sábado, 9 de março de 2019

Mario Quintana em Prosa e Verso 8


A CANÇÃO DO MAR

Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar...

O mar é embalado
Pelos afogados!

O canto do vento
Do vento no mar
Não é um canto
Para te ninar...

São eles que tentam
Que tentam falar!

Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar...

Um dia viremos
Vestidos de algas

Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas

Um dia viremos
Com barcos e remos

Um dia...

Dorme, filhinha...
São vozes, são vento, são nada...

BILHETE

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

ELEGIA NÚMERO ONZE

Não, não é uma série de pontos de exclamação
— é uma avenida de álamos...
E o que, e para quem, clamariam então?!
Deserta está a cidade.
Todas as avenidas, todas as ruas, todas as estradas atônitas
se perguntam se vêm ou se vão...
Em nada lhes poderiam servir esses postes de quilometragem:
estão apenas desenhados, como num mapa.
Ah, se houvesse uns passos, ainda que fossem solitários...
Se houvesse alguém andando sozinho... e bastava!
São os passos
— são os passos que fazem os caminhos.
Deserta está a cidade.
Se houvesse alguém andando sozinho
— para ele se acenderiam então, como um olhar, todas as cores!
Porque a cidade está cega, também.
O que não é visto por ninguém
não sabe a cor e o aspecto que tem.
A cidade está cega e parada com a descor de um morto.
Porque tudo aquilo que jamais é visto
— não existe...

O SILÊNCIO

Há um grande silêncio que está sempre à escuta...
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.

OS POEMAS

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

POEMA EM TRÊS MOVIMENTOS

I

Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
— como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.

II

Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu — sem saionará nem nada —
por uma porta diferente.

III

E em que mundo? Em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.
O límpido cristal

Que límpido o cristal de abril!... Um grito
não vai como os da noite — para os extramundos...
Todas as vozes, todas as palavras ditas — cigarras presas
dentro do globo azul — vão em redor do mundo
e a ninguém é preciso entender o que elas dizem;
basta aquele bordoneio profundo
que vibra com o peito de cada um...
palavras felizes de se encontrarem uma com a outra
nas solidões do mundo!

Fonte:
Mário Quintana. Esconderijos do tempo.

Mark Twain (O Noivado infeliz de Aurélia)


Devo esclarecer que não conheço, em absoluto, a signatária do referido documento, que se assina simplesmente Aurélia Maria – provavelmente um pseudônimo.

A pobre garota tem o coração transtornado pelos infortúnios que vem sofrendo. E sente-se tão perturbada pelos conselhos, uns diferentes dos outros, de amigos ignorantes e inimigos insidiosos, que não sabe mais o que fazer mais para se ver livre da teia do destino, na qual parece encontrar-se presa para sempre.

Nervosa, recorre a mim, suplicando-me que lhe dirija os meus conselhos, falando-me com uma eloquência extraordinária, que tocaria o coração de uma estátua.

Ouçamos a sua triste história.

Aurélia tinha dezesseis anos – diz ela – quando encontrou e amou, com todo o ardor de uma alma apaixonada, um rapaz de New Jersey, chamado Wilhamson Brockinridge Caruthers, quase seis anos mais velho que ela.

Com o consentimento de seus pais, ficaram noivos, e durante um largo período tudo correu muito bem, como se os noivos estivessem imunizados contra os instantes de desgraça que sempre tocam à humanidade.

Um dia, entretanto, a face da realidade transformou-se. O jovem Caruthers caiu de cama com varíola, e da espécie mais virulenta e terrível. Quando ficou bom, tinha o rosto desfigurado, a pele marcada pelas bexigas. Já não era o mesmo, porque a sua beleza desaparecera para sempre.

Aurélia pensou logo em romper o seu compromisso, mas, por uma questão de piedade para com o infeliz, limitou-se a transferir o casamento para depois, como que dando uma oportunidade ao pobre rapaz.

Acontece que na véspera do casamento, Caruthers, quando acompanhava com os olhos um balão que subia aos céus, caiu, distraído, num poço, e quebrou uma perna. Tiveram de amputá-la acima do joelho.

Novamente Aurélia teve a intenção de acabar com o noivado e novamente o amor triunfou. O casamento foi transferido e ela deixou que o tempo corresse.

Outra infelicidade aguardava o noivo caipora. Caruthers perdeu um braço quando de uma descarga imprevista de um canhão, numa festa cívica. Ainda na convalescença. três meses depois, teve o outro esmagado numa prensa agrícola.

O coração da pobre Aurélia foi horrivelmente machucado por essas verdadeiras calamidades. Era enorme a sua aflição, por ver seu jovem noivo abandoná-la pedaço por pedaço e imaginar que, com esse sistema de progressiva redação, com pouco nada mais restaria do rapaz. E doía-lhe verificar que nada podia fazer por ele.

Em seu desespero, coitada, como um negociante que teima num negócio e tem prejuízo regularmente, todos os dias, Aurélia sentia um grande e profundo arrependimento por não haver casado logo de início com Caruthers. antes que ele sofresse tão alarmante depreciação. Mas, encarando a situação com ânimo firme, resolveu pôr à prova, ainda uma vez, as lamentáveis disposições do seu noivo.

Foi marcado o dia do casório e de novo turvou-se o céu com as nuvens da desilusão. É que Caruthers caiu doente com um acesso de erisipela e foi então que perdeu um dos olhos.

Os pais e os amigos da moça, tendo em vista que a sua generosa obstinação já excedia os limites normais, novamente intervieram e insistiram para que se considerasse nulo o seu noivado.

Aurélia chegou a hesitar, apesar da sua imensa bondade de sentimentos, porém respondeu a todos que, refletindo direito sobre o assunto, verificara que não tinha nenhuma razão de queixa contra o noivo.

Foi transferida a data do casamento, e eis que Caruthers quebra a outra perna.

Para a pobre noiva foi bem triste o dia em que, no hospital. viu os cirurgiões mandarem arrastar para um canto o saco que continha mais uma parte do corpo do seu amado.

Aurélia sentiu uma emoção cruel, percebendo que mais um pedaço do homem que iria ser seu esposo ia desaparecer. Sentiu, sobretudo, que o campo de suas afeições mais puras diminuía a olhos vistos. Contudo, não atendeu aos rogos dos seus, quanto à anulação do seu compromisso, e só fez mesmo transferir o casamento.

Enfim, poucos dias antes da data fixada, aconteceu outra desgraça. Foi o seguinte: durante o ano, os índios de Owen River arrancaram o couro cabeludo de um só homem, e este homem foi Wilhiamson Brockiridge Caruthers, de New Jersey.

Ainda assim, o pobre-diabo fez-se transportar imediatamente para a casa de sua noiva, o coração transbordante de alegria, embora tivesse perdido os cabelos para sempre. Apesar de todo o seu desgosto, ainda deu graças a Deus por haver-se salvo, mesmo por esse preço exorbitante.

A esta altura, Aurélia está indecisa quanto à atitude que deve tomar. Ainda ama o noivo – é o que ela me escreve em sua carta. O noivo ou o pedaço de noivo que lhe resta. Ama-o de todo o coração, porém sua família se opõe terminantemente ao casamento.

Caruthers é pobre e não pode mais trabalhar. Por sua vez, Aurélia não tem o necessário para que possam viver os dois juntos, com relativo conforto.

– Que devo fazer? – eis o que ela me pergunta, numa indecisão cruel.

Esta é, com efeito, uma questão delicada. Questão cuja resposta deve decidir sobre o destino de uma mulher e de um pedaço de homem.

Estou certo de que seria assumir uma grande responsabilidade responder indo além de uma simples sugestão.

Quanto custaria a reconstituição de um Caruthers completo? Se Aurélia tem algum recurso, deve comprar para o seu noivo mutilado umas pernas artificiais, um olho de vidro e uma cabeleira postiça, para torná-lo apresentável. Feito isto, seria conveniente que lhe desse um prazo improrrogável de noventa dias, ao fim do qual, se o rapaz não torcer o pescoço, poderá arriscar-se a casar com ele.

Não creio que assim procedendo Aurélia se aventure a grande risco, de qualquer maneira. Se Caruthers ainda uma vez cede à tentação estranha de quebrar alguma coisa sempre que se lhe apresenta a ocasião propícia, sua próxima experiência na certa será fatal, e então a pobre noiva poderá ficar tranquila, casada ou não. Casada, as pernas de pau e outros objetos, propriedade do defunto, ficarão como herança para a viúva, e assim Aurélia não perderá nada, a não ser, na realidade, o último pedaço vivo dum esposo honesto e infeliz, que durante a vida toda não fez outra coisa senão contentar os seus extraordinários instintos de autodestruição.

É tentar a sorte, portanto. Refleti bastante sobre o assunto, e este me parece o melhor partido a tomar no caso.

Decerto, Caruthers teria agido com acerto se houvesse tentado quebrar o o pescoço logo da primeira vez, tratando de fazer coisa definitiva. Já que escolheu outro método, dispondo-se a prolongar o sacrifício o mais possível, não se pode criticá-lo, por haver feito o que lhe pareceu melhor. Deve-se é procurar tirar o melhor proveito das circunstâncias, sem o menor ressentimento.

quinta-feira, 7 de março de 2019

J G Araujo Jorge (Trovas de Amor)


1
Ah, pudesse eu ser o mar
que te envolve e acaricia
e que te pode beija
todinha... como eu queria!

2
Ah, quando escuto teus passos
meu coração se acelera,
que um só minuto em teus braços
compensa a angústia da espera!

3
Amor de carne e de beijo,
em que, bem sei, já não crês.
Mesmo em sonho, ainda vejo,
Tu, nem na lembrança o vês.

4
Amor que sofro, que almejo,
mata-me logo de vez!
Longe que estejas, te vejo,
Ao teu lado, nem me vês...

5
Amor que tudo promete,
falso amor das Colombinas:
- juras e beijos: confete!
Abraços - de serpentinas!

6
Antes verdade isto fosse:
dizer que não penso em ti...
Mas basta ver-te, e acabou-se!
Me esqueço que te esqueci.

7
Às vezes não acredito:
- como há de findar assim
o nosso amor infinito ,
se o infinito não tem fim?

8
Assim mesmo te agradeço
depois que tudo passou,
os momentos verdadeiros
que o falso amor deixou...

9
Assim tão só, como eu fico,
tão sem ti, neste amargor,
quem dirá que eu já fui rico,
milionário de amor?!

10
Bendigo o amor e percorro
seu caminho, que conduz
a esse calvário em que morro
nos teus braços, minha cruz!

11
Como o quadro na moldura,
como a rosa no botão,
como Deus na criatura,
- estas no meu coração.

12
Definir a eternidade
é fácil, já a defini:
é o instante de saudade
que eu vivo longe de ti.

13
Digo em vão que te maldigo
( ó pretensão tola e louca! )
- e tudo o que penso e digo
vira trova em minha boca!

14
Disto a ninguém dou a palma
- eu te conheço melhor:
desnudei-te o corpo, a alma,
sei-te, inteirinha, de cor...

15
Dúvidas cruéis, verdadeira,
angústias turvas, espessas...
Chego a querer que não queiras
pra que depois não me esqueças...

16
E dizer que foste um dia
tudo o que eu quis... e foi meu...
E hoje... nem és poesia
que foi tua... e te esqueceu...

17
Eis uma flor, que em meu peito
mudou de espécie, em verdade
Era amor, - amor- perfeito!
E acabou sendo... saudade!

18
Em contrição te contemplo
deusa a quem vou adorar...
Meu coração, é o teu templo,
meu amor, o teu olhar!

19
Era tanto o que eu pedia?
Por que negavas assim?
Afinal eu só queria
que tu te desses à mim...

20
Este amor nunca se apaga:
é chama que me incendeia,
é espuma a florir na vaga,
é vaga a brincar na areia.

21
Explica-me tu, querida,
este absurdo, por favor:
- ser Senhor de tua vida
e Escravo do teu amor?

22
Foi Carnaval, riso e cor,
- menos sonho que alegria...
E o que restou desse amor?
Nada mais que fantasia.

23
Foi um amor de verdade
sei agora, ao ver a flor,
pois esta flor, - a saudade –
só nasce em cova de amor...

24
Foram horas bem vividas
que os dois souberam colher;
se foram ou não fingidas,
que importa agora saber?

25
Fui tudo para esse amor
belo, puro, cruel, devasso...
Fui pirata, fui pierrot,
fui arlequim, fui palhaço...

26
Louco de amor, te busquei,
e ao te encontrar, percebi
que não fui eu que te achei;
eu, sim, é que te perdi.

27
Mentimos. Estamos quites
Eu menti, mentiste, eu sei.
E embora não acredites
mesmo mentindo eu te amei.

28
Mentiste? Foste mesquinha?
Que importa se já não cremos?
Importa é que foste minha
que eu fui teu, e que vivemos!

29
Mentiste. A felicidade
só mentida, assim se expande...
Nem podia ser verdade
felicidade tão grande.

30
Moeda de estranho valor,
que o coração faz cunhar,
quanto mais se gasta o amor,
mais se tem para gastar...

31
Na despedida - com pressa -
escrever me prometeste.
Esqueceste da promessa,
ou apenas me esqueces-te?

32
Não há remédio: estou doente.
É doença este amor por ti!
Não te esqueço, e justamente
por pensar que te esqueci.

33
Não voltes, pois se voltasses
não me verias aqui...
É que hoje sou muitas faces,
mas, por dentro, já morri...

34
Nesta trova tão singela
meu coração vai trair-se...
Quer dizer o nome dela,
mas, para que iludir-se?

35
No teu olhar há dois sóis,
na tua alma, um mal-me-quer,
e há duas luas redondas
no teu corpo de mulher...

36
Nos teus lábios, há dois beijos,
Nas tuas mãos, há dois ninhos...
Nos teu olhos: dois desejos,
no teu destino: caminhos...

37
Nossos dedos: doce trança...
Um balanço: nossos braços...
E eis a rede da esperança
a emaranhar nossos passos...

38
Ó meu amor, por quem choro,
louco e cego de desejo.
- Quanto mais louco, te adoro!
- Quanto mais cego, te vejo!

39
Os meus olhos pões à provas
em desafios fatais...
Teus olhos, são duas trovas
que em silêncio cantam mais...

40
Para ler a minha sorte
e saber se é má ou bela,
com as minhas mãos se importe:
vai ler cigana, as mãos dela.

41
Parece coisa de louco...
Como explicar na verdade
que o amor, que durou tão pouco,
me doa uma eternidade?

42
Pecado ? Afirmo e te juro,
é palavra sem valor,
pois nada existe mais puro
que se pecar... por amor!

43
Pensei que o mundo acabasse
Felizmente era mentira!
- Apenas virara a face
de um disco que eu já ouvira...

44
Podes ter outro Senhor,
até mais rico que um Rei,
mas nunca mais outro amor
há de te dar quando dei.

45
Por ironia maior,
sorriste do meu desgosto,
e sepultaste este amor
nas covinhas de teu rosto...

46
Porque sabes que te cobro
tu te atrasas ao chegar,
e assim me pagas em dobro
os beijos que tens que dar...

47
Quanta prodigalidade!
Em poucos meses, querida,
gastamos felicidade
que dava pra toda a vida!

48
Que eu não tenho coração
não és tu, sou eu que te digo...
- Como hei de ter coração
se tu o levas contigo?

49
Que há de ser esse teu nome
que repito sem querer?
- Substantivo ? Pronome?
Ou verbo, de meu viver?

50
Quis tornar-me um trovador
para dizer que ela é minha,
mas tudo em vão, meu amor
não coube numa quadrinha.

51
Resta um consolo: pensar
no amor que juntos colhemos...
Nem Deus nos pode tirar
os instantes que vivemos!

52
Rosas tolas, tão vaidosas,
que em belas hastes vicejam...
Vem, amor, olha estas rosas,
quero que as rosas te vejam...

53
São céus e abismos profundos
nem eu posso descrevê-los:
mergulho em teus olhos fundos
e me afogo em teus cabelos!

54
Sorris tão perto... Sorrindo,
(ó estranho magnetismo!)
como que em mim vou sentindo
essa vertigem do abismo!

55
Tanto esperei, por meu mal...
Voltaste... E qual o valor?
- se eu hoje sei afinal
que não te quis o outro amor...

56
Uma quadrinha é uma cova
onde a poesia é uma flor,
por isso é que numa trova
vou sepultar este amor.

57
Vida amarga! E na amargura
da vida, eu pensei querida:
- quem dera a tua doçura
para adoçar minha vida!

58
Voltando, ( e a julgo perdida...)
- de onde quer que você ande
esta minha pobre vida
tiraria a sorte grande.

Fonte:
J. G. De Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. IV -  1. Edição, 1965.

Jorge Amado (Mar Morto) Primeira Parte

Resumo comentado por Jayrus Luna

Mar Morto pertence a primeira fase do autor: depoimentos líricos, com predominância do elemento sentimental, sobre rixas, e amores de marinheiros.

A história se passa no Cais da Bahia, onde viviam os marinheiros, e um dos mais antigos era Seu Francisco que criava o sobrinho Guma, ensinando-lhe as leis do mar. Guma, com o tempo, tomou conta do saveiro chamado Valente. A fama de Guma no cais ocorreu em uma noite de tempestade, onde Guma, com o seu Valente, salvou um navio (Canavieiras) que iria naufragar. Depois disso, Guma conheceu Lívia, uma das moças mais bonitas do cais, casou-se com ela e foram morar com Seu Francisco, onde ao lado deles foram morar Rufino (um grande amigo de Guma) e Esmeralda.

Viviam muito bem, até que Guma envolveu-se com Esmeralda que o perseguia, Rufino descobriu, matou Esmeralda e depois matou-se de desgosto. Logo depois, Lívia descobriu que estava grávida. Guma, com remorso de ter traído Rufino e Lívia, pegou o Valente e foi para o mar e bateu nas pedras. Não morreu, mas o Valente ficou totalmente destruído. Lívia teve o filho que se chamava Frederico e Guma estava feliz com o filho, mas ao mesmo tempo arruinado por ter perdido seu saveiro. Sem escolha, começou a contrabandear seda (já tinha comprado outro saveiro) para os árabes. Numa dessas viagens, o filho de um dos árabes tinha ido junto para Porto de Santo Antônio, mas caiu no mar. Guma pulou no mar e conseguiu salvá-lo, mas morreu com seu ato de coragem. Lívia ficou com Frederico e o Seu Francisco, e tomaram conta do saveiro (de nome Paquete Voador) apenas com a lembrança de Guma que ficará na memória do cais, principalmente porque após sua morte as águas do mar se tornaram calmas e mortas, mas também por ele ter sido um homem de coragem e bom coração.

1ª parte

A primeira parte da obra denomina-se IEMANJÁ, Dona dos Mares e dos Saveiros, e possui doze capítulos:

Primeiro capítulo - Tempestade

Jorge Amado destaca a chegada da noite com tempestade, carregada de nuvens, lavando o cais, amassando a areia, balançando os navios atracados e maltratando, sem piedade, os negros da estiva. Todos abandonaram o cais. O preto Rufino, diante do copo de cachaça, sabia que, com a tempestade, Esmeralda não viria ao encontro dele. Mestre Manuel resolveu não sair com seu saveiro, preferiu ficar amando Maria Clara. Lívia ficou, aflita, à beira do cais, sob a chuva e o vento, esperando Guma que vinha no "Valente", desafiando a fúria dos ventos. Um saveiro virou no mar e dois homens (Raimundo e Jacques) caíram na água e morreram.

Segundo capítulo - Cancioneiro do Cais

Cessada a tempestade, Lívia continua esperando Guma e ouve os gemidos de Maria Clara dentro do saveiro com mestre Manuel. Breve ela também estaria nos braços de Guma, pois há oito dias não o via. Rufino conta a Lívia que Raimundo e Jacques morreram afogados, tendo sido seus corpos encontrados por Guma. Todos passam a compartilhar do sofrimento de Judith, mulher de Jacques, uma mulata que ficou com um filho na barriga. Maria Clara ainda soluça de amor. Judith não terá amor esta noite nem nunca mais, pois seu homem morreu no mar. Do forte abandonado, vem a música cantada pelo velho soldado Jeremias, voz possante de preto:

"A noite é para o amor...

"Vem amar nas águas, que a lua brilha...

"É doce morrer no mar...

Terceiro capítulo - Terras do sem fim

Agora, o velho soldado Jeremias entoa uma canção que diz "desgraça é a mulher que casa com um homem do mar, seu destino será infeliz". O velho Francisco conhece essa canção, pois foram quarenta anos num saveiro, e era amigo de todos daquela região. Uma vez, ao salvar uma tripulação, viu o vulto de Iemanjá. Já teve três saveiros, mas agora vivia de remendar velas e do que lhe dava Guma. Frederico, seu irmão e pai de Guma, morreu na tempestade para salvá-lo. Sua mulher Rita morreu do coração quando soube do acidente com o marido.

A mãe de Guma, que o entregou ao pai logo que ele nasceu, chega de Recife para levar o menino. Frederico, mulherengo que nem macaco, passando um mês em Aracaju e prometendo-lhe mundos e fundos, deixou-a naquele estado. Havia morrido, Guma era um filho sem pai e seria criado por ela. O velho Francisco não entregaria o seu sobrinho para uma mulher da vida. Quando foi apresentá-la ao filho, Guma pensou que aquela fosse a mulher que seu tio lhe prometera, que deitaria com ele numa cama, mesmo tendo apenas onze anos. Guma assusta-se ao saber que aquela mulher tão esperada por ele era sua mãe, pois nunca lhe tinham falado dela. Ela o chama de filho e só então Guma sente um pouco de ternura por aquela mulher. Despediu-se e nunca mais voltou. Não iria jamais com ela. Seu destino era o mar. Uma noite, Velho Francisco deixou uma mulata para Guma no saveiro. Depois, vieram outras. Somente quando Guma tinha dezoito anos, o tio contou ao sobrinho as peripécias do irmão, que vivia pelo mundo e uma vez voltou trazendo a vida de um homem na ponta da faca. Guma já era homem, pois manobrava muito bem um saveiro.

Quarto capítulo - Acalanto de Rosa Palmeirão

Neste capítulo, Jorge Amado dá ênfase à história dessa mulata que possuía um ABC com as suas aventuras, contadas por todos, principalmente pelo velho Francisco. Sua fama corria o mundo, e todo marinheiro a conhecia: navalha na saia, punhal no peito, deu em seis soldados, comeu vinte prisões, bateu em muito homem. Andava pelo Recôncavo, sul do Estado e Rio de Janeiro. Uma flor (uma rosa palmeirão) que trazia sempre no vestido herdou-lhe o nome. Não aparecia há anos.

Certa vez, na terceira classe de um navio, chegou do Rio de Janeiro e foi o centro das atenções, reviu a todos e conheceu Guma (tinha-o visto ainda menino) a quem confessou que queria ter um filho e com quem viveu uns tempos. Dessa vez, contou que, vivendo com um tal de Juca, um cabra frouxo que havia apanhando dela invadiu a casa com mais seis homens querendo bater no Juca e abrir a vela. Todos apanharam. Na delegacia, o delegado, que era baiano, já conhecia sua a fama de Rosa Palmeirão. Juca foi-se embora de medo.

Quinto capítulo - Lei

Uma nova tempestade assustou os homens do cais, proibindo viagens e dando prejuízos. Num dia igual a esse, morreu João Pequeno, o mestre de saveiro que mais conhecia a profissão naquele cais. O governo deu uma pensão à mulher dele, cortada por economia. Aparecia nas noites de tempestade.

Xavier, mulato troncudo, chegou no seu saveiro Caboré. Quando lhe perguntam o porquê daquele nome, ele explica, meio alterado: "Foi por causa de uma mulher". Ela o chamava de Caboré, mas ele não sabia por quê. Um dia, sem nenhum motivo, foi embora.

Godofredo, comandante da Companhia, odiado no cais por perseguir a todos, ofereceu duzentos mil réis, mais cem mil réis do seu bolso, para um prático que trouxesse o "Canavieiras", que estava fora, sem poder entrar e pedindo socorro. Seus dois filhos estavam dentro. Guma aceitou o desafio, resgatou o saveiro e salvou a tripulação. A partir desse episódio, ganhou fama no cais da Bahia.

Sexto capítulo - Iemanjá dos cinco nomes

Ninguém no cais tinha um só nome, inclusive Iemanjá, que tinha cinco nomes doces, conhecidos por todos:

IEMANJÁ, seu verdadeiro nome, dona das águas, senhora dos oceanos.

DONA JANAÍNA, para os canoeiros.

INAÊ, para os pretos, seus filhos mais diletos.

PRINCESA DE AIOCÁ, para quem os pretos também faziam suas súplicas.

DONA MARIA, para as mulheres do cais, as mulheres da vida, as mulheres casadas, as moças que esperam noivos.

O pai de santo Anselmo era quem organizava as festas de Iemanjá, presidia as macumbas e, com ordem dela, curava as doenças. No Dique, nas Cabeceiras, em mar Grande, em Gameleira, em Dom Despacho e na Amoeira, seu dia é 2 de fevereiro. Já em Monte Serrat, onde a festa é a maior, seu dia é 20 de outubro. Porém todos se uniam para festejar Iemanjá.

Sétimo capítulo - Um navio ancorou no cais

"Um navio ancorou no cais e nele Rosa Palmeirão foi embora." Alguém a chama de bicha doida, pois só vivia correndo o mundo. Num grupo de conhecidos, Guma, cabisbaixo, é zombado por Maneca e Severiano que, ao ser socado por Guma, puxou de uma faca.

"Severiano encostou-se na parede do mercado, faca na mão, e gritou para Guma:

- Manda Rosa brigar comigo que tu não é homem."

Apesar de Guma pular, o pé de Severiano alcançou-o na boca do estômago. Rodolfo interveio e salvou Guma da morte. Rodolfo, malvisto no cais, chamado por muitos de ladrão, conta a Guma as aventuras do velho Concórdia, seu pai, que tinha uma filha, agora sua irmã, que ele não conhecia. Ela queria ver Guma para agradecer-lhe, pois alguns da tripulação do "Canavieiras" (navio salvo por Guma) eram seus parentes. Na saída, Guma pergunta:

"- Como é o nome dela?

- Lívia!" - respondeu Rodolfo.

Traíra morreu, vítima de um tiro, numa confusão, em um prostíbulo, em uma das cidadezinhas do Recôncavo (Cachoeira), após ter sido socorrido por Guma, que o conheceu na ocasião. No momento da morte, lembrou-se das filhas: Marta, Margarida e Rachel.

Oitavo capítulo - Marta, Margarida e Rachel

Aqui, o autor destaca dr. Rodrigo, que era de família de marinheiros. Seus pais e avós cruzaram os mares como meio de vida. Era magro e fraco, incapaz de levar um saveiro pelas águas; por isso, tratava da moléstia dos marinheiros e tirava até gente da cadeira. Era estimado no cais. Era também poeta, mas somente a professora Dulce sabia que ele fazia poemas sobre o mar. Todos esperavam que os dois se casassem; até saíam e conversavam.

Jorge Amado destaca também as filhas de Traíra (o que morreu com um tiro, em Cachoeira). Marta tinha dezoito anos, cosia peças, estava preparando um enxoval à espera de um noivo. Margarida nadava na beira do rio; Rachel era a menor, de quatro anos, brincava com uma boneca e não sabia pronunciar direito as palavras.

Nono capítulo - Viscondes, Condes, Marqueses e Besouro

Coloca-se em evidência a cidade de Santo Amaro, pátria de muito barão do Império, viscondes, condes e marqueses. Pátria também de gente humilde do cais, pátria de Besouro, o mais valente dos negros do cais, que derramou sangue, esfaqueou, atirou, lutou capoeira e foi morto perto dali, à traição, em Maracangalha, cortado todinho de facão. Virou uma estrela.

No dia em que Traíra morreu, Guma estava para ir ver Lívia, que foi à festa de Iemanjá somente para vê-lo. Lívia nasceu na capital, a cidade das sete portas, onde nascem as mulheres mais lindas do cais. Guma assumiu um compromisso com Rosa Palmeirão: ter um filho com Lívia para Rosa ajudar a criar.

Décimo capítulo - Melodia

Guma fez boa viagem em busca de Lívia, a mais bela mulher que seria oferecida ao mar. O "Valente" correu, e já brilham as luzes da Bahia, Guma já ouve o baticum dos candomblés, parecia ouvir a risada clara de Lívia.

Décimo primeiro capítulo - Rapto de Lívia

Guma alimentava seis meses de um desejo intenso. Chegando de Santo Amaro, Rodolfo levou-o para ver Lívia, que estava bela e tímida. Os tios dela, que tinham uma pequena quitanda e que foram salvos por Guma no acidente com o "Canavieiras", não aceitavam o relacionamento, queriam que ele fosse embora, pois Lívia não podia esperar nada de um marinheiro mais pobre que eles.

Guma entregou a ela uma carta; na verdade, foi escrita pelo doutor Filadélfio, conhecido por todos como doutor, escrevia histórias em versos, ABCs do cais, cantigas. A resposta de Lívia veio quando ele voltava: "- Estou preparando o enxoval."

Os tios proibiram Guma de visitá-la, e Rodolfo sugeriu que ele a raptasse, que a levasse para Cachoeira e casasse na volta. Combinaram tudo para uma semana. E assim se fez. Na ida, preso ao leme do "Valente", sente as carícias dos cabelos dela.

Décimo segundo capítulo - Marcha nupcial

Rodolfo acalma os tios de Lívia, que estavam revoltados, e pede a Guma que faça sua irmã feliz. O casamento seria daí a sete dias, na igreja de Monte Serrat e no fórum.

O velho Francisco ficou danado, pois sabia que um marinheiro não se devia casar. Iria embora. A mulher de Guma poderia não gostar de que ele continuasse morando ali. Mas não foi. Ali mandava Guma. Doutor Filadélfio bebeu no Farol das Estrelas à saúde de Guma e de sua futura.

No dia do casório, o cortejo entrou na casa de Guma. Jeremias trouxera o violão, e o negro Rufino, sua viola. Cantaram as canções do mar; desde aquele dia, que a noite é para o mar. Lívia jurou que seu filho não seria marinheiro.
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Continua… Segunda Parte: O Paquete Voador

Fonte:

Leon Eliachar (Dicionário de Bolso) Letras E até M


E

Elevador — é esse compartimento tão pequeno onde as pessoas são obrigadas a entender-se por meio de números.

Empresário — sujeito que vive à custa do talento alheio.

Esquecimento — desculpa que nos dão e que nunca mais esquecemos.

F

Fatalidade — tudo aquilo que a gente só prevê depois que acontece.

Fechadura — buraco mais frequentado por um olho do que por uma chave.

Filante — sujeito que só traz cigarro no bolso dos outros.

G

Gorjeta — vergonha que a gente deixa em cima da mesa em forma de dinheiro.

Gráfico — é esse risco que corre para cima e para baixo dentro de uma firma, até acabar o risco ou até acabar a firma.

Gravata — forca da elegância.

Guarda de trânsito — sujeito que só começa a trabalhar quando é posto na rua.

H

Herói — é esse sujeito que teve a sorte de escapar vivo.

Hipócrita — indivíduo que faz tudo para parecer que é aquilo que ele pensa que nós pensamos que ele é.

Horóscopo — é isso que a gente consulta sempre pra ver o que vai acontecer amanhã, mas amanhã a gente só se preocupa novamente com o que vai acontecer amanhã.

I

Imbecil — sujeito que nunca concorda conosco ou então concorda sempre.

Improviso — capacidade de decorar mentalmente.

Indecisão — espaço de tempo que o nosso pé leva do acelerador ao freio diante do sinal amarelo.

Indiferença — é isso que as mulheres começam a aparentar quando já não estão indiferentes.

Intermediário — é esse sujeito que faz a ligação entre dois interesses, visando exclusivamente ao seu.

Irritação — curto-circuito no sistema nervoso.

J

Jingle — musiquinha que repete três vezes as mesmas palavras, as mesmas palavras, as mesmas palavras.

Jogador — sujeito que de tanto jogar acaba mais marcado do que o baralho.

K

Kilograma — medida que depois que passou a ser escrita com QU não conseguiu pesar mais de 900 gramas.

L

Lenço — pecinha que o homem traz sempre duas no bolso: uma para oferecer à mulher, quando ele sai, e outra para apresentar à mulher, quando ele volta.

Louco — sujeito que cisma que é Napoleão, desde os tempos de Napoleão, que foi o único verdadeiro, vai dizer que não fui.

Luva — peça que a mulher experimenta diversas vezes até encontrar uma que se ajuste bem nos seus dedos, depois passa a usá-la fora da mão.

M

Manchete — é isso que sai em cima com letra grande para vender o jornal; assim o jornal pode vender a outra manchete que sai com letra menor.

Manicure — é essa pequena a quem a gente tem sempre de dar uma mãozinha para ela trabalhar.

Mata-borrão — isso que absorve melhor do que ninguém as nossas palavras.

Mecânico — sujeito que nos toma a diferença que conseguimos quando compramos um carro mais barato.

Menu — isso que a gente lê várias vezes pra ver o que tem e pedir o que não tem.

Mesa-redonda — discussão de vários problemas pessoais para resolver um comum.

Intruso — justamente isso: uma palavra que começa com "i" sair na letra "m".

Miss — pequena que divide o seu tempo entre o maio e a fita métrica.

Modéstia — vergonha que temos de reconhecer que somos realmente os maiores.

Modesto — sujeito que se aborrece conosco se concordarmos com ele em achá-lo uma besta.

terça-feira, 5 de março de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) IV

IDÍLIO

Sinto que, ás vezes, choras, minha Irmã,
No teu sombrio quarto recolhida...
É que ele vem rompendo a sombra vã
Da Morte, e lhe aparece á luz da vida!

E aflita, como choras, minha Irmã...
Teu choro é tua voz emudecida,
Ante a imagem do Filho, essa Manhã
Em profunda saudade amanhecida.

Silencio! Não palpites, coração;
Nem canto de ave ou mística oração
Um tal idílio venham perturbar!

Deixai o Filho amado e a Mãe saudosa:
O Filho a rir, de face carinhosa,
E a Mãe, tão triste e pálida, a chorar...

DE NOITE

Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos íntimos, acesos,
Estáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor... o amor antigo.

A minha dor está contigo ali,
Como, outrora, eu estava ao pé de ti...
Se fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!

Mas eu não sou a dor, a dor etérea...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama...

NOITES EM CLARO

Passas em claro as noites a chorar;
Dia a dia, teu rosto empalidece...
Faze tu, pobre Mãe, por serenar,
Santa Resignação sobre ela desce!

Rochedo que a penumbra desvanece,
Tu, por acaso, não lhe podes dar
Um pouco desse frio que entorpece
O coração e o deixa descansar?...

Jamais! Não há remédio! Nem as horas
Que passam! Toda a fria noite choras;
Tua sombra, no chão, é mais escura.

Sofres! E sinto bem que a tua dor,
Como se fora um beijo, aceso amor,
Vai-lhe aquecer, ao longe, a sepultura.

DUAS SOMBRAS

Pelas tardes divinas,
Quando a cor se dissolve em lágrimas douradas,
Eu vejo duas Sombras pequeninas,
Andando de mãos dadas.

Como duas crianças que elas são,
Percorrem, a brincar,
Esta minha infinita solidão;
E estático e suspenso, eu fico a olhar, a olhar...

Bate-me o coração; caminho... Na distância,
Através do crepúsculo divino,
Vejo a Sombra infantil da minha infância
E a Sombra do Menino!

E delas me aproximo; e paro; tenho medo
De as ver fugir, assim...
Seus Vultos de quimera e de segredo
Tremem diante de mim...
E como se parecem!
O mesmo adeus no olhar, o mesmo rosto e altura...
E ao pé delas as coisas se enternecem,
E este meu coração aberto em sepultura.

Durante a tua vida, meu Amor,
Quantas vezes, ao ver-te, imaginava
Olhar de perto, a minha infância toda em flor!
E ainda mais: pensava
Que eras a minha própria Infância novamente,
Mesmo diante de mim, ressuscitada
E brincando comigo alegremente,
Nesta velha Paisagem bem amada,
Terra da meia noite, alma do outono...
Nesta casa velhinha, evocadora,
Tocada de luar, de sombra e de abandono,
Da alegria de outrora...
E por isso, no dia em que morreste,
Quando tudo era lágrima, a distância,
Coração, duas cruzes padeceste;
Duas mortes sofreu a minha infância.

LÁGRIMA

Bate-me o luar na face, e o meu olhar
Em lágrima saudosa se condensa...
Vejo-a diante de mim, como suspensa
Na sombra do ar.

E em seu líquido seio de esplendor,
Tua Imagem começa a alvorecer,
Pois toma corpo e vida no meu ser,
Quando a beija, sorrindo, a minha dor...

Ébria do teu espirito sagrado,
A radiosa lágrima estremece,
Enquanto a minha face empalidece
E o luar e a noite cismam ao meu lado...

E a comovida lágrima crepita...
Relâmpago de dor... E nada vejo;
Pois nela está presente o meu desejo
E a minha vida frágil e infinita.

E a lágrima cintila, num adeus...
E, desprendida de meus olhos, ei-la
Já distante, no espaço: é nova estrela
Subindo aos céus...

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Contos e Lendas do Mundo (China: Os Três Tigres)

por Xu Fang

Nos últimos anos, nossa aldeia foi infestada por tigres, que devoraram muitas pessoas, mais do que se conseguiria contar. Viajantes que passavam por aqui diziam que isso acontecia também no resto da China.

Segundo muitos, os tigres errantes seriam enviados do céu, encarregados de procurar aqueles que tinham conseguido escapar do seu encontro com uma morte violenta. Outros afirmavam que debaixo da pele do tigre se escondem demônios ferozes, espíritos vingadores no estado de furor extremo. A verdade pode existir nessas duas explicações, mas nenhuma  é tão estranha como a do velho Huang.

O velho Huang morava em Mixi, a alguns quilômetros do distrito de Qiao. Ele tinha três filhos grandes na força da idade. Na primavera daquele ano, ele ordenou que eles fossem lavrar o campo nas colinas e durante muitos dias eles saíam bem cedo e voltavam no fim da tarde.

Um dia um vizinho disse ao Huang:

— Teu roçado está cheio de mato.

— Como pode ser? - respondeu o velho Huang. Meus filhos passam lá, trabalhando o dia inteiro.

— Parece que não! -  respondeu o vizinho.

Intrigado, Huang decidiu seguir seus filhos. Na manhã seguinte, foi atrás deles. Logo que chegaram no bosque, no pé da colina, eles tiraram a roupa e a penduraram em galhos de árvore. Depois se transformaram em tigres, pulando e dando terríveis rugidos.

Aterrorizado, o velho Huang voltou depressa para a aldeia. Ele contou ao seu vizinho o que tinha visto e depois se trancou dentro de casa.

De noite, seus filhos voltaram. Esperaram muito, diante da porta fechada, mas ninguém respondia quando chamavam. No fim, o vizinho saiu e explicou que seu pai os renegava, depois do que tinha visto no bosque.

— O que ele viu foi verdade! -  reconheceram os rapazes. - Mas não fazemos assim por nossa vontade. É o mestre dos Céus que nos obriga.

Em seguida, o mais velho chamou seu pai.

— Pai, como poderíamos ser ingratos com o senhor? Sua bondade para conosco é sem limites. Ficamos desesperados por termos sido escolhidos já há tanto tempo para esse papel funesto. Nos últimos dias corremos por montes e vales, na esperança de encontrar alguém para pegar nosso lugar, porque não aceitamos a sorte que nos foi reservada. Não deu certo. Agora, mesmo com o senhor sabendo o que está acontecendo, não podemos desobedecer as ordens. No bolso de cima do meu casaco, pai, tem uma caderneta. Pega essa caderneta, pai, senão o senhor está perdido, e teremos nós três aqui assinado sua sentença de morte.

O velho Huang pegou a lamparina e procurou no bolso de cima do casaco, de onde tirou a caderneta. Ele leu os nomes de todos aqueles que, no distrito, deviam ser mortos pelos tigres. Seu nome vinha em segundo lugar na lista.

— O que podemos fazer? — gritou, desesperado.

— Abre a porta, respondeu o mais velho. Acho que tem uma saída.

O velho Huang abriu a porta. O filho mais velho pegou a caderneta, e os três filhos, retendo os soluços, inclinaram-se diante do pai. Depois disseram:

— Que seja o destino do Mestre dos Céus. Agora, pai, veste quatro ou cinco calças e camisas, uma por cima da outra, mas não afivela o cinto. E agora, reza ajoelhado. Temos um jeito de salvá-lo.

O velho Huang obedeceu. Nem bem tinha se ajoelhado, seus três filhos já tinham virado tigres e caíram sobre ele com as garras afiadas. Com patadas e dentadas, cada um arrancou uma camada das roupas e foram embora rugindo, com farrapos de roupa na garganta.

Nunca mais eles foram vistos na aldeia, e o velho ainda hoje mora no mesmo lugar.

Fonte:
http://www.capparelli.com.br/contos.php

Andréa Motta (Lançamento de Livro dia 26 de março)

Andréa Motta e Nogue Editora, convidam para o lançamento do livro de poesias Natureza Íntima, no dia 26 de março de 2019, à 17h, no Centro de Letras do Paraná (Rua Fernando Moreira, 370 - Centro. Curitiba-Paraná).

É um livro com poemas curtos, mas profundos.

Será uma imensa alegria, contar com sua honrosa presença.


domingo, 3 de março de 2019

Arthur de Azevedo (A Marcelina)



I
Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o Doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigadas da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, – mas como janota – força é confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.

Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente:

– Orço pelos quarenta, – e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinquenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público.Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Citera dos bastidores.

Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar–se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso – muito mais generoso que inteligente, – nunca ficava mal com o astro caído.

Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito, – que facilmente se enjoavam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso suas roupas.

II

No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a conquista do Doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas do reclame, e cuja estreia,num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

Uma hora antes de começar o espetáculo de estreia, entrou advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

Ela ficou encantadíssima, a agradeceu com beijos quentes sonoros a dedicada solicitude do amante.

Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! Que papel escolhido! Que delicioso divã! Que magnífico espelho de faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! E que profusão de perfumarias! E que precioso serviço de toilette!.

Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, ricamente iluminada por dois bicos de gás.

O Doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

Dali a nada ouviu-se um – Dá licença?, – e o diretor de cena entrou no camarim, acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.

– Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

– É doente? perguntou Clorinda à costureira.

– Não. senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa.

Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refastelando-se no divã:

– Ma chêre, il faut se contender de cette habilleuse; noos ne sommes pos en Europe.

Ele impingiu a frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: – Oui.

Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo:

– Vamos a isto!

E dirigindo-se à costureira:

– Sente-se. Por que está de pé?

A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

– Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.

– Deveras?

– Ao que me parece, você tem sido um gajo!

O Doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade adentro como uma grã-cruz.

– Com que então, a sua especialidade são as atrizes?

– Sou doido pelo teatro.

– E há quanto tempo dura essa doidice?

– Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.

– Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

– São os seus olhos.

– Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

– Ah! isso…

O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

– … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

– Como se chamava essa colega?

– Chamava-se Marcelina.

– Que fim levou?

Ele encolheu os ombros.

– Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê os cadáveres.

– Gostou dela?

– Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

– Nunca mais a procurou?

– Para quê?

– Tinha talento?

– Talento? Não. Tinha habilidade.

E depois de uma pausa:

– Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

– Brasileira?

– Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia – eu já a tinha deixado – um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace!

Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o Doutor
Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas mancebias.

Clorinda, a costureira e o cabeleireiro ouviam sem dizer palavra .

Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:

– Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.

– Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplendido! Vou aplaudi-la. Bonne chonce!

Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura, – e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

III

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

– A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

– Acha? perguntou desdenhosamente a atriz.

– Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas.. – não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses… gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

– Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me falar assim?

– Eu sou… a Marcelina.

Fonte: