segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Coelho Neto (Mano) Parte 4


SAUDADE

PRIMAVERA

Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?

Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.

O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.

Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples; era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.

Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.

Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.

Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica

Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.

Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.

Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.

E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas. 

Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.

Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.

Primavera, que mal te fizemos nós?

Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.

Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?

Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.

Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.

Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!

Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?

E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendo-o na cova para sempre!

O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?

Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?

Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.

Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?

Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?

CONTRASTE 

Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.

Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.

O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.

Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.

Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.

Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.

Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.

Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.

Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.

Era o sinal da partida.

Uma voz sussurrou-me:

“Que iam fechar o caixão”.

Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado

Que fazer?

Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.

Retiraram-lhe o crucifixo do peito.

Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.

Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração. 

Um a um alguém foi apagando os círios.

Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?

Fecharam o caixão florido. Que mais?!

Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos. Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.

Levaram-no.

E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.

E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.

E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.

E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.

E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.

Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.

E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.

A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.

Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?

No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.

Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...

Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.

Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.

Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.

Pobre mãe!

Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se. 

Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.

Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.

Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.

E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?

Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.

E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.

E, para o seu espírito, foi melhor assim.

Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez...

A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!

E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeando-se do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.

Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.

E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

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