Airton saiu da boate cambaleando, não viu quando um automóvel quase o pegou. Não viu, mas ouviu:
- Sai da frente, ó palhaço!
Riu sozinho, porque nem levou susto. Olhou para o alto, viu uma porção de janelas iluminadas, como se fossem manchetes da solidão que domina Copacabana, às quatro da madrugada. Queria ir pra casa, mas não se lembrava onde morava. Seus amigos quiseram colocá-lo num táxi:
- Deixa que sei ir sozinho.
Veio andando, andando, sem rumo certo, duas moças o abordaram:
- Está sem sono, meu bem?
Airton disse um palavrão, ouviu dois, saiu resmungando, esbarrou num guarda:
- Tem fogo aí, ô meu chapa?
O guarda acendeu seu cigarro, aproveitou pra filar um, tentou puxar um papo mas Airton preferiu continuar andando. Agora o dia já estava clareando, o sol vermelho esticava as sombras de algumas pessoas que começavam a sair e ele ainda nem tinha voltado. Sentou-se no degrau de um edifício, chegou um homem pra reclamar, dizendo que era contra o regulamento. Airton achou graça do regulamento, porque o homem era um lavador de automóveis e estava completamente nu. Levantou-se, sem discutir, levou de sobra os respingos da mangueira, mas não perdeu a pose:
- Quanto é a lavagem?
Continuou andando, entrou num boteco:
- Média, pão e manteiga.
Comeu devagarinho, pagou, misturou-se com a multidão de homens e mulheres apressados que tentavam condução para o trabalho. Sentiu-se diferente dos outros, quis ficar com pena deles, mas acabou com pena de si mesmo, quando percebeu que estava com um dia de atraso: os outros já estavam vivendo o dia seguinte e ele ainda estava no ontem.
- Táxi! Táxi!
Saltou na porta de casa, decidido de que este seria o seu último pileque. Abriu a porta com cuidado, entrou devagarzinho, sem fazer o menor ruído. A mulher já estava na cozinha, preparando o café das crianças:
- É você, Airton?
Não teve outro jeito:
- Sou eu. Tive de fazer serão novamente, acabei num bar com os amigos, juro que foi a ultima vez, meu bem.
A mulher não disse uma palavra, deu-lhe um copo de leite:
- Acho bom você dormir um pouco, deve estar muito cansado.
Ele passou pelo quarto dos meninos, deu um beijo na testa de cada um. O menorzinho acordou, bocejando:
- Você já vai trabalhar, papai?
Sentiu vergonha de ser marido, de ser pai, de ser chefe de família. Retirou-se para o seu quarto, vestiu o pijama, cerrou as cortinas, para que a escuridão envolvesse o seu drama. Ficou pensando em Nina, sua amante, comparou-a com a mulher. Há três anos que a conhecera e há duas semanas que havia decidido romper, definitivamente, para salvar o seu lar. Mas não conseguia esquecê-la, daí ter apelado para a bebida. Saía sozinho, todas as noites, voltava de madrugada, não sabia sequer se a mulher aceitava suas desculpas ou se o aceitava assim mesmo como era, porque o amava muito.
Não conseguia dormir, não conseguia trabalhar, não conseguia mais nada. Deitava-se às oito da manhã, levantava-se as duas. Há quinze dias não almoçava nem jantava em casa e sua família não merecia isso. No escritório, resistia a tentação de uma reconciliação com "a outra":
- Diz que não estou.
À noite era um desajustado, um homem incompatibilizado consigo mesmo, tentando lavar com a bebida um passado ainda recente. Entrava nas boates, juntava o seu drama a outros dramas semelhantes, na efervescência do álcool. Todos sorriam, mas ninguém levava o sorriso pra casa. Pior que o cansaço, a insônia. Levantou-se, trocou novamente de roupa, foi tomar café com a mulher:
- Você não vai dormir, meu bem?
Sentiu-se forte com a doçura e a compreensão da mulher:
- Não tenho sono, preciso decidir um negócio muito importante hoje.
Tomaram café, ele saiu apressado. À noite, trouxe balas para os filhos e flores para a mulher. Jantaram juntos, com luz de vela. De madrugada, ao lado de seis garrafas de champanha vazias, os dois estavam caídos, também vazios. Acordaram quase juntos, com o primeiro raio de sol. Ela apertou sua mão, com um sorriso feliz, ele disse, sem virar o rosto do chão:
- Meu Deus, já é dia claro, tenho de voltar pra casa!
Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante, 1969.
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