sábado, 5 de janeiro de 2013

Trova Ecológica 86 - Wagner Marques Lopes (MG)


José Francisco Cagliari (O Desabafo de um Lápis Preto)


– Olá, meu nome é John Faber; sou filho de dona Madeira e do senhor Grafite. O nome estrangeiro não é mania de grandeza não. Aliás, grandeza é o que eu não tenho. Além de ser magrinho, eu sou daquele tipo que ao nascer começa a ficar pequeno, ao invés de crescer.

Sou negro, mas não sofro com problemas de preconceito racial ou, pelo menos, não sofria até pouco tempo.

Meu avô sempre me contava suas histórias. Ele nascera e já começara a trabalhar num escritório. Lá ele fazia de tudo: escrevia cartas, fazia anotações, desenhos, contas. O que não fazia era assinar cheques; não tinha autoridade para isso. O pior, segundo ele, era trabalhar tanto e, quase sempre, a senhorita borracha desfazer tudo. Meu pobre avô se cansou e morreu. Depois de muitos “desapontamentos”, não aguentou e sucumbiu vítima de uma gilete. Ele, que sempre esteve com os papéis, acabou embrulhado no lixo. A senhorita borracha também faleceu, vítima do “desgaste” e do stress.

Eu, como sou novo ainda, não tenho emprego, mas creio que as coisas ainda vão piorar. Meu pai foi despedido. É que o chefe contratou uma lapiseira, e agora nós somos considerados obsoletos. Minha mãe está perdendo o lugar para o plástico. Minha irmã, a caneta, está passando muito mal. A tinta acabou e não há ninguém para doar para ela. Assim, a nossa geração está sendo “apagada” do mapa. E pensar que se não fossem meus ancestrais, Castro Alves não seria ninguém. É, a vida está dura. Bem que meu avô dizia: “ser um lápis é um risco”.

Fonte:
I Concurso Literário/ Associação Paulista do Ministério Público. 1.ed. Sao Paulo: Edições APMP, 2010. p.49

Patativa do Assaré (A Seca e o Inverno)


Na seca inclemente no nosso Nordeste
O sol é mais quente e o céu, mais azul
E o povo se achando sem chão e sem veste
Viaja à procura das terras do Sul 
Porém quando chove tudo é riso e festa
O campo e a floresta prometem fartura
Escutam-se as notas alegres e graves
Dos cantos das aves louvando a natura
Alegre esvoaça e gargalha o jacu
Apita a nambu e geme a juriti
E a brisa farfalha por entre os verdores
Beijando os primores do meu Cariri

De noite notamos as graças eternas
Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes
Na copa da mata os ramos embalam
E as flores exalam suaves perfumes
Se o dia desponta vem nova alegria
A gente aprecia o mais lindo compasso
Além do balido das lindas ovelhas
Enxames de abelhas zumbindo no espaço
E o forte caboclo da sua palhoça
No rumo da roça de marcha apressada
Vai cheio de vida sorrindo e contente
Lançar a semente na terra molhada
Das mãos deste bravo caboclo roceiro
Fiel prazenteiro modesto e feliz
É que o ouro branco sai para o processo
Fazer o progresso do nosso país

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Ives Gandra (Maior Diário Publicado em Forma de Soneto)


texto de Fátima Pires
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Ives Gandra da Silva Martins escreveu 365 sonetos, um por dia durante o ano de 2010

O advogado Ives Gandra da Silva Martins, da cidade de São Paulo – SP, é o novo recordista do RankBrasil. Durante o ano de 2010, ele escreveu um diário em forma de soneto, totalizando 365 composições poéticas.

Produzidos de 1º de janeiro a 31 de dezembro, os sonetos possuem métrica perfeita, seguindo a tradição das composições italianas (Petrarca) ou inglesas (shakespearianos).

O diário foi publicado no decorrer do ano passado, pela editora Pax&Spes, em quatro volumes, todos ilustrados, nas versões impressa e eletrônica, com o título ‘Diário em Sonetos – 365 dias, um soneto por dia’.

Segundo Ives Gandra, as composições foram inspiradas a partir de uma agenda para 2010, presenteada pela ex-diretora geral das Organizações Globo, Marluce Dias e seu marido Eurico.

“Prometi para eles que, pela beleza da agenda, escreveria um soneto por dia e assim realizei”, conta. Ives Martins explica que, como relata em alguns sonetos, nem sempre foi fácil encontrar um tema para cada dia.

“De rigor, o livro é um diário normal sobre os acontecimentos pessoais, profissionais, culturais, políticos e de exercício da cidadania: foi uma experiência curiosa, que se faz uma única vez na vida”, enfatiza.

Carreira profissional

 O recordista é professor emérito de várias universidades de São Paulo e professor honorário de universidades da Argentina, Peru, Romênia e Portugal.

Ele pertence a 31 Academias Jurídicas, Filosóficas, Culturais, Históricas no Brasil e Portugal, e possui 31 títulos acadêmicos universitários no Brasil, Argentina, Peru, Portugal e Romênia.

Tem estudos nestas áreas publicados em 21 países: Alemanha, Angola, Argentina, Bahamas, Bélgica, Brasil, Bulgária, Cabo Verde, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Inglaterra, Japão, México, Peru, Portugal, Romênia, Rússia, Taiwan e França.

Ives Martins é membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Brasileira de Filosofia. Também é membro da Academia Paulista de Letras, a qual presidiu nos anos de 2005 e 2006.

Outras publicações

Ives compôs seu primeiro soneto aos 13 anos, em 1948. No ano de 1956, aos 21, escreveu o primeiro livro de poesias, intitulado ‘Pelos caminhos do silêncio’.

Em 1965, com o poeta Domingos Carvalho da Silva, Ives Martins dividiu o prêmio dos Jogos Florais Brasil – Portugal. Seu poema ‘Marabá’, classificado pelos julgadores como épico, foi publicado no livro ‘Tempo de Lendas’.

Também fazem parte de suas publicações diversos livros de poesia, o romance ‘Um advogado em Brasília’ e a peça teatral ‘O caçador caçado’. Seus poemas vão além da língua portuguesa: foram traduzidos para o romeno e editado pela Ed. Akadamus-Budapeste (Poeme).

Soneto destaque
 Dos 365 sonetos que agora fazem parte do RankBrasil, o recordista Ives Martins escolhe um para destaque:

EU INFANTE

Meu ano acaba, volto a ser menino,
 Encantos descobrindo pela lua,
 Meus papagaios lúdicos empino
 Enquanto elevo aos céus minh’alma nua.

Retorno no rever de meu destino,
 Ao moleque que andava pela rua,
 Sonhando sonhos mil, em desatino,
 Sem nunca perceber que a vida é crua.

Meu passado repasso num instante
 E meu presente engolfo no futuro,
 Que se torna de mais em mais incerto,

Mas que não tira o brilho de eu infante,
 Que fazia ser claro o que era escuro
 E plantava jardins pelo deserto.

SP., 16/12/2010.

Fonte:
http://reinodosconcursos.com/?page_id=117

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 775)


Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional  

Despido, ao lado da cama, 
me peguei a me indagar, 
tendo nas mãos o pijama: 
- devo vestir ou guardar? 
–Amilton Maciel/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Está cegando Renato 
pois, um objeto qualquer 
só conhece pelo tato 
principalmente mulher. 
–Renato Caldas/RN– 

Uma Trova Premiada  

2011   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   BANDA   -   1º Lugar 

Tocou tuba a vida inteira 
na banda; e era tão viciado, 
que nos braços da enfermeira 
morreu feliz... Entubado. 
–Maurício Cavalheiro/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Quando conto uma piada, 
não há riso que resista, 
porque a sogra, coitada, 
é sempre a protagonista. 
–Jorge Murad/RJ– 

U m a P o e s i a  

A tal morte eu nem conheço, 
deve ser uma bandida... 
Leva o moço, leva o velho, 
com ela não tem saída... 
Morrer é a última coisa 
que eu quero fazer na vida... 
–Milton Souza/RS– 

Soneto do Dia  

O POBRE
–Francisco Macedo/RN– 

Vida de pobre é um mutirão de dor, 
uma loucura e grande confusão, 
quando tem carne nunca tem feijão, 
se tem feijão, de carne nem a cor. 

Compra uma “muda” de roupa todo ano 
e no sapato, tome meia-sola! 
No celular faz pose de gabola, 
mas pra ligar, está sem vez no plano... 

No “lotação” precisa paciência, 
arroto choco e tome flatulência, 
e, mesmo assim, com jeito vai levando... 

Sendo enxerido, segura a aparência, 
pose de rico, mas rei da inadimplência 
e vai em frente, as dores disfarçando.

Nilto Maciel (Da Bola de Meia ao Rádio)


As casas me pareciam enormes, tetos muito altos, chão de tijolo. Quando chovia ou o sol esquentava demais, brincávamos de bola na sala ou nos quartos. Os chutes desajeitados levavam a bola para o forro de pano. E nem adiantava cutucá-lo com vara. Nunca mais a veríamos. A não ser quando algum pedreiro ou pintor fosse trabalhar, levasse escada e atendesse nossos rogos. Ou quando papai resolvesse trocar o forro. Mesmo assim, as bolas estariam endurecidas, mofadas, rasgadas.

Mamãe tinha horror a bolas. Menos aquelas das cartilhas. Mas como viver sempre estudando? Se tirávamos notas baixas, três dias sem bola e sem bila. Ou três dias lendo bulas. No quintal não havia lugar para jogos e brincadeiras. Somente árvores, plantas e animais domésticos.  O gato caçava borboletas, ratos e passarinhos, a correr e saltar entre as bananeiras. Sumia, voltava, miava, brincava, desaparecia de novo ou para sempre. Até aparecer outro e ser adotado por nós. Um deles, Mimi, viveu muitos anos. Preto, olhos verdes, sapeca. Arranhava as bananeiras, dormia debaixo das árvores, escondia-se atrás das moitas, perdia-se por dias e dias, reaparecia a miar, faminto. Os porcos roncavam no meio da lama. As lagartas infestavam a horta. 

Poucos meninos conheciam bolas de couro. Em compensação, todos tinham “bolas-de-meia” ou “bolas-de-pano”. Meia usada, furada, imprestável para o uso apropriado. O recheio podia ser de algodão, pano ou papel. Essas bolas não serviam para jogos em chão de terra. E menos ainda em dias de chuva. Jogava-se nas calçadas. Quando não o futebol, os simples chutes de um lado para outro. As paredes serviam de anteparo e ao mesmo tempo de linhas de gol. Às vezes dois jogadores de cada lado. Um chute para cada “time”. Vencia quem fizesse primeiro determinado número de gols. Ao vencedor cabia, como “castigo”, jogar, em seguida, com outro “time” ou jogador. Eu conseguia ser um dos melhores nos chutes e nas defesas. Saltava, quase voava, em busca da bola. Os outros me elogiavam. E eu me enchia de amor-próprio. Sim, quando me tornasse rapaz, iria jogar no Fortaleza. Por muito tempo sonhei ser goleiro profissional. O sonho, no entanto, cedo se desfez, e de forma melancólica. Convidado para treinar num time de futebol de salão, logo no primeiro jogo perdemos por larga margem de gols. Um fracasso! Chamaram-me de frangueiro, e nunca mais me convidaram a entrar no pequeno estádio. Frustrado com o meu futebol, deixei o campo e me postei na plateia. De ator passei a espectador. Dediquei-me a recortar fotos de jogadores e times dos jornais e das revistas, principalmente O Cruzeiro. Recortava as "figuras” e colava num caderno velho. Dos futebolistas passei a atrizes de cinema, animais, carros, aviões, cidades.

No colégio dos padres salesianos havia um “muro” a separar os alunos internos dos externos. Aqueles vinham de outras cidades, sobretudo de Fortaleza. De famílias ricas. Nós, os da cidade, éramos quase todos pobres, filhos de comerciantes locais, como eu e meu irmão Edinardo, de funcionários públicos, etc. Nunca os dois lados se misturavam. Brincavam em pátios separados. Até na igreja, construção contígua ao colégio, a separação se manifestava. Os bancos destinados aos internos se situavam na parte mais próxima do altar. Apesar disso, fomos convidados a participar das brincadeiras e jogos de fim-de-semana no colégio. Entrávamos por um portão pequeno, que ia dar numa escolinha para crianças carentes, moradoras da periferia, como Potiú e Lages. Havia muitas mangueiras e o rio corria bem próximo a uma cerca. Os internos jogavam futebol num campo grande, com traves, rede, uniformes, chuteiras, bola de couro. Nós ficávamos ao largo, chutando uma bolinha ou outra, junto aos meninos mais pobres. A bola me pareceu excessivamente pesada. Nunca havia chutado uma bola de couro. Meus pés só conheciam as bolinhas de meia. O capim molhado e alto me feria os dedos. 

O primeiro rádio em nossa casa chegou muito tarde. Depois da Copa da Suécia. Posto sobre uma mesa na sala de estar, imperava imponente no meio da pouca mobília. Media mais de meio metro. Cheio de válvulas, esquentava feito um forno. Passou a ser meu entretenimento predileto à noite. Rodava o botão para lá e para cá, à cata de novidades, músicas, notícias e jogos de futebol. Anotava tudo: nomes dos times e jogadores do Rio, de São Paulo e da Europa. Decorava e copiava letras de músicas. Quando todos iam dormir, eu continuava a manejar os botões do rádio. Mamãe se aborrecia: fosse dormir, desligasse o aparelho. Eu abaixava o volume e aproximava da tela do alto-falante um ouvido. No entanto, as ondas iam e vinham em descompasso, e ora se tornavam inaudíveis, ora cresciam.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/220
Montagem da imagem com radio obtido em http://www.paulobranco.com, e a bola de meia em http://blog.cancaonova.com

Teatro de Ontem e de Hoje (Hoje É Dia de Rock)


Considerado pela crítica especializada o espetáculo mais importante de 1971, Hoje É Dia de Rock permanece em cartaz até 1973 e se torna um fenômeno de público raro na história do teatro brasileiro. Desde o processo de construção, que trabalha com a sensibilização coletiva, passando pela interpretação, que permite ao ator tocar o espectador, até a distribuição espacial do espetáculo, que invade a platéia, Hoje É Dia de Rock transforma o Teatro Ipanema em um altar de celebração.

Escrita por José Vicente, a peça conta a história de uma família do interior de Minas Gerais que vive o conflito entre a tradição e a modernidade, o ficar e o partir. O autor se utiliza da viagem como elemento preponderante para simbolizar a tensão entre o desejo de permanecer fiel às origens e o de conhecer outros lugares, em especial as grandes cidades. O protagonista é Pedro, o pai, músico e maestro de banda, que persegue um alvo místico durante todo o decorrer da peça: procura uma clave de cinco notas, ainda não descoberta. Rubens Corrêa, ator e diretor do espetáculo, identifica o teatro ritualístico como "uma ligação do inconsciente do indivíduo com o todo, com o cósmico", que faz brotar em cena a magia de cada ação do cotidiano. O crítico Yan Michalski define a linguagem do espetáculo como realismo mágico, comparando suas personagens à de Cem Anos de Solidão:

"Quando os intérpretes de Rock nos acolhem com pão, flores e fraternos sorrisos, dificilmente deixaremos de nos sentir atingidos, tão profundamente esta comunhão se acha enraizada numa situação dramática com a qual nos podemos identificar, e no olhar com o qual o autor, o diretor e os atores contemplam essa situação." A comunicação que o espetáculo estabelece com seu público leva-o a permanecer em cartaz mais de dois anos, como um fenômeno poucas vezes visto no teatro brasileiro. Segundo o crítico, "havia espectadores que iam revê-lo dezenas de vezes, como se estivessem visitando uma família pela qual se sentiam adotados, e a coleção de cartas que o grupo recebeu, autênticas declarações de amor, algumas das quais afirmando que o contato com o espetáculo havia mudado a sua vida, constitui uma documentação rara na história do nosso teatro".1 

A encenação de Hoje É Dia de Rock marca a trajetória do Teatro Ipanema não apenas pela retomada do teatro ritualístico, iniciado com Diário de um Louco, 1964, e desenvolvido em O Arquiteto e o Imperador da Assíria, 1970, mas principalmente porque sintetiza e simboliza esteticamente todo o ideário da contracultura. Nas palavras de Yan Michalski, é "um inigualável monumento teatral à mentalidade de 'paz e amor' ".2

Notas

1. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 50.

2. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 50.

Fonte:

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 5


Uma rica liteira esperava-me à Porta de Tung Tsen-Men, para eu atravessar Pequim até à residência militar de Camilloff. A Muralha agora, ao perto, parecia erguer-se até aos céus com o horror de uma construção bíblica: à sua base apinhava-se uma confusão de barracas, feira exótica, onde rumorejava uma multidão, e a luz de lanternas oscilantes cortava já o crepúsculo de vagas manchas cor de sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um bando de borboletas pousadas.

Senti-me triste; subi à liteira, cerrei as cortinas de seda escarlate todas bordadas a ouro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha Pequim, por essa porta babélica, na turba tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão, cavaleiros mongólicos armados de flechas, bonzos de túnica alvejante marchando um a um, e longas filas de lentos dromedários balançando a sua carga em cadência...

Daí a pouco a liteira parou. O respeito Sá-Tó correu as cortinas, e vi-me num jardim, escurecido e calado, onde, por entre sicômoros seculares, quiosque alumiados brilhavam com uma luz doce, como colossais lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de águas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lâmpadas de papel transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes brancos, apoiado a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para ele, eu sentia o passo inquieto das gazelas fugindo de leve sob as árvores...

O velho herói apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, segundo os usos chineses, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de porcelana onde entre rodelas finas de limão sobrenadavam esponjas brancas, num perfume forte de lilás...

Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff no boudoir da generala. Era alta e loira; tinha os olhos verdes das sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de seda branca pousava uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino de sândalo e de chá.

Conversámos muito da Europa, do niilismo, de Zola, de Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernhardt...

Pela galeria aberta penetrava um ar cálido que rescendia a heliotrópio. Depois ela sentou-se ao piano – e a sua voz de contralto quebrou até tarde os silêncios melancólicos da Cidade Tártara, com as picantes árias de «Madame Favart» e com as melodias afagantes do «Rei de Lahore». 

Ao outro dia cedo, encerrado com o general num dos quiosques do jardim, contei-lhe a minha lamentável história e os motivos fabulosos que me traziam a Pequim. O herói escutava, cofiando sombriamente o seu espesso bigode cossaco.

– O meu prezado hóspede sabe o chinês? – perguntou-me de repente, fixando em mim a pupila sagaz.

– Sei duas palavras importantes, general: «mandarim» e «chá».

Ele passou a sua mão de fortes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:

– «Mandarim», meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século XVI os navegadores do seu país, do seu belo país...

– Quando nós tínhamos navegadores... murmurei, suspirando.

Ele suspirou também, por polidez, e continuou:

– Que os seus navegadores deram aos funcionários chineses. Vem do seu verbo, do seu lindo verbo...

– Quando tínhamos verbos... – rosnei, no hábito instintivo de deprimir a Pátria. Ele esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho – e prosseguiu paciente e grave:

– Do seu lindo verbo «mandar»... Resta-lhe portanto «chá». É um vocábulo que tem um vasto papel na vida chinesa, mas julgo-o insuficiente para servir a todas as relações sociais. O meu estimável hóspede pretende esposar uma senhora da família Ti Chin-Fu, continuar a grossa influência que exercia o Mandarim, substituir, doméstica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra «chá». É pouco.

Não pude negar – que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz adunco de milhafre, pôs-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se diante do meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma senhora da família Ti Chin-Fu consentiria jamais em casar com um bárbaro; e seria impossível, terrivelmente impossível que o imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim...

– Mas porque mas recusaria? – exclamei. – Eu pertenço a uma boa família da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte de uma repartição pública... Possuo milhões... Tenho a experiência do estilo administrativo...

O general ia-se curvando com respeito a esta abundância dos meus atributos.

– Não é – disse ele enfim – que o imperador realmente o recusasse: é que o indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste ponto, é explícita e seca. 

Baixei a cabeça, acabrunhado.

– Mas, general – murmurei – eu quero livrar-me da presença odiosa do velho Ti Chin-Fu e do seu papagaio!... Se eu entregasse metade dos meus milhões ao Tesouro chinês, já que não me é dado pessoalmente aplicá-los, como mandarim, à prosperidade do Estado...? Talvez Ti Chin-Fu se calmasse...

O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o ombro:

– Erro, considerável erro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao Tesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondáveis das classes dirigentes: seriam dissipados em plantar jardins, coleccionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos, fornecer sedas às concubinas: não aliviariam a fome de um só chinês, nem reparariam uma só pedra das estradas públicas... Iriam enriquecer a orgia asiática. A alma de Ti Chin-Fu deve conhecer bem o Império: e isso não a satisfaria.

– E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer particularmente, como filantropo, largas distribuições de arroz à populaça faminta? É uma ideia...

– Funesta – disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. – A corte imperial veria aí imediatamente uma ambição política, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia... O meu bom amigo seria decapitado... É grave...

– Maldição! – berrei. – Então para que vim eu à China?

O diplomata encolheu vagarosamente os ombros; mas logo, mostrando num sorriso astuto os seus dentes amarelos de cossaco:

– Faça uma coisa. Procure a família de Ti Chin-Fu... Eu indagarei do primeiro-ministro, Sua Excelência o Príncipe Tong, onde pára essa prole interessante... Reúna-os, atire-lhes uma ou duas dúzias de milhões... Depois prepare ao defunto funerais régios. Funerais de alto cerimonial, com um préstito de uma légua, filas de bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças, plumas, andores escarlates, legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc., etc. Se depois de tudo isto a sua consciência não adormecer e o fantasma insistir...

– Então?

– Corte as goelas.

– Obrigado, general.

Uma coisa, porém, era evidente, e nela concordaram Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala: – que, para frequentar a família Ti Chin-Fu, seguir os funerais, misturar-me à vida de Pequim, eu devia desde já vestir-me como um chinês opulento, da classe letrada, para me ir habituando ao traje, às maneiras, ao cerimonial mandarim... 

A minha face amarelada, o meu longo bigode pendente favoreciam a caracterização – e quando na manhã seguinte, depois de arranjado pelos costureiros engenhosos da Rua Chá-Cua, entrei na sala forrada de seda escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de xarão negro, – a generala recuou como à aparição do próprio Tong-Tché, Filho do Céu!

Eu trazia uma túnica de brocado azul-escuro abotoada ao lado, com o peitilho ricamente bordado de dragões e flores de oiro: por cima um casabeque de seda de um tom azul mais claro, curto, amplo e fofo: as calças de cetim cor de avelã descobriam ricas babouches amarelas pespontadas a pérolas, e um pouco da meia picada de estrelinhas negras: e à cinta, numa linda faixa franjada de prata, tinha metido um leque de bambu, dos que têm o retrato do filósofo Lao-Tsé e são fabricados em Swa-Ton.

E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim ideias, instintos chineses: – o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas...

Alma e ventre eram já totalmente um mandarim. Não disse à generala: – Bonjour, Madame. – Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin...

– É adorável, é precioso! – dizia ela, com o seu lindo riso, batendo as mãozinhas pálidas.

Nessa manhã, em honra da minha nova encarnação, havia um almoço chinês. Que gentis guardanapos de papel de seda escarlate, com monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço começou por ostras de Ning-Pó. Exímias! Absorvi duas dúzias com um intenso regalo chinês. Depois vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de carneiro com picado de alho, um prato de nenúfares em calda de açúcar, laranjas de Cantão, e enfim o arroz sacramental, o arroz dos Avós...

Delicado repasto, regado largamente de excelente vinho de Chão-Chigne! E, por fim, com que gozo recebi a minha taça de água a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial, da primeira colheita de Março, colheita única, que é celebrada com um rito santo pelas mãos puras de virgens!... 

Duas cantadeiras entraram, enquanto nós fumávamos; e muito tempo, numa modulação gutural, disseram velhas cantigas dos tempos da Dinastia Ming, ao som de guitarras recobertas de peles de serpente, que dois tártaros agachados repenicavam, numa cadência melancólica e bárbara. A China tem encantos de um raro gosto...

Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a «Femme à Barbe»: e quando o general saiu com a sua escolta cossaca para o yamen do príncipe Tong, a informar-se da residência da família Ti Chin-Fu – eu, repleto e bem disposto, saí com Sá-Tó a ver Pequim.

A habitação de Camilloff ficava na Cidade Tártara, nos bairros militares e nobres. Há aqui uma tranquilidade austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos de aldeia sulcados pelas rodas dos carros; e quase sempre se caminha ao comprido de um muro, donde saem ramos horizontais de sicômoros.

Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um pónei mongol, com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo nela oscila: o toldo, as cortinas pendentes de seda, os ramos de plumas aos ângulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chinesa, coberta de brocados claros, a cabeça toda cheia de flores, fazendo girar nos pulsos dois aros de prata, com um ar de tédio cerimonioso. Depois é alguma aristocrática cadeirinha de mandarim, que coolies vestidos de azul, de rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os yamen do Estado; precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com inscrições bordadas, insígnias de autoridade; e dentro o personagem bojudo, com enormes óculos redondos, folheia a sua papelada ou dormita de beiço caído...

A cada momento parávamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas verticais de letras douradas sobre fundo escarlate: os fregueses, num silêncio de igreja, subtis como sombras, vão examinando as preciosidades – porcelanas da Dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swa-Ton: por vezes, uma fresca rapariga de olho oblíquo, túnica azul, e papoulas de papel nas tranças, desdobra algum raro brocado diante de um grosso chinês que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na pança: ao fundo o mercador, aparatoso e imóvel, escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de sândalo: e um perfume adocicado, que sai das coisas, perturba e entristece...

Eis aqui a muralha que cerca a Cidade Interdita, morada santa do imperador! Moços nobres vêm descendo do terraço de um templo onde se estiveram adestrando à frecha. Sá-Tó disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas cerimónias escolta o guarda-sol de seda amarela, com o dragão bordado, que é o emblema sagrado do imperador. Todos eles cumprimentaram profundamente um velho que ia passando, de barbas venerandas, com o casabeque amarelo que é o privilégio do ancião; vinha falando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era um príncipe do Império.
–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com 

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Velha Bizunga)


Colhido em Maricá, RJ
––––––––––-

Velha Bizunga,
 Casai vossa filha,
 Pra termos um dia
 De grande alegria.
 "Eu, minha filha,
 Não quero casar;
 Pois não tenho dote
 Para a dotar.

 Saiu a Preguiça,
 De barriga lisa:
 — Case a menina,
 Que eu dou a camisa.
 "Quem dê a camisa
 Decerto nós temos;
 Mas a saia branca,
 Donde a haveremos?

 Saiu a cabrita
 Do mato manca:
 — Case a menina,
 Darei a saia branca.
 "Quem dê saia branca
 De certo nós temos;
 Mas o vestido.
 Donde o haveremos?

 Saiu o veado
 Do mato corrido:
 — Case a menina,
 Que eu dou o vestido.
 "Quem dê o vestido
 De certo nós temos;
 Porém os brincos,
 Donde os haveremos?

 Saiu o cabrito
 Dando dois trincos:
 — Case a menina,
 Eu darei os brincos.
 "Quem dê os brincos
 De certo nós temos;
 Mas falta o ouro,
 Donde o haveremos?

 Saiu do mato
 Roncando o besouro
 — Case a menina,
 Qu’eu darei o ouro.
 "Quem nos dê o ouro
 De certo nós temos;
 Mas a cozinheira,
 Donde a haveremos?

 Saiu a cachorra
 Descendo a ladeira:
 — Casai a menina,
 Serei cozinheira.
 "Quem seja a cozinheira
 É certo já temos;
 Porém a mucama,
 Donde a haveremos?

 Saiu a traíra
 De baixo da lama;
 — Casai a menina,
 Serei a mucama.
 "Quem seja a mucama
 De certo nós temos,
 Porém o toucado,
 Donde o haveremos?

 Saiu o coelho
 Todo embandeirado:
 — Casai a menina,
 Darei o toucado.
 "Quem dê o toucado
 É certo que temos;
 Porém o cavalo,
 Donde o haveremos?

 Saiu do poleiro
 Muito teso o galo
 — Casai a menina,
 Que eu dou o cavalo.
 "Quem dê o cavalo
 De certo nós temos;
 Porém o selim,
 Donde o haveremos?

 Saiu um burro
 Comendo capim
 — Casai a menina,
 Darei o selim.
 "Quem dê o selim
 É certo que temos;
 Porém falta o freio,
 Donde o haveremos?

 Saiu uma vaca,
 Pintada no meio:
 — Casai a menina,
 Eu darei o freio.
 "Quem nos dê o freio
 Sim, senhores, temos;
 Porém a manta,
 Donde a haveremos?

 Saiu a onça
 Co‘a boca que espanta:
 — Casai a menina,
 Que darei a manta.
 "Quem nos dê a manta,
 É verdade temos;
 Mas quem será o noivo?
 Donde o haveremos?

 Saiu o tatu
 Com o seu casco goivo:
 — Casai a menina,
 Que eu serei o noivo.
 "O noivo tratado
 De certo nós temos;
 Porém o padrinho,
 Donde o haveremos?

 Saiu o ratinho
 Todo encolhidinho:
 — Casai a menina,
 Serei o padrinho.
 "Quem seja o padrinho
 De certo nós temos;
 Porém a madrinha.
 Donde a teremos?

 Saiu a cobrinha,
 Toda pintadinha:
 — Casai a menina,
 Serei a madrinha.
 "Quem seja a madrinha
 De certo nós temos;
 Mas quem pague o padre,
 Donde o haveremos?

 Saiu a cobrinha,
 Que era a comadre:
 — Casai a menina,
 Pagarei ao padre.
 Cada um dando o que pôde
 Todos se arrumaram:
 Chamado o padre,
 Logo se casaram.

 Caindo o sereno
 Por cima da grama,
 Debaixo da pedra
 Fizeram a cama,
 Se divertiram,
 Cantaram, dançaram;
 E diz o lagarto
 Que também tocaram.

 Se é verdade ou não,
 Isso lá não sei;
 O que me foi contado
 Eu também contei.

 O que sei só é
 Que tanto brincaram,
 Que todos também
 Se embebedaram.

 Até eu também
 Me achei na função,
 E pra casa truce
 De doce um buião.

Fonte:
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1954; Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (A Raposa e as Aves)


Contam que um dia a galinha estava ciscando embaixo de uma goiabeira quando lhe caiu uma goiaba na cabeça. A galinha levou um susto tremendo e gritou: 

— Có-có-có-có! Vamos fugir amigo galo! O mundo está acabando! 

— Quem lhe disse isso? — perguntou o galo. 

— Foi uma coisa que caiu no meu cocuruto — E os dois saíram correndo como doidos. Mais adiante encontraram o peru, o o galo disse: 

— Corra, amigo peru. O mundo está acabando! 

— Quem lhe disso isso, amigo galo?

— Foi a amiga galinha.

— E quem disse à amiga galinha?

— Foi uma coisa que caiu na cabeça dela.

Os três saíram correndo. Um pouco mais adiante encontraram o pato, e o peru convidou-o a correr, contando-lhe a história. O pato juntou-se a eles e correu também. Depois encontraram o ganso, a marreca, a saracura e outras aves e todos seguiram na carreira, até encontrarem a raposa.

— Fuja, amiga raposa! O mundo está se acabando!

— Quem lhe disse isso, amiga saracura?

— Foi a amiga marreca.

— Que lhe disse isso, amiga marreca?

— Foi o amigo ganso.

— Quem lhe disse isso, amigo ganso? 

— Foi o amigo pato.

Assim, de um em um, até chegar à galinha, que respondeu:

— Foi uma coisa que caiu no meu cocuruto.

— Então, vamos. Venham comigo — disse a raposa. E todos se puseram a correr de novo, até chegarem à casa da raposa.

— Entrem na minha casa e fiquem escondidos, — disse ela, parando à porta. Passado algum tempo, a raposa falou:

— Acho que não há mais perigo, mais é preciso cuidado. Agora, venham saindo, mais, um a um, quando eu chamar.

E ela ia chamando, um a um e comendo um a um... Não sobrou nada. Já vê que o mundo acabou mesmo para eles. A galinha tinha razão.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Machado de Assis (A Crítica Teatral. José de Alencar: Mãe)


ESCREVER crítica e crítica de teatro não e só uma tarefa difícil, é também uma empresa arriscada.

A razão é simples. No dia em que a pena, fiel ao preceito da censura, toca um ponto negro e olvida por momentos a estrofe laudatória, as inimizades levantam-se de envolta com as calúnias. Então, a crítica aplaudida ontem, é hoje ludibriada, o crítico vendeu-se, ou por outra, não passa de um ignorante a quem por compaixão se deu algumas migalhas de aplauso.

Esta perspectiva poderia fazer-me recuar ao tomar a pena do folhetim dramático, se eu não colocasse acima dessas misérias humanas a minha consciência e o meu dever. Sei que vou entrar numa tarefa onerosa; sei-o, porque conheço o nosso teatro, porque o tenho estudado materialmente; mas se existe uma recompensa para a verdade, dou-me por pago das pedras que encontrar em meu caminho.

Protesto desde já uma severa imparcialidade, imparcialidade de que não pretendo afastar-me uma vírgula simples revista sem pretensão a oráculo, como será este folhetim, dar-lhe-ei um caráter digno das colunas em que o estampo. Nem azorrague, nem luva de pelica; mas a censura razoável, clara e franca, feita na altura da arte da crítica.

Estes preceitos, que estabeleço como norma do meu proceder, são um resultado das minhas idéias sobre a imprensa, e de há muito que condeno os ouropéis da letra redonda, assim como as intrigas mesquinhas, em virtude de que muita gente subscreve juízos menos exatos e menos de acordo com a consciência própria. Se faltar a esta condição que me imponho, não será um atentado voluntário contra a verdade, mas erro de apreciação.

As minhas opiniões sobre o teatro são ecléticas em absoluto. Não subscrevo, em sua totalidade, as máximas da escola realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das abstrações românticas; admito e aplaudo o drama como forma absoluta do teatro, mas nem por isso condeno as cenas admiráveis de Corneille e de Racine.

Tiro de cada coisa uma parte, e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo. Entendo que o belo pode existir mais revelado em uma forma menos imperfeita, mas não é exclusivo de uma só forma dramática. Encontro-o no verso valente da tragédia, como na frase ligeira e fácil com que a comédia nos fala ao o espírito.

Com estas máximas em mão — entro no teatro. É este o meu procedimento; no dia em que me puder conservar nessa altura, os leitores terão um folhetim de menos, e eu mais um argumento de que cometer empresas destas, não é uma tarefa para quem não tem o espírito de um temperamento superior.

Sirvam estas palavras de programa.

Se eu quisesse avaliar a nossa existência moral pelo movimento atual do teatro, perderíamos no paralelo. Ou influência ou estação, ou causas estranhas, dessas que transformam as situações para dar nova direção às coisas, o teatro tem caminhado por uma estrada difícil e escabrosa.

Quem escreve estas palavras tem um fundo de convicção, resultado do estudo com que tem acompanhado o movimento do teatro; e tanto mais insuspeito, quanto que é um dos crentes mais sérios e verdadeiros desse grande canal de propaganda. Firme nos princípios que sempre adotou, o folhetinista que desponta, dá ao mundo, como um colega de além-mar, o espetáculo espantoso de um crítico de teatro que crê no teatro. E crê: se há alguma coisa a esperar para a civilização é desses meios que estão em contacto com os grupos populares. Deus me absolva se há nesta convicção uma utopia de imaginação cálida.

Estudando, pois, o teatro, vejo que a atualidade dramática não é uma realidade esplêndida, como a desejava eu, como a desejam todos os que sentem em si uma alma e uma convicção. Já disse, essa morbidez é o resultado de causas estranhas,
inseparáveis talvez — que podem aproximar o teatro de uma época mais feliz.

Estamos com dois teatros em ativo; uma nova companhia se organiza para abrir em pouco o teatro Variedades; e essa completará a trindade dramática. No meio das dificuldades com que caminha o teatro, anuncia-se no Ginásio um novo drama original brasileiro. A repetição dos anúncios, o nome oculto do autor, as revelações dúbias de certos oráculos, que os há por toda parte, prepararam a expectativa pública para a nova produção nacional.

Veio ela enfim.

Se houve verdade nas conversações de certos círculos, e na ânsia com que era esperado o novo drama, foi que a peça estava acima do que se esperava. Com efeito desde que se levantou o pano o público começou a ver que o espírito dramático, entre nós, podia ser uma verdade. E quando a frase final caiu esplêndida no meio da platéia, ela sentiu que a arte nacional entrou em um período mais avantajado de gosto e de aperfeiçoamento.

Esta peça intitula-se Mãe.

Revela-se à primeira vista que o autor do novo drama conhece o caminho mais curto do triunfo; que, dando todo o desenvolvimento à fibra da sensibilidade, praticou as regras e as prescrições da arte sem dispensar as sutilezas de cor local.
A ação é altamente dramática; as cenas sucedem-se sem esforço, com a natureza da verdade; os lances são preparados corri essa lógica dramática a que não podem atingir as vistas curtas.

Altamente dramática é a ação, disse eu; mas não pára aí; também altamente simples. Jorge é um estudante de medicina, que mora em um segundo andar com uma escrava apenas — a quem trata carinhosamente e de quem recebe provas de um afeto inequívoco. No primeiro andar, moram Gomes, empregado público, e sua filha Elisa. A intimidade da casa trouxe a intimidade dos dois vizinhos, Jorge e Elisa, cujas almas, ao começar o drama, ligam-se já por um fenômeno de simpatia.

Um dia, a doce paz, que fazia a ventura daquelas quatro existências, foi toldada por um corvo negro, por um Peixoto, usurário, que vem ameaçar a probidade de Gomes com a maquinação de um trama diabólico e muito comum, infelizmente, na humanidade. Ameaçado em sua honra, Gomes prepara um suicídio que não realiza; entretanto, envergonhado por pedir dinheiro, porque com dinheiro removia a tempestade iminente, deixa à sua filha o importante papel de salvá-lo e salvar-se.

Elisa, confiada no afeto que a une a Jorge vai expor-lhe a situação; esse compreende a dificuldade, e, enquanto espera a quantia necessária do Dr. Lima, um caráter nobre da peça, trata de vender, e ao mesmo Peixoto, a mobília de sua casa. Joana, a escrava, compreende a situação, e, vendo que o usurário não dava a quantia precisa pela mobília de Jorge, propõe-se a uma hipoteca; Jorge repele ao princípio o desejo de sua escrava, mas a operação tem lugar, mudando unicamente a forma de hipoteca para a de venda, venda nulificada desde que o dinheiro emprestado voltasse a Peixoto.

Volta a manhã serena depois de tempestade procelosa; a probidade e a vida de Gomes estão salvas. Joana, podendo escapar um minuto a seu senhor temporário, vem na manhã seguinte visitar Jorge. 

Entretanto o Dr. Lima tem tirado as suas malas da alfândega e traz o dinheiro a Jorge. Tudo vai, por conseguinte, voltar ao seu estado normal. Mas Peixoto, não encontrando Joana em casa, vem procurá-la à casa de Jorge, exigindo a escrava que havia comprado na véspera. O Dr. Lima não acreditou que se tratasse de Joana, mas Peixoto, forçado a declarar o nome, pronuncia-o. Aqui a peripécia é natural, rápida e bem conduzida; o Dr. Lima ouve o nome, dirige-se para a direita por onde acaba de entrar Jorge.

— Desgraçado, vendeste tua mãe!

Eu conheço poucas frases de igual efeito. Sente-se uma contração nervosa ao ouvir aquela revelação inesperada. O lance é calculado com maestria e revela pleno conhecimento da arte no autor.

Ao conhecer sua mãe, Jorge não a repudia; aceita-a em face da sociedade, com esse orgulho sublime que só a natureza estabelece e que faz do sangue um título. Mas Joana, que forcejava sempre por deixar corrido o véu do nascimento de Jorge, na hora que este o sabe, aparece envenenada. A cena é dolorosa e tocante, a despedida para sempre de um filho, no momento em que acaba de conhecer sua mãe, e por si uma situação tormentosa e dramática.

Não é bem acabado este tipo de mãe que sacrifica as carícias que poderia receber de seu filho, a um escrúpulo de que a sua individualidade o fizesse corar. 

Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette Stowe — fundado no mesmo teatro da escravidão. Os tipos acham-se ali bem definidos, e a ligação das frases não pode ser mais completa. O veneno que Joana bebe, para aperfeiçoar o quadro e completar o seu martírio tocante, é o mesmo que Elisa tomara das mãos de seu pai, e que a escrava encontrou sobre uma mesa em casa de Jorge, para onde a menina o levara.

Há frases lindas e impregnadas de um sentimento doce e profundo; o diálogo é natural e brilhante mas desse brilho que não exclui a simplicidade, e que não respira o torneado bombástico.

O autor soube haver-se com a ação, sem entrar em análise. Descoberta a origem de Jorge, a sociedade dá o último arranco em face da natureza, pela boca de Gomes, que tenta recusar sua filha prometida a Jorge.

Repito-o: o drama é de um acabado perfeito, e foi uma agradável surpresa para os descrentes da arte nacional. Ainda oculto o autor, foi saudado por todos com a sua obra; feliz que é, de não encontrar patos no seu Capitólio. A Sr.ª Velluti e o Sr. Augusto disseram com felicidade os seus papéis; a primeira, dando relêvo ao papel de escrava com essa inteligência e sutileza que completam os artistas; o segundo, sustentando a dignidade do Dr. Lima na altura em que a colocou o autor. A Sr. ª Ludovina não discrepou no caráter melancólico de Elisa; todavia, parecia-me que devia ter mais animação nas suas transições, que é o que define o claro-escuro. O Sr. Heller, pondo em cena o caráter do empregado público, teve momentos felizes, apesar de lhe notar uma gravidade de porte, pouco natural, às vezes.

Há um meirinho na peça desempenhado pelo Sr. Graça, que corno bom ator cômico, agradou e foi aplaudido. O papel é insignificante, mas aqueles que têm visto o distinto artista, adivinham o desenvolvimento que a sua veia cômica lhe podia dar. Jorge foi desempenhado pelo Sr. Paiva que, trazendo o papel a altura de seu talento, fez-nos entrever uma figura singela e sentimental. O Sr. Militão completa o quadro com o papel de Peixoto, onde nos deu um usurário brutal e especulador.

A noite foi de regozijo para aqueles que, amando a civilização pátria , estimam que se faça tão bom uso da língua que herdamos. Oxalá que o exemplo se espalhe. 

Na próxima revista tocarei no teatro de S. Pedro e no das Variedades, se já houver encetado a sua carreira. Entretanto, fecho estas páginas, e deixo que o leitor, rigor da estação, vá descansar um pouco, não à sombra como Títiro, mas entre os nevoeiros de Petrópolis, ou nas montanhas da velha Tijuca.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.