quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Nilto Maciel (Poemas Escolhidos 2)

MINHA CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra não tem nada,
palmeiras nem sabiás.

Minha terra é feia, é triste,
como tristes são seus filhos.

Minha terra tem ruelas,
por onde não passam carros.

Minha terra tem subidas,
tem calvários, tem descidas.

Minha terra é tão distante,
que nem sei onde ela fica.

Minha terra não tem nada,
a não ser minha saudade.

CANTIGA DO POEMA PERDIDO

O verso que não escrevi,
levado em bolhas pelo vento,
coitado do meu pensamento!

O poema que se perdeu,
desbaratado pela fome
do despeito qualquer, sem nome.

Apenas pedaços de mim,
instantes fugidios, vãos,
mero abanar de minhas mãos.

Um verso a menos, nada mais,
poema desaparecido,
palavra sem nenhum sentido.

Serei o mesmo sonhador,
do mesmo jeito morrerei,
com a mesma dimensão irei.

Se o verso tal não rabisquei,
vivi o instante, o tempo, a vida
– e ela pra mim não foi perdida.

Ninguém nada perdeu com isso,
se o verso desapareceu
– coitado dele que morreu!

E quando eu desaparecer,
levado em bolhas pelo vento,
coitado do meu pensamento!

ACALANTO

Teus olhos me espreitam vazios
pelos punhos puídos da rede
- são aranhas tecendo teias
para o pesadelo de minha sede.

O range-range deste balanço
não me vem do pêndulo do corpo
- é teu desastre indo e vindo
no galho da velha mangueira.

E o medo que me acalanta
corre o espaço de tua loucura
- da cozinha, da fúria e da faca
ao sol de intensa brancura.

Em teus ombros cobertos de anos
pousavam as mesmas luzes
que te desenhavam gigante
ao chão repleto de cruzes,

e em tuas roupas esfarrapadas
o vento zunia o mapa e as eras
da terra dos antepassados,
das tribos, das matas e das feras.

És espantalho de muitas feições:
há das moscas da morte o rasto
enquanto voam por tua coroa
os nunca esperados urubus do repasto.

Primeiro a faca e a fúria comuns
com que iniciaste a terrível balada
- e já eras o predestinado que vai
para além da corda comprada.

Era uma faca de muito tamanho
com que se cortava o osso
da sopa de após o banho
e o mato que cobria o quintal.

E o peito que incendiaste
com ódios tão inclementes
era o mesmo que amamentava
o choro de teus descendentes.

Depois foi tua vez chegada
- a cozinha já não te cabia,
a faca já não te servia,
a fúria para ti se voltava.

A corda de fibra tesa
dos que morrem serenamente
- a alma como fogueira acesa
queimando os campos de junho.

E as mãos que a sustentavam
as mesmas das frutas colhidas
- a disposição de só se cansarem
depois de as forças perdidas.

Despedida nenhuma nos bolsos
pois que de fins sabias somente
o lado pobre e selvagem
- matar e morrer impunemente.

Agora me acordas e embalas
com teus olhos sanguinolentos
- as mãos rompendo os nós e os calos;
o corpo um pêndulo podre.

NAVEGADOR

Meus olhos cegos, que não veem naves,
navegam pelos mares das tormentas
– perdidos barcos, rotos, sem timão.

Meus olhos mudos só vislumbram vagas,
doida babel de tempestades feita,
monstros marinhos, oceano largo.

Meus olhos surdos só conseguem ver
cantos de dor, de morte e solidão,
a minha própria imensidão de ser.

SAUDADES

Tudo passa, tudo passa.
Até as paredes largas,
as janelas e as portas.

Passam porteiras, portais,
altas portas de madeira
e as calçadas cimentadas.

Escadas de musgo feitas,
de escorregadio verde,
lembranças de chuvas, ventos.

Passa a lâmpada na praça,
e o busto do herói exposto
ao sol e à solidão.

Jardins, flores e beleza,
margaridas, açucenas,
rosas vermelhas - perfumes.

Tudo passa, tudo passa.
Tempo de medo e espanto,
de crescer, ser gente grande.

Passa até essa tristeza,
passa até essa saudade
– quando eu nem sequer passava.

IMAGENS

Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.

Olho de novo para o céu.
Ha nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.

É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.

ASTRONOMIA


E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença.
Augusto dos Anjos


Morreu meu derradeiro sonho vão
naqueles olhos cor de tempestade,
naquele adeus que naufragou meu ser.

Minha ilusão partiu pela janela
e se perdeu nos céus da escuridão,
fugido pássaro de si criado,
anjo talvez, noturna sombra informe.

Agora sou apenas cidadão,
mero sujeito do objeto mundo,
olhos abertos para me viver.

Porém, persiste ao meu redor a noite
– escuro céu, estrelas apagadas –
e um som de dor ou de loucura vibra
nos meus ouvidos, sem nenhum sentido.

TESTAMENTO

Deixo meus teres, meus haveres todos,
minhas migalhas, trastes, bugigangas
para os museus de minha terra pobre.

Deixo meus livros, meus cadernos velhos
para as crianças, quem quiser viver
as emoções que a vida me ofertou.

Deixo meus versos, minhas rimas pobres
pros namorados mais apaixonados
e pros desesperados mais sinistros.

Deixo meu próprio desespero inútil
para abalar o dia-a-dia fútil
dos sossegados mais amordaçados.

Deixo o amor mais amoroso e puro
para a mulher mais bela e mais difícil
– a ninfa branca de meu bosque escuro.

Minha amargura deixo repartida
em cada taça reluzente ou baça
dos tristes seres que jamais gargalham.

A solidão mais minha deixo dada
para os que nunca sós viveram, foram;
para a ciranda, a festa, o carnaval.

Minha descrença lego piamente
aos pobres e iludidos pela santa
igreja madre do menino-deus.

E finalmente deixo minha vida
para os mortais iguais a mim, e aos vermes
– a doce vida amarga que adorei.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador. Poemas. Brasília/DF: Ed. Códice, 1996.

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