quarta-feira, 20 de março de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) V

MEDITAÇÃO

A noturna lembrança consumida
Da tua horrível morte dolorosa,
Enevoa de lágrimas a vida...

E sinto a luz tornar-se duvidosa,
Tocando a minha fronte que lhe gasta
A seiva etérea, a fluída cor viçosa.

O meu olhar maldito logo afasta
O Ser que ás suas lágrimas empece,
E o perfil animado lhe desgasta!

O meu olhar as coisas anoitece...
E elas choram na sombra e na incerteza,
A minha própria dor... E eis que aparece,

Diante de mim, o Espectro da Tristeza...
E tudo transfigura... E eu fico a ver,
Como através da Morte, a Natureza...

O berço é cova. Que é nascer? Morrer.
Quem abre ao sol os olhos, escraviza
A alma, a luz espiritual do ser...

Um rio de emoção, em mim, desliza...
Para cantar se fez pequena fonte;
Seu canto é bruma pálida e indecisa.

E fito, de olhos tristes, o horizonte:
Nele me perco em névoa: sou distancia...
Intima cruz a erguer-se em tosco monte...

Vésper, sorriso de ouro, luz, fragrância
Da noite que amanhece, ao teu fulgor,
Vejo Espectros que são da minha infância...

Formas mortas que nem meu próprio Amor
Anima,--ele que dantes animava
A sombra, a pedra, as árvores em flor!

E como outrora tudo me encantava!
Como perdi no turbilhão dos dias
O sabor que nas coisas eu gostava!

Tristezas são fantasmas de alegrias...
E entre Fantasmas vivo... Ó meus amores,
Folhas mortas, outono, ventanias!...

Sombras da meia noite! Mãe das Dores
Em teu altar sozinho, na capela
Do monte sem romeiros e sem flores!

Ó Noite! Virgem triste! Erma Donzela!
Se eu fora sombra de alma adormecida,
Silencio de alma, solidão de estrela?...

Mas não; eu vivo e penso nesta Vida;
No Mal vitorioso e na Bondade
Quase sempre ultrajada e perseguida!

Vejo a Inocência ás mãos da Crueldade
Morta, desbaratada, e vejo a aurora
Alumiando esta negra, férrea idade!

Vejo um pequeno Anjinho que enamora
Meu comovido espírito encantado...
E divinos sorrisos ele chora,

E só de vê-lo, eu sinto-me sagrado!
E fica todo em flor meu coração,
Paraíso astral, Jardim de Deus, Sol nado!

E, súbito, lá vai: é sonho vão!
E sobre mim, aflita, a noite desce:
Maré cheia de treva e solidão.

E o sangue em minhas veias arrefece...
Á altura do meu rosto, vejo o Medo
Que, nos ermos crepúsculos, me empece!

E como tudo é sombra, dor, segredo!
De longe, aspectos de alma que nos falam;
De perto, brutas formas de rochedo!

Quantas intimas dores nos abalam!
Porque não há no mundo quem as ouça,
As dolorosas vozes que se calam!

Ó gente enamorada! Ó gente moça!
Que, de repente, ao túmulo baixais,
Qual o vosso pecado? a culpa vossa?

Ó Procissão das lágrimas, dos ais,
Diante de mim, passando eternamente
A caminho das sombras sepulcrais!

Dor sem fim, sem principio, dor presente,
Martirizando as almas, e sobre elas
O sorriso de Deus indiferente!

O Deus que põe na face das estrelas
Nodosa de sombra e enfeita com as flores
Da morte, as brancas Noivas e as Donzelas;

O Deus aceso em trágicos furores,
Que mata as criancinhas sem pecado
E parece viver das nossas dores,

E fez do nosso choro o mar salgado,
E fez da nossa angustia um ermo outeiro,
E sobre ele Jesus crucificado;

O Deus que me tornou prisioneiro,
E que transforma tudo quanto eu amo
Em desfeita visão de nevoeiro;

Ah, esse Deus que, quando por Deus chamo,
É profundo silencio, indiferença,
A própria sombra morta que eu derramo...

Remoto Deus--Fantasma, sem presença,
Que em matéria de dor edificou
As árvores, o Sol, a noite imensa,

E em doloroso barro levantou
Minha figura trágica e represa,
Num impotente, empedernido voo;

É o Deus do Abismo, o Pai da Natureza,
Noturno Deus da vida material,
Divindade da fúnebre Tristeza;

O Deus criador das Trevas, contra o qual
Sozinho, se ergue em mim, mas sem temor,
O meu divino Ser espiritual;

Meu Ser heroico aceso em puro amor!
Sol comovido, ardente meio dia,
Trespassando de luz a noite e a dor!

Meu Ser, onde se muda em alegria
A corpórea tristeza; onde a Matéria
Se faz alma perfeita de harmonia;

Meu Ser que afirma o Bem, ante a miséria
Das transitórias coisas; que levanta,
Contra a sombra do inferno, a Luz etérea!

Meu Ser espiritual que, alegre, canta,
Se, por ventura, eu choro desolado,
E que os Fantasmas lúgubres espanta;

Meu Ser criador do Espírito sagrado,
O Redentor das lágrimas, dos ais;
Senhor dum novo Olimpo sublimado...

Novo Orfeu nos Abismos infernais.

ESPERANÇA E TRISTEZA

Minha tristeza é pior que a tua dor.
Um dia, no teu ventre sentirás
Reencarnar para o mundo o teu amor:
A mesma alma, o mesmo olhar... verás!...

Eu sei que há de voltar; e assim terás
A alegria primeira, ainda maior...
E então, de novo, alegre ficarás;
Será primeiro o teu segundo amor!

Mas eu que, antes do tempo, já declino,
Quem sabe se verei o teu Menino,
Numa idade em que possa compreender?

E partirei talvez sem lhe deixar,
Na memória, esse interno e fundo olhar,
A comovida imagem do meu ser...

SOZINHO

Tarde. Vagueio só por um outeiro.
Sua Imagem quimérica flutua,
Diante de mim, no espaço: é nevoeiro
Vestindo de emoção a terra nua...

E como na minh'alma se insinua
Aquele etéreo Vulto... amor primeiro!
Ouço-o falar, lá fora, á luz da lua.
Vejo-o brincar na sombra do terreiro.

Apenas vêm meus olhos, neste mundo,
O seu perfil angélico, o seu fundo,
Misterioso, verde negro olhar...

Vejo uma estrela? É ele. Vejo um lírio?
É ele. Tudo é ele. E o meu delírio
É ele: é o seu espírito a cantar!

DEPOIS DA VIDA

Quando meu coração parar desfeito
Em sombra, na profunda sepultura,
E o meu ser, já fantástico e perfeito,
Vaguear entre o Infinito e a terra dura;

Quando eu sentir, enfim, todo o meu peito
A transformar-se em constelada Altura;
Eu, divino Fantasma, o claro Eleito,
O Enviado da Vida á Morte escura;

Quando eu for para mim minha esperança,
Meu próprio amor jamais anoitecido,
E a minha sombra apenas for lembrança;

Quando eu for um Espectro de Saudade,
Entre o luar e a névoa amanhecido,
Serei contigo, Amor, na Eternidade.

O ENCONTRO COM O RETRATO

Receio o teu encontro, pobre Mãe,
Com o retrato de teu Filho. Vais
Contemplar suas formas materiais,
O que pertence á morte e a mais ninguém...

Mas para que exaltar ainda mais
Aquela dor que é só do mundo? Tem
Paciência. Não o vejas. Olha bem:
De que servem as lágrimas e os ais?...

Essa dor não a ames, que é profana.
Sim: não adores nele a forma humana,
A ilusória aparência, o sonho vão...

Pois é verdade, ó Mãe, que tens presente
Seu imortal espírito inocente
Em ti mesma, em teu próprio coração!...

NA MINHA SOLEDADE

Aqui, por estes sítios onde nós
Vivemos; tu brincando no jardim;
Eu a ouvir encantado a tua voz
E vendo em ti um Anjo, um sonho, ao pé de mim;

Aqui, por estes vales de alegria
Enquanto tu viveste,
E agora escuras, armas terras de elegia
Batidas do nordeste,
Eu ando á minha sombra reduzido
E mais a tua Imagem.
E quem nos vê, de longe, diz entristecido:
Dois Espectros, além, vagueando na Paisagem...

A TUA IMAGEM

Os meus olhos abrigam como um templo,
Tua divina Imagem que os eleva
E os enche de pureza e santidade;
São os meus olhos íntimos, aqueles
Que entre as nuvens avistam, certas horas,
Asas de Anjos, relâmpagos de Deus,
E não meus pobres olhos materiais
Na cor, nos formas vãs crucificados.

E tu vives e falas nesse mundo,
Ao pé do qual meu corpo de tragédia
É sua antiga e vaga Nebulosa...

E em meu noturno espirito reboa
Aquela tua voz amanhecente
Que espalhava alegrias pelo ar.

E a tua voz divina, por encanto,
Se espelha em minhas lágrimas que ficam
Todas, por dentro, acesas num sorriso.

A lágrima vê tudo: a própria voz,
Pousando á sua turva superfície,
Nela desenha, em ondas, o seu Vulto.

Meu doloroso ser com tua Imagem
Eterna comunica. A minha vida
Na tua morte assim se continua...
Embora exista entre elas a distância
De sombras lampejantes, que separa
Nosso corpo mortal do nosso espirito.

E eu canto, e me deslumbro em minha dor!
De súbito, anoiteço, e me disperso,
E vejo-me Fantasma... e, a sós, divago
Pelos caminhos lúgubres da Morte...
E chego á porta em flor do teu sepulcro;
E uma alegria misteriosa vem
Dourar a sombra vã de que sou feito...

E esta alegria és tu... que me apareces!...
Minha segunda vida transcendente
Nasceu da tua Ausência que lhe imprime
O drama eterno, a ação divina e triste.

Tua morte refez meu ser: abriu-lhe
Novo sentido de alma; aquele olhar
Que no seio das lágrimas desperta,
E veste de infinito e de saudade
A tosca rocha bruta que se torna
Espirito vivente no crepúsculo:
Esfinge em cujos lábios a tristeza
Das coisas interroga a dor humana.

E vós, ó brutas coisas reviveis
Perante o meu olhar que vos penetra
De seu liquido lume visionário.
Tornastes a viver. As vossas almas
Que a minha dor primeira afugentou,
São presentes, de novo, em vosso corpo.
Ei-lo cismando, triste, á luz do luar,
Na projetada sombra que, a seus pés,
Desenha ignotas formas de silencio...
Ei-lo embebido em mística ternura,
Trêmulo de emoção, reverdecendo,
Esculpindo, no ar, melancolias...

E a tua Imagem paira sobre mim...
Todo eu palpito em ondas de ansiedade!
Abismo de emoção, em mim me perco!
E minh'alma exaltada e comovida,
Deste meu ser transborda e inunda tudo!
Arde no fogo virgem das estrelas,
Em cada humana lágrima cintila,
Chora nas nuvens, no ermo vento geme!

E julgo haver, meu Deus, ressuscitado
Da morte que sofri para nascer!

Sim: o meu berço é irmão do teu sepulcro;
Teu cadáver baixou aquele abismo
Donde subi outrora á luz da morte...
E lá tu me encontraste ainda em vida,
Na Aurora que precede o nascimento,
E parece dourar a nossa Infância...

Sinto que estou contigo em outro mundo.
Lá vivemos os dois em companhia,
Muito embora eu arraste sobre a terra,
Que teu cadáver, tão mimoso! esconde,
Esta minha Presença de aflição!

E beijo a tua Imagem, de joelhos...
E, em meu silencio, rezo... E a tua Imagem
Agora é grave, séria, quase triste,
Porque se fez sagrada além da Morte.

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

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