domingo, 3 de março de 2019

Arthur de Azevedo (A Marcelina)



I
Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o Doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigadas da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, – mas como janota – força é confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.

Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente:

– Orço pelos quarenta, – e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinquenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público.Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Citera dos bastidores.

Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar–se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso – muito mais generoso que inteligente, – nunca ficava mal com o astro caído.

Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito, – que facilmente se enjoavam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso suas roupas.

II

No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a conquista do Doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas do reclame, e cuja estreia,num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

Uma hora antes de começar o espetáculo de estreia, entrou advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

Ela ficou encantadíssima, a agradeceu com beijos quentes sonoros a dedicada solicitude do amante.

Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! Que papel escolhido! Que delicioso divã! Que magnífico espelho de faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! E que profusão de perfumarias! E que precioso serviço de toilette!.

Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, ricamente iluminada por dois bicos de gás.

O Doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

Dali a nada ouviu-se um – Dá licença?, – e o diretor de cena entrou no camarim, acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.

– Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

– É doente? perguntou Clorinda à costureira.

– Não. senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa.

Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refastelando-se no divã:

– Ma chêre, il faut se contender de cette habilleuse; noos ne sommes pos en Europe.

Ele impingiu a frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: – Oui.

Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo:

– Vamos a isto!

E dirigindo-se à costureira:

– Sente-se. Por que está de pé?

A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

– Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.

– Deveras?

– Ao que me parece, você tem sido um gajo!

O Doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade adentro como uma grã-cruz.

– Com que então, a sua especialidade são as atrizes?

– Sou doido pelo teatro.

– E há quanto tempo dura essa doidice?

– Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.

– Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

– São os seus olhos.

– Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

– Ah! isso…

O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

– … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

– Como se chamava essa colega?

– Chamava-se Marcelina.

– Que fim levou?

Ele encolheu os ombros.

– Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê os cadáveres.

– Gostou dela?

– Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

– Nunca mais a procurou?

– Para quê?

– Tinha talento?

– Talento? Não. Tinha habilidade.

E depois de uma pausa:

– Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

– Brasileira?

– Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia – eu já a tinha deixado – um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace!

Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o Doutor
Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas mancebias.

Clorinda, a costureira e o cabeleireiro ouviam sem dizer palavra .

Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:

– Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.

– Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplendido! Vou aplaudi-la. Bonne chonce!

Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura, – e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

III

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

– A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

– Acha? perguntou desdenhosamente a atriz.

– Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas.. – não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses… gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

– Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me falar assim?

– Eu sou… a Marcelina.

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