TEMPESTADE
Noite lúgubre.
Estortegam-se agoniadamente as árvores ao vento. Bátegas
rufam nas telhas. Por entre as frinchas das janelas afuzilam clarões.
Rápido esfria em regelo. À rajada mais forte o arvorado
rumoreja estabanadamente. A enxurrada chofra, gorgoleja torrencial, rasgada, de
quando em quando, por automóveis que passam.
Troam, estrepitam, ribombam trovões.
No bater das portas e das janelas tem-se a impressão de que
andam a forçar a casa.
Acendem-se luzes. São as crianças que despertaram
sobressaltadas com os fragores.
A estampido mais rijo ei-las de pé, espavoridas. Correm a
refugiar-se junto a nós.
E o estridor aumenta.
Deflagram explosões seguindo-se-lhes silêncio pávido.
De repente a chuva jorra cheia e grossa estalando na rua.
O vento uiva rondando o espaço; distancia-se, torna, envolve
a casa como matilha que se encarniça furiosamente em presa.
Luzem relâmpagos mais freqüentes. A própria luz das lâmpadas
vasqueja, freme em crispações de espamo e, a súbitas, apaga-se.
E a escuridão, que amedronta, laiva-se de livores convulsos.
Penso nos que se acham lá fora, à intempérie. Quantos!
Penso em ti!
Sentirás no teu túmulo o rigor da tormenta? Não creio.
Se tal se desse com mais razão terias sentido a que se
desencadeou em nossos corações quando, com a respiração já flébil, nos arquejos
dos últimos anélitos, tinhas em nós os olhos fitos e marejados de água.
Nada sentias - nem os soluços, nem as deprecações, nem as
vozes desesperadas com que, através de lágrimas, bradávamos para que não
partisses.
Se não sentiste naquele angustioso instante, quando ainda te
não arrancaras de todo a nossa esperança. preso à vida pelo olhar, que poderás
sentir agora, silêncio cm que jazes, nessa profundidade, a maior de todas as
profundidades, onde, se riso chega o nosso amor, não chegará, decerto, a raiva
das tempestades!
RAJADA
Como explicar tais surtos?
A mim mesmo, surpreso, lanço esta pergunta.
Que ele venha, invocado pela saudade, quando o coração, que
se não resigna, o chama, é natural. Não há túmulo que resista a tal reclamo,
pesem-lhe, embora, em cima, mármores e granito, metais e terra fúnera: o
prestígio do amor tudo consegue.
Se a gota de água perene abre sulcos e atravessa penhascos,
que não farão as lágrimas, muito mais poderosas, por virem de fonte divina?
Assim, compreende-se que a invocação do amor consiga trazer
da morte, em espírito, aqueles que desaparecem, mas que, de improviso,
espontaneamente, eles nos surjam, entrem-nos pelo coração... só se neles também
perdura o amor, se a saudade insiste em os prender à vida para que, por ela,
tornem, como a andorinha regressa do exílio ao ninho antigo, mal se dissolve a
neve que a repeliu para outro clima.
Ainda que o não esqueça instantes há, porém, em que o não
sinto, tanto ele se aquieta como adormecido no fundo da memória. Basta, porém,
um rumor leve de lembrança, uma subtil reminiscência para que ele desperte.
Assim, porém, como na vida quando os trabalhos nos solicitam
e saímos por eles, deixando em casa os filhos, cada qual naquilo que lhe
consente a idade - um, no estudo; outro, brincando e o pequenino no berço ou no
aconchego do colo maternal, sem que deles nos esqueçamos, posto que os não
tenhamos presentes, assim, também horas há em que nos abstraímos dos mortos e
se isso importasse em esquecimento da mesma ingratidão se poderiam igualmente
queixar os vivos.
Em tais momentos quem nos encontra no giro do trabalho,
falando a um e outro, rindo com eles, não dirá que toda essa aparência de
alegria ou indiferença assenta em melancolia.
Profundezas, quem as sonda? Penetrais, quem os alcança?
Julgue-se o oceano pela superfície que rebrilha ao sol em
frisos ondulantes, riso efêmero das águas que se desfaz em espumas.
Julgue-se a brenha pelo que dela se avista, verdura matizada
pela florescência dos ramos.
Julgue-se o infinito pelo azul que o olhar abrange. Quem
sabe lá o segredo do abismo, o mistério da selva, o arcano da altura.
O coração é a profundeza em que jazem os sentimentos, em que
se ocultam as paixões: amor e ódios, saudades e remorsos, todo o bem e todo o
mal.
A noite é bem a imagem da morte.
Vai-se o sol e as sombras parciais desaparecem, fundindo-se
na escuridão universal, que é a Treva. Vai-se a alma, que é luz, e o corpo,
sombra da terra, torna ao de que veio: a Terra.
E, assim como o sol, e retorno, refaz o dia, assim a alma,
depois do tramonto e da depuração, regressa à vida e ilumina outro ser, efêmero
como o dia.
Mas essa luz instantânea, luz que brilha e extingue-se,
relâmpago que apenas serve para mostrar-me o deserto, claridade que fulgura tão
só para que eu veja toda a imensa extensão da minha desventura, quem a acende,
e por que?
Como explicar tais surtos, esse ressurgimento do morto
dentro da minha saudade? Quem o invoca e que chamado atende? Será Deus que o
mutila para consolo da minha alma ou será ele próprio que se desprende da
Eternidade e, a súbitas como para certificar-se de que não morreu no meu amor,
desce em visita ao coração, que era o seu ninho? Não sei.
Na maior serenidade, tudo em calma: o céu azul! com o sol em
pleno, as árvores imóveis nos ramos as aves alacres cantando. De repente, sem
nuvem que a anuncie, sopra de longe, das montanhas, frias, ríspida rajada.
Curvam-se as frondes, sobe a poeira em torvelins, abrumam-se
os ares, negros bulcões empastam, escurecem o céu em cariz de borrasca.
Mas o sol esgueira um raio, abre, por fim, a larga alara de
ouro. Reacende-se a claridade, limpa-se de todo o azul, tornam os pássaros ao
vôo e a vida serenamente continua.
Assim, por vezes, no meu coração.
Trabalho na quiete do meu gabinete ou cruzo a multidão nas
ruas: movimento ou placidez, rumor de vida ou silêncio. Atento em dar forma a
uma idéia, torturando, polindo e repolindo a frase eu sigo distraído do
turbilhão tumultuário, tanto como folha morta levada ao léu da correnteza. Nele
não penso. Acha-se onde o amor o recolheu quando a morte o prostrou, no mais
recôndito do coração, onde a saudade conserva carinhosamente o seu tesouro.
De repente o coração me estremece, como abalroado e, no
alvoroço que o agita, transbordam os seus veios sentimentais e logo se me
marejam de lágrimas os olhos.
Que encontro tê-lo-á abalado assim, ao pobre coração tão
quieto, para que dele tanto se ressinta? Que rajada passou por ele toldando-lhe
a alegria, perturbando-lhe a tranqüilidade, como esses improvisos ventos das
montanhas frias que, inopinadamente, se levantam, sopram ríspidos carreando
nuvens que escurentam o sol, retorcem angustiadamente as árvores e tomam um céu
claro acumulado bulcão de cúmulos tempestuosos?
Rajada de saudade, vinda não se sabe de onde nem por que. De
onde? senão da morte; por que, senão por ciúme, desconfiança, talvez, de que
haja sido esquecido para surpreender a alma, apanhá-la distraída e ver se nela
o lugar que era, outrora, seu foi ocupado ou esquecido, enchendo-se de nova
alegria ou deixando em indiferença como os terrenos que, por abandono,
desaparecem em maninho agreste.
Como te enganas, espírito amoroso!
Vem! E sempre que apareças, baixando de onde assistes,
acharás o teu lugar florido de saudades, flores que não morrem nunca porque,
para regá-las, há no coração uma fonte que não cessa de correr e cada vez em
maior cópia.
Vem na vigília ou no sono, vem! e acharás o teu lugar tal
como o deixaste, e verificarás que és nele dono e único senhor; que nada do que
te pertencia, e te pertence, foi ali tocado que continuas a ser nele quem
dantes foste e agora és mais que nunca e vives e sobre o que de ti ficou não
tem poder a morte, porque é a mesma Vida, que não perece, Vida como a da
Eternidade, por ter a sua origem em Deus: a alma.
Vem ou como quando atendes carinhosamente ao apelo da minha
a saudade ou surgindo, em meio da minha alegria ou do afã do trabalho, como
costumas aparecer inesperadamente, sempre bem-vindo, para consolo e martírio da
minha saudade.
MEMENTO
Como se há de esquecer toda uma vida, que se prendia a
nossa, se o operado, a quem amputam um membro, durante muito tempo guarda a
impressão de ainda o possuir?
Se as dores ficam assim vivas, como se alguma das suas
raízes não houvesse sido extirpada, se o sofrimento persiste em reminiscências,
ainda depois de curado, como se não há de perpetuar, mesmo que a morte a leve?
Geme o enfermo dores que o não pungem só pelo hábito, em que
estava, de as sofrer; e não há de chorar o que não se conforma com a desdita de
haver perdido um ser amado?
FIM
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