segunda-feira, 18 de março de 2019

Virgílio Maia (Poemas Recolhidos)


A CASA DO SAQUINHO
Décima com mote de domínio público

Já não se ouvem as pisadas,
os risos, as brincadeiras
e o cheiro das trepadeiras
hoje são coisas passadas.
Tinha as paredes caiadas,
em volta um jardim florindo.
Pois tudo aquilo está findo,
que do ontem restou um nada,
casa velha abandonada
que o tempo vai demolindo.

ALVENARIA

Sobre pedras se eleva este soneto,
em trabalhosa faina alevantado,
as linhas definidas no traçado
da perfeição do prumo e nível reto.

Dentre tantos eleito, põe-se ereto
rima por rima, embora recatado;
ao martelar do metro faz-se alado,
opondo ao som a luz deste quarteto.

Sobre andaime de verso e de ciência
necessário a erguer prova tão dura,
deixa o pedreiro, alçado, o rés-do-chão.

E sobranceiro ao mundo, àquela altura,
Vai concluir, com brava paciência,
A obra em que balança o coração.

A SENHA
         de uma antiga balada cretense

Amada minha, trago estes limões
neste lenço de seda do Oriente.
Foi tudo o que obtive estando ausente
em tantos anos de navegações.

Trago-te a mim, te entrego os corações
que flechados e azuis tenho nos braços.
Quero agora guiar-me por teus passos
e no teu corpo haurir loucas lições.

Abre a porta, não vês que sou eu mesmo?
Sei que o tempo passou enquanto a esmo
doido amante dos mares perlustrei-os.

Sou eu, só eu. Abre esta porta, peço,
pois quem mais saberá deste endereço,
daquele sinalzinho entre os teus seios?

AS HORAS SERTANEJAS

Não lhes direi do presente,
mas de um tempo que se foi,
do Sertão-do-nunca-mais,
do couro, de muito boi,
dos aboios, das cantigas
dos velhos carros-de-boi.

Aqui tenho por meu guia
um livro muito afamado,
redigido por grande homem
do nosso vizinho estado.
Luís da Câmara Cascudo,
um potiguar arretado.

Há de ser sempre lembrado,
pelo muito que escreveu.
Qual ele quase ninguém
nossas coisas percorreu,
anotando com carinho
tudo o que viu e o que leu.

Quase uma grosa nos deu
de preciosos estudos
sobre as mais diversas coisas,
até linguagem dos mudos,
obras por todos buscadas,
por mor de seus conteúdos.

Escreveu sobre os escudos,
os que Holandês invasor.
às nossas Capitanias,
sob o lábaro tricolor,
certo dia achou por bem
fazer-se de doador.

O tempo tudo destrói,
coisa alguma lhe resiste.
Passam os anos., passam os homens,
e passa o que mais existe,
e a vida se vai passando,
nos mostra o ponteiro em riste.

Embora não mais se aviste
o Sertão velho, avoengo,
vou lhe falar de um relógio
muito antigo e solarengo,
 se rima Deus me mandar
aqui para o velho quengo.

No tempo do realengo,
o dos nossos bisavós,
era tudo mais tranquilo
não havia quiprocós
sendo as coisas mais de jeito,
as cordas com poucos nós.

Não se tinham tantos prós
e contras como hoje em dia,
a vida passava calma.,
fluíam. sem correria,
as horas sem muita pressa,
bem lentas. sem agonia.

Do aboio fala. Senhores,
este canto em que o Sertão
se acalma, se põe dolente,
e que qualquer barbatão
ouvindo vai pro curral,
os olhos postos no chão.

Cacimba roubada, então,
é capítulo sem ruindade.
Um é bom, dois é melhor,
 três é ruim...  diz a verdade
o lusitano afamado,
Antônio Galvão de Andrade.

Esta obra de qualidade
traz em sua introdução
das horas os antigos nomes,
que se usavam no Sertão
e que agora eu cordelizo,
pedindo muita atenção.

Uma bela ilustração
a cada hora corresponde,
da lavra de mestre Audifax,
artista que não se esconde,
se se exibe um texto a ele
com um desenho responde.

FOTOS

Deste antigo retrato, com firmeza,
meu avô me interroga bem de perto,
com aquela usual branda aspereza
que criança, me punha em desconcerto.

Na lapela, uma flor, que ele por certo
deixou emurchecida sobre a mesa
e do alto colarinho o branco aperto
incomodava-o um pouco, com certeza.

Tendo ao lado meu pai, que é filho seu,
certamente renovam velhos planos
de terra e gado, açudes e destino.

No fervor de seus vinte e tantos anos,
miram-me, mais novos do que eu,
e assim mesmo, para eles sou menino.

ILUMIARA

Quem pintou essas pedras no Sertão,
nessa tinta que nunca mais se apaga?
E para quem nosso ancestral pintava
brutas cenas de caça e aquela mão?

Tais secretos mistérios estarão
insondáveis nas cores dessas aras:
candelabros ou onças avermelhadas,
mais figuras que seguem em procissão.

Contou-me um dia uma mulher velhinha
que numa noite escura ela passou
se benzendo de medo pela Pedra.

E viu, jurou que viu, vinha sozinha,
que o enorme Gavião se desgarrou
da pintura, gritando feito a Fera.

SONETO ALADO COM CAVALO BRANCO

Trovejante trovão troou no céu,
a treva transformando em claro dia;
transumano contraste sucedeu,
transmudando pavor em alegria.

Foi aquilo verdade ou foi um sonho,
realidade vera ou fantasia,
quando inteiro Sertão tremeu medonho,
obedecendo antiga profecia?

Ao perpassar das éguas e das nuvens,
em crescente o cavalo pôs-se alado,
 guerreiro fez-se, ao Norte e no passado.

Mastigando luares de marfim
na tarde foi -se, galopando aléns,
entre talos de doce gergelim.

UM BUJÃO DE GÁS

Prateado, bojudo, gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.

Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado,
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.

Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou:

homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.

UM CATA-VENTO DE BRINQUEDO

De extinto cacimbão o cata-vento
puxa ao meu rosto as águas de outra idade.
Ele é só um brinquedo, mas vale
pelas recordações que guardo dentro

do menino que mora aqui ao lado,
e sabendo de cor a cor dos ventos,
tem na ponta da língua, decorados,
uns gestos infantis de cata-ventos.

Flandre e ferro somados pela solda:
sendo brinquedo, brinca no jardim,
à brisa mais maneira já se alegra.

Brinca sem compromisso, roda e roda,
se fingindo irrigante desta terra,
num faz-de-conta de aguar jasmins.

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