sexta-feira, 22 de março de 2019

Yehuda Amichai (Poemas Escolhidos)


DEUS CHEIO DE MISERICÓRDIA

Deus cheio de misericórdia
Se não fosse por Deus ser cheio de misericórdia 
Haveria misericórdia no mundo,
não só nele.
Eu, que colhi flores nas montanhas contemplando os vales. 
Eu, que carreguei corpos morro abaixo, 
Posso lhes dizer que o mundo não é vazio de misericórdia.

ESTATÍSTICAS

Por cada homem enfurecido 
há sempre dois ou três que o acalmam com palmadinhas nas costas,
por cada chorão, muitos mais limpadores de lágrimas,
por cada homem feliz, uma profusão de infelizes
a querer aquecer-se no calor da sua alegria.

E todas as noites pelo menos um homem
não consegue encontrar o caminho de casa
ou a sua casa mudou-se para outro lugar
e ele vagueia pelas ruas,
supérfluo.

Uma vez estava com o meu filho pequeno na estação
e um autocarro vazio passou por nós. 
O meu filho disse:
“Olha, um autocarro cheio de gente vazia.”

EU, QUE EU POSSA DESCANSAR EM PAZ

Eu, que eu possa descansar em paz 
- Eu, que ainda estou vivo, digo,
Que eu possa ter paz no que tenho de vida.
Eu quero paz agora mesmo, enquanto ainda estou vivo.
Não quero esperar como aquele piedoso que almejava uma perna
do trono de ouro do Paraíso, 
quero uma cadeira de quatro pernas aqui mesmo,
uma cadeira simples de madeira. 
Quero o resto da minha paz agora.
Vivi minha vida em guerras de toda espécie: 
batalhas dentro e fora,
combate cara a cara, a cara sempre a minha mesmo,
minha cara de amante, minha cara de inimigo.
Guerras com velhas armas, paus e pedras, 
machado enferrujado, palavras,
rasgão de faca cega, amor e ódio,
e guerra com armas de último forno metralham, 
míssil, palavras, minas terrestres explodindo, amor e ódio.
Não quero cumprir a profecia de meus pais de que vida é guerra.
Eu quero paz com todo meu corpo e em toda minha alma.
Descansem-me em paz.

HOMEM COM MOCHILA

Homem com mochila no mercado, Irmão,
Como você, sou homem burro, homem camelo,
Homem anjo. Sou como você.
Nossos braços são livres como asas.
Comparados conosco, todos os que carregam cestas
São escravos de escravos, sujeitos e humilhados.

Nós trocamos moedas por verduras frescas,
E para o esquecimento de nossas vidas compramos
Frutas e suas memórias, memória de campo e jardim,
Memória de cheiro da terra e do zumbir de abelhas em dia de calor.

Nós vimos uma mulher num vestido leve de verão
Antes de um amor longo e intenso,
Que determinará a sua vida. Ela não sabe ainda.
Nós sabemos. Em nossas costas
Carregamos o fruto da árvore da sabedoria.

Homem com mochila, você vive onde?
Eu sou como você, vivemos nas distâncias
Entre o prêmio e a punição.
E como nós vivemos? E quando à noite nós dormimos,
Em que sonhamos? Os que você ama,
Ainda vivem nos mesmos lugares?

Nossas mochilas, como para-quedas fechados
Em nossas costas, abrem de noite
pra podermos saltar, e pairar
Sobre a fragrância de lembrar e de esquecer.

NOSSA HISTÓRIA

Na história de nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península.
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros

O LUGAR EM QUE TEMOS RAZÃO

Do lugar em que temos razão
jamais crescerão
flores na primavera.

O lugar em que temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.

Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavratura.
E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve uma casa
que foi destruída.

O QUE APRENDI NAS GUERRAS

O que eu aprendi nas guerras
A marchar no ritmo de braços e pernas
Como bombas bombeando um poço vazio.

A marchar numa fila e sozinho no meio,
A enterrar em travesseiros,
Colchões de penas,
O corpo de uma mulher amada.
E a gritar “mamãe”
Quando ela não pode ouvir,
E a gritar por “deus”
Quando eu não creio nele,
E mesmo que acreditasse nele,
Eu não lhe falaria sobre a guerra,
Como a uma criança não se fala
Dos horrores adultos.

Que mais eu aprendi…
Aprendi
A reservar um caminho para a retirada.
Em terras estrangeiras,
Alugar um quarto em hotel
Perto do aeroporto ou da estação de trem.
E mesmo em cerimônias nupciais
Ficar sempre de olho na pequena porta
Com o sinal “exit” em letras vermelhas.

Uma batalha começa
Como tambores rítmicos para dança e termina
Com uma “retirada ao amanhecer”.
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim.

Mas acima de tudo,
Aprendi a sabedoria da camuflagem,
Não ficar visível, não ser reconhecido,
Não me distinguir daquilo que me cerca,
Nem mesmo de quem amo.
Que pensem que sou uma moita
Ou um carneiro,
Uma árvore, a sombra de uma árvore,
Uma cerca viva, uma pedra morta,
Uma casa, o canto de uma casa.

Se eu fosse um profeta
Teria diminuído o brilho da visão
Escurecido minha fé com papel negro

E quando chegar meu tempo,
Endossarei a camuflagem de gala do meu fim:
Com branco de nuvens, bastante azul de céu
E estrelas infinitas.

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