pela poesia.     Muitos dos seus trabalhos literários e algumas de suas novelas têm sido assinados com o pseudônimo de "Q" e há mesmo na sua obra um volume de histórias de mistérios assinado apenas com aquela inicial.

Quiller Couch é também bastante conhecido como escritor politico, tendo por várias vezes tratado dos negócios do seu país, que conhece a fundo. Possuindo uma vasta cultura humanista, é colaborador dos principais magazines da Inglaterra. A sua apresentação literária ao público deu-se com o romance "Dead Man’s Rock", em 1887.


Fonte:
Araújo Nabuco (seleção e notas). Livro de Natal. Livraria Martins Editora, 1955.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 42

CAPÍTULO XVIII

Ah! Que terrível efeito produziu sobre D. Margarida e mais a filha a notícia de que o colégio já não pertencia ao Coruja.

Ficaram indignadas, como se fossem vitimas de um grande roubo. Dir-se-ia que aqueles seis contos lhe saíam das algibeiras.

— Mas, onde diabo meteu este homem tanto dinheiro?... Bradava a velha no auge da fúria. Ora pois! Que ele consigo não se arruinou decerto! E ninguém me tira da cabeça que em tudo isto anda grande maroteira se é que aquele cara de boi morto não enterrou tudo no jogo!

A história do tiro no pé muito intrigou igualmente a D. Margarida. Sendo uma das versões, o tiro fora disparado por Teobaldo em um exercício de atirar ao alvo e, segundo outra, o Coruja fora o próprio a ferir-se, metendo-se a carregar uma arma, que ele não conhecia. Havia ainda uma outra versão, e era que, entrando Teobaldo em casa e encontrando André, fizera fogo sobre ele, na persuasão de que surpreendia um vagabundo dentro de seu quarto.

Esta última versão fora levantada pelo alferes Picuinha, que agora não perdia ocasião de meter a ridículo o pretendente de Inês. D. Margarida, ou fosse por cortesia ou por mera curiosidade, apresentou-se, acompanhada com a filha, em casa de Teobaldo, dizendo que iam fazer uma visita ao Sr. Miranda.

Este, mal foi interrogado pelas duas senhoras, confirmou o boato de haver ele próprio se ferido; depois do que teve de tratar a respeito do seu casamento, assunto para o qual estivera até ai D. Margarida a empurrar a conversa.

— Não sei, minha senhora, não sei que lhe diga, murmurou o Coruja com um suspiro.

— Como não sabe o que me diga?...

— É que as coisas me correram muito ao contrário do que eu esperava...

— Mas o senhor não tinha dito que o casamento seria agora sem falta...

— Disse, é exato, mas esperava estar também com a minha vida segura e confesso que nunca a tive tão mal amparada!

— Isso quer dizer que ainda não é desta vez que se faz o casamento?

— É verdade, ainda não pode ser desta vez.

A velha, ao ouvir isto, ficou mais vermelha do que o xale de Alcobaça que ela trazia ao ombro e, erguendo-se de repente, exclamou possessa:

— Olhe! Você quer saber de uma coisa?! Vá plantar batatas, você e mais quem lhe der ouvidos! Eu é que já não estou disposta a aturá-lo, sabe? E passe muito bem! E, agarrando a filha pelo braço: — Vem daí tu também, ó pequena! Larga o diabo deste impostor, que, digam o que disser, não é outro quem nos tem encaiporado a vida!

E saiu, muito furiosa, a clamar desde então contra "aquele cara do inferno".

— Pena é não lhe haver acertado deveras o tiro! Praguejava ela, se o maldito prestasse para alguma coisa teria morrido! E é sempre assim. Deus me perdoe, credo!

Os vizinhos de D. Margarida viram-na esse dia atravessar a rua como um foguete.

O demônio da velha ia com o diabo no corpo.

— Ora! Pois também se o tal noivo das dúzias estava há tanto tempo a mangar!

— Não! Que uma coisa assim até parecia escândalo!

— E a pobre Inês, coitada! É que havia de amargar, porque perdera o seu tempo à espera do homem!

— Não fossem tolas! Pois não viam logo que daquela mata não podia sair coelho?...

O caso do Coruja ganhou imediata circulação entre os amigos e conhecidos das duas senhoras, que principiaram logo a ver no inofensivo professor um terrível monstro, tão feio de alma quanto de corpo.

Quem não se mostrou desgostoso com o fato foi o Picuinha, que até já havia dito por mais de uma vez:

— Pois se o homem não quer a rapariga, é despachar, que há mais quem a queira.

D. Margarida, justiça se lhe faça, não desejava trocar o professor pelo alferes de polícia, mas à vista do "indigno procedimento" daquele, e á vista do empenho que fazia o outro em casar com Inês, alterou a sua opinião a respeito de ambos e, como a filha era "aquela mesma" que "tanto se lhe dava, como se lhe desse" acabou declarando que o melhor seria mesmo agarrar o Picuinha e mandar o Coruja pentear monos!

— Homem! Querem saber? Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar!

De sorte que, ainda bem o Coruja não conseguia se ter de pé. Já a sua noiva era ligada ao alferes por todos os vínculos ao alcance dos dois, inclusive o conjugal.

— Ora... Resmungou aquele ao saber disto, não me posso queixar!... Foi melhor mesmo que a rapariga se desenganasse pelo meu lado e tratasse de se arranjar por outro! Ao menos tiro um peso da consciência!

Não obstante, seu coração carpia em segredo o desaparecimento de mais essa ilusão que, à semelhança de quase todas as da sua triste existência, o abandonava para sempre.

Depois que Inês casara, todo o empenho e toda a esperança de André voltaram-se para a sua querida história do Brasil. Enquanto esteve de cama muito trabalhara nessa obra, mas o seu esforço recrudesceu com aquele fato e era provável que agora a levasse ao termo.

O pior estava em que a implacável velha e mais a sua gente não perdiam ocasião de desmoralizá-lo perante o público, dizendo horrores a respeito dele. Estas maledicências, ligadas ao descrédito comercial que lhe provinha do mal desempenho dos seus negócios com o Banco, foram por tal forma o prejudicando moralmente, que em breve o desgraçado se viu tido por homem mau, sem dignidade própria, nem respeito pela alheia.

A continuarem as coisas desse modo acabaria por não poder ganhar o seu pão. Ninguém mais lhe queria confiar trabalho; ninguém já o quer para nada. As famílias fechavam-lhe as portas; os seus ex-discípulos puxavam-lhe o paletó no meio da rua; um dos antigos credores do colégio chegou a chamar-lhe "tratante", cara a cara, e o Coruja não respondeu ao insulto, porque no fim de contas essa era a verdade.

Com Teobaldo não contava absolutamente, porque ninguém melhor do que ele sabia da triste situação em que se achava agora o amigo.

E, desgraçadamente para ambos, a posição de Teobaldo não podia ser mais falsa.

Depois do seu formidável desastre com as cambiais, nunca mais conseguiu levantar deveras a cabeça e, posto ele afirmasse o contrário, seus negócios corriam de mal a pior. Tanto que, para manter ainda a sua casa particular com uma certa decência, era-lhe já preciso contrair dívidas tais, que só os juros delas lhe levavam o que ele ganhava na praça.

É impossível imaginar a ginástica que aquele demônio punha em jogo para disfarçar o seu verdadeiro estado de pobreza. Sentia-se perdido a cada instante, mas ninguém o diria pelas aparências.

Não despediu nenhum dos seus criados, nem deixou fugir nenhuma das suas boas relações.

É que ele esperava que a fortuna, aquela fortuna nunca o desamparou, chegasse de um momento para outro em seu socorro e transformasse tudo. Como sempre esperava, sem saber donde e sem saber porque, mas esperava: não confiava em si absolutamente, mas confiava muito do acaso. Agora a sua grande ambição era a política. Teobaldo votou-se abertamente para ela, como se voltaria para qualquer outro lado; voltou-se unicamente. porque o seu espírito, de tão inconstante, não podia estar por muito tempo sem mudar de posição.

Mas, apesar disso, compreendia que, sem dinheiro, nem influência de família e só com um pouco de prestígio de um talento que ele fingia ter, era preciso arranjar bons amigos e por de parte uns tantos escrúpulos.

E principiou a falar muito de política por toda a parte, começou a intrometer-se nas intriguinhas dos partidos e a escrever nos a pedidos das folhas; fez-se um conservador originalíssimo, um conservador capaz de dar a última gota do seu sangue pelo monarca e também pela constituição do Império, mas disposto a devorá-los a ambos no dia em que semelhante coisa fosse necessária para a felicidade do povo.

— Sim, porque, disse ele ao próprio Imperador em uma das muitas vezes em que o foi visitar, se eu amo Vossa Majestade com tanta dedicação, procuro servir a vossa causa, é porque entendo une Vossa Majestade é, foi e será sempre o maior, o mais sincero amigo de todo o brasileiro!

CAPÍTULO XIX

Nada disso, porém, teria produzido efeito, se um acaso feliz, um desses acasos com que Teobaldo contava sempre, não viesse em auxílio das suas aspirações políticas.

Foi o caso que um dos seus bons amigos. homem de vistas grossas, mas de influência real em certa circunscrição eleitoral, depois de preparar a candidatura de um rapaz protegido seu, descobriu que este lhe pagava esse obséquio tentando corromper-lhe a esposa, e então o bom homem, sem querer saber de mais nada, pôs o seu afilhado de parte e resolveu despejar sobre a cabeça do primeiro que se apresentasse tudo o que para aquele havia destinado.

Ora, o primeiro que se apresentou foi Teobaldo, e eis aí como este, quando ninguém esperava, surgiu deputado geral por um círculo, que ele mal conhecia. Todos passaram defronte deste fato, menos Branca, que era afinal a única pessoa que tinha sobre aquele pantomimeiro um juízo havia muito determinado e certo.

E a cada palavra que lhe diziam em honra do marido, ela sorria, sem deixar transparecer no seu gesto coisa alguma que se pudesse tomar por orgulho, por contentamento, nem por desprezo ou indiferença. Sorria para não falar. E o fato é que o marido, sempre tão jatancioso e parlapatão para com os mais espertos e atrevidos, retraía-se defronte daquele sorriso frio e desafetado, sem conseguir dominar a sua perturbação. E, quanto mais Teobaldo se sentia crescer aos olhos do público, tanto menor e mais mesquinho julgava-se aos olhos da mulher.

Todavia, com a sua nova posição, voltou-lhe de novo a coragem e redobrou a confiança que ele depositava na sua boa estrela. Como sempre, não tinha agora uma idéia segura sobre o que ia fazer; não tinha orientação política; não tinha intenções patrióticas; entrava para a câmara com uma única idéia: — Ser deputado e produzir sobre o público o mais brilhante efeito que lhe fosse possível. Entrava para a câmara como até ai entrara em toda a parte, dominado por um único entusiasmo: o entusiasmo de si mesmo. O interesse que o levava era o interesse próprio e nenhum outro.

Mas, quem o visse à noite, em meio de sua sala, falando e gesticulando defronte dos amigos, havia de jurar que ali estava o mais intrépido defensor da nação e o mais desinteressado dos políticos da terra.

E com que habilidade, nas belas reuniões que ele agora fazia em casa, não sabia o grande artista chamar para derredor de si as vistas mais distraídas dos homens que lhe eram necessários?... Com que sutileza não fingia discutir todas as questões de interesse geral, quando aliás não estava a discutir senão a sua própria pessoa?

Nunca o seu privilegiado talento de insinuar-se em cada um, a quem ele queria agradar, teve tanta ocasião de fazer valer a sua força: a todos comunicava o insinuante mestiço uma faísca do seu espírito sedutor; a tudo um reflexo do seu diletantismo aristocrata.

E tão depressa o viam cercado por um grupo de colegas, a convencê-lo sobre qualquer ponto de política, como ao lado das damas, a conversar sobre as mais deliciosas futilidades. E, assim como não se podia adivinhar os sacrifícios e os milagres inventados por Teobaldo para manter aquela aparência de grandeza, ninguém seria capaz de desconfiar que, durante essas reuniões, um desgraçado perdia as noites lá em cima, no sótão, entregue a um trabalho sem tréguas, a compulsar livros, a mergulhar em alfarrábios, a passar horas e horas estático defronte de uma página, só com a esperança de esclarecer algum ponto mais obscuro da história do seu país.

Ah! Se jamais a vida de Teobaldo foi tão brilhante, a de Coruja nunca foi tão obscura, tão despercebida e tão difícil. Agora precisava o pobre diabo empregar todos os esforços para fazer algum dinheiro; o círculo dos seus recursos apertava-se vertiginosamente. Incapaz de mentir, incapaz do menor charlatanismo, ele tinha em si mesmo o seu maior inimigo.

Em tais apertos lembrou-se de entrar em concurso para uma cadeira de professor; mas, apesar da sua incontestável competência sobre matéria, fez uma figura tristíssima. Até lhe faltaram as palavras na ocasião do exame; viu-se sem idéias; sentiu-se estúpido e ridículo, sem ânimo de afrontar o riso que se levantava em torno da sua desengraçada perturbação.

Definitivamente nada arranjaria por meio de concurso. Era tirar daí a idéia. E, contudo, urgia descobrir algum meio de ganhar dinheiro para viver, porque ele, coitado, bem percebia que o seu maldito tipo ia-se tornando de todo incompatível com a casa de Teobaldo.

Sim, o Coruja compreendia perfeitamente que a sua grotesca pessoa era uma nota desafinada entre aquelas salas de bom gosto e aquela gente tão distinta; compreendia que, se não o haviam já enxotado como se enxota um cão leproso, era simplesmente porque se julgavam empenhados para com ele em dívidas de gratidão; ou talvez porque receassem que o infeliz não tivesse onde cair morto.

A certeza de que a sua presença era por toda e qualquer forma penosa ao amigo o constrangia e mortificava muito mais pela idéia de separar-se dele do que pelas dificuldades de arranjar um canto onde se metesse.

Oh! Quanto não sofria o infeliz quando era surpreendido nas salas de Teobaldo por algum amigo deste! Quanto não lhe custava a sofrer o exame das pessoas que o pilhavam às vezes de improviso, sem que ele tivesse tempo de fugir para o seu sótão.

Teobaldo não ficava menos contrariado com isso, e via-se em sérios embaraços para justificar aos olhos das suas visitas aquela amizade tão estranha. Então, como recurso de aperto, apresentava o Coruja na qualidade de um desses tipos excêntricos que, a força de extravagâncias, são, nem só previamente desculpadas por todas as suas esquisitices, como até suportados por gosto.

E passava a pintá-lo exageradamente.

— Um verdadeiro tipo! Dizia, o maior esquisitão que eu até hoje tenho conhecido! Ah! Não imaginam! É magnífico! É uma raridade! Inalterável como uma torre! Dêem-lhe alguns alfarrábios, deixem-no a sós, e ele estará como quer! Se não lhe puxarem pela língua, será capaz de ficar mudo durante um século! Podem cortar-lhe uma das orelhas, que ele não dá por isso, e, se der, também perdoa logo a quem a cortou!

— É um louco! Afirmavam os que ouviam isto. É um alienado! É um bicho!

E o senhor Teobaldo, que conhecia perfeitamente o amigo; o senhor Teobaldo, que tivera mil ocasiões para saber quem era e quanto valia o Coruja, não tinha entretanto a coragem de defendê-lo, e chegava até a confirmar tacitamente o triste juízo que a respeito dele formava meia dúzia de sujeitos a quem no íntimo desprezava.

Quando, porém, Teobaldo caía nessa fraqueza, voltava instintivamente os olhos para a esposa. E lá estava nos lábios de Branca o tal sorrisozinho que o desconcertava.

Então, sem se dirigir a ela, mas falando só para ela, acrescentava com a sua ênfase predileta:

— Pois não! No fim de contas aquela invariável bondade; aquele eterno altruísmo; aquele monótono desinteresse, até a um santo acabaria por enfastiar! Oh! É que tudo cansa neste mundo! Qualquer coisa, por melhor que ela seja, se no-la derem sempre e sempre, se converterá em um martírio! Além disso, a virtude em demasia é um defeito como outro qualquer! Um homem afinal deve ser um homem! E quem não souber castigar o mal que lhe fazem, dificilmente reconhecerá o bem que lhe dedicam! Não compreendo um bom amigo que não saiba ser um melhor inimigo, e cada vez estou mais convencido de que descuidar-se a gente da sua própria pessoa é cometer a maior maldade que se pode fazer contra uma criatura humana, a não ser que essa pessoa pretenda abdicar dos seus foros de homem.

E o penetrante sorriso de Branca não se alterava.
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continua…