Com tantos lugares maiores e mais práticos, o menino achou de enfiar o amendoim exatamente no ouvido. Ouvido esquerdo, que foi o escolhido por comodidade, visto tratar-se de um menino canhoto.
A família, na Tijuca, em meio ao ajantarado do domingo, mesmo na hora em que o pai procurava uma sintonia melhor para escutar as corridas, ficou em pânico por causa de uma frase.
— Mãe — disse o menino que enfiara o amendoim no ouvido —, não estou ouvindo direito.
— Não está ouvindo direito, como? — indagou a mãe.
— Como? — inquiriu o menino dando uma inflexão diferente ao advérbio.
— Tua mãe está perguntando — intrometeu-se o pai abandonando, durante o que dizia, a sintonia no rádio — como é que você não está ouvindo direito. Entendeu?
— O senhor está perguntando se eu entendi? — voltou o menino, sentado no lugar ao lado da cabeceira.
— É, entendeu? — tornou o pai, levando à boca, com um ligeiro auxílio indicador-polegar, um pedaço de rabada.
— Entendeu o quê? — desentendeu o menino.
— Você está surdo? — gritou a irmã da outra cabeceira que ficava sob a Ceia do Senhor.
— Será que ninguém compreende o que eu falo? — vociferou o menino, já se pondo de pé. — Eu estou dizendo que não estou ouvindo direito.
— Você não está ouvindo direito? — insistiu a mãe, já tão aflita, que nem ligava mais para a rabada que esfriava no prato.
— O que foi que a senhora disse? — questionou o menino, retornando mais calmo ao seu assento.
— Esse menino está doido — admitiu o pai, voltando a tentar captar a narrativa dos páreos.
— Doido, não — contestou a mãe —, que ele não é maluco. Você é louco?
— Um pouco, mãe — respondeu o menino, pensando que a mãe lhe perguntara ser mouco.
— Não estou entendendo coisa nenhuma — reagiu a irmã numa irritação que mostrava que ela não entendia coisa nenhuma. — Fala comigo, Geraldinho. O que é que há?
— Falou comigo? — quis saber o menino que enfiara um amendoim no ouvido.
— Ele está crecré — resolveu a irmã, voltando ao caqui, que era muito mais interessante do que aquele diálogo absurdo.
Por alguns momentos, sem falar, todos comeram. Rabada ou caqui, feijão ou melancia. O silêncio era tão absoluto que o pai quase conseguiu achar a estação que procurava. Aí, o menino falou.
— Mãe, não estou ouvindo quase nada.
— Você já disse isso.
— O que foi que a senhora disse? — perguntou o menino que não estava ouvindo quase nada.
— Eu disse que você já disse que não está escutando direito! — irritou-se a mãe com a boca cheia de rabada.
— Como? — arguiu o menino com o ouvido cheio de amendoim.
— Eu acho melhor botar esse garoto de castigo — sugeriu o pai, com um dedo no dial, outro na polenta.
— Foi você quem falou, Terezinha? — perguntou o menino quase surdo ao ouvir a voz do pai.
— Foi o pai — volveu a irmã de cabelos longos e paciência cortada rente.
— O quê? — era o menino quem perguntava.
— Geraldinho! — bradou o pai, deixando o rádio de lado numa atitude tão absurda quanto esta estória. — Presta atenção. Olha para mim. Está escutando o que eu estou falando?
— O senhor está falando? — sussurrou o menino, preso entre as mãos do pai que lhe deixavam resquícios de rabada e polenta nos ombros.
— Estou! — gritou o pai, com um soco tão forte na mesa que fez a concha mergulhar no feijão.
— Não adianta. Eu não estou escutando quase nada — monocordiou o menino Geraldinho.
— Sabe o que é que eu acho? — ponderou a irmã. — Eu acho que o Geraldinho não está escutando direito.
— Se ele não está escutando direito — ponderou de novo a mãe — por que não avisa? Está escutando agora, Geraldinho?
— O quê?
— Está escutando agora? — repetiu mais alto o pai.
— Ãh?
— Está escutando? — esganiçou-se a irmã da cabeceira.
— Olhem. Eu já disse, e vocês não entendem. Eu não estou escutando direito — falou Geraldinho, já irritado.
— Ele não está escutando direito — traduziu a mãe, tomando uma visível atitude de defesa do filho que tinha colocado amendoim no ouvido.
— Mas por quê? — indagou o pai apoplético.
— Como? — murmurou o menino, numa pergunta a medo, pela notória apoplexia paterna que geralmente dava motivo a surras homéricas.
O pai esqueceu as corridas de Pernambuco, que tentava escutar, e pediu um lápis que lhe foi entregue pela filha, em meio às folhas de um caderno escolar. O pai escreveu, com letras de imprensa, a pergunta:
— DESDE QUANDO VOCÊ NÃO ESTÁ ESCUTANDO DIREITO?
Empurrou, com má vontade, o caderno para o lado do menino.
— Quer saber desde quando eu não estou escutando direito? — quis assegurar-se o menino de ter lido certo.
— É, Geraldinho — disse a mãe muito maternal —, desde quando?
— Como? — perguntou Geraldinho muito trêmulo.
O pai respondeu passando o dedo sob a frase que esfregava na cara do menino.
— Desde que eu enfiei um amendoim no ouvido.
Tiraram o amendoim, deram-lhe uma surra e o mandaram para fora da sala, em sinal de protesto.
O menino foi e voltou chorando, para se sentar na cadeira em frente à tevê.
— Fazendo a gente ficar doida, esse moleque! — comentou a mãe, tirando a mesa do ajantarado.
— Como? — perguntou o menino, que acabara de enfiar um amendoim no ouvido direito.
Fonte:
Chico Anysio. O Batizado da Vaca.
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