III
A BALANDRA
Embora expulsos das terras da Guanabara, e destruída a nascente colônia, não desistiram os franceses do intento de se assenhorearem de novo da magnífica baía, onde outrora campeara o Forte Coligny.
Esperando azo de tentar a empresa, continuavam no tráfego do pau-brasil, que vinham carregar em Cabo Frio, onde o trocavam com os índios por avelórios, utensis de ferro e mantas listradas.
Havia naquela paragem uma espécie de feitoria dos franceses, que facilitava esse contrabando e mantinha a antiga aliança dos Tamoios com os Guaraciabas, ou guerreiros de cabelos do sol.
A metrópole incomodava-se com a audácia desses corsários, que chegaram algumas vezes a penetrar pela baía adentro e bombardear o coração da cidade.
Bem longe porém de prover de um modo eficaz à defensão de suas colônias, tinha por sistema deixar-lhes esse encargo, apesar de estar constantemente a sugar-lhes o melhor da seiva em subsídios e fintas de toda a casta.
Baldos de meios para expurgarem a costa da cáfila de piratas, os governadores do Rio de Janeiro, de tempos em tempos, quando crescia a audácia dos pichelingues a ponto de ameaçarem os estabelecimentos portugueses, arranjavam com os minguados recursos da terra alguma expedição, que saía a desalojar os franceses.
Mas estes voltavam, trazidos pela cobiça, e após eles os flamengos e os ingleses, que também queriam seu quinhão e o tomavam sem a menor cerimônia, arrebatando a presa ao que não tinha forças para disputá-la.
Felizmente a necessidade da defesa e o incentivo do ganho tinham despertado também o gênio aventureiro dos colonos. Muitos marítimos armaram-se para o corso, e empregaram-se por conta própria no cruzeiro da costa.
Fazendo presa nos navios estrangeiros, sobretudo quando tornavam para Europa, os corsários portugueses lucravam não somente a carregação de pau-brasil, que vendiam no Rio de Janeiro ou Bahia, mas além disso vingavam os brios lusitanos, adquirindo renome pelas façanhas que obravam-
Precisamente ao tempo desta crônica, andavam os mares do Rio de Janeiro muito infestados pelos piratas; e havia na ribeira de São Sebastião a maior atividade em se armarem navios para o corso, e municiarem os que já estavam nesse mister.
Uma lembrança vaga desta circunstância flutuava no espírito de Aires, embotado pela noite de insônia.
Afagava-o a esperança de achar algum navio a sair mar em fora contra os piratas; e estava resolvido a embarcar-se nele para morrer dignamente, como filho que era de um sargento-mor de batalha.
Ao chegar à praia, avistou o cavalheiro um batel que ia atracar. Vinha dentro, além do marinheiro que remava, um mancebo derreado à popa, com a cabeça caída ao peito em uma postura que revelava desânimo. Teria ele vinte e dois anos, e era de nobre parecer.
Logo que abordou em terra o batel, ergueu-se rijo o mancebo e saltou na praia, afastando-se rápido e tão abstrato que abalroaria com Aires, se este não se desviasse pronto.
Vendo que o outro passava sem aperceber-se dele, Aires bateu-lhe no ombro:
- Donde vindes a esta hora, e tão pesaroso, Duarte de Morais?
- Aires!... disse o outro reconhecendo o amigo.
- Eu vos contava entre os felizes; mas vejo que também a aventura tem suas névoas.
- E suas noites. A minha creio que de todo escureceu.
- Que falas são estas, homem, que vos desconheço.
Travou Duarte do braço de Aires, e voltando-se para a praia mostrou-lhe um barco fundeado perto da Ilha das Cobras.
- Vedes aquele barco? Há três dias que ainda era uma formosa balandra. Nela empreguei todo meu haver para tentar a fortuna do mar. Eis o estado a que o reduziram os temporais e os piratas: é uma carcaça, nada mais.
Aires examinava com atenção a balandra, que estava em grande deterioração. Faltava-lhe o pavês de ré e ao longo dos bordos apareciam largos rombos.
- Esmoreceis com o primeiro revés!
- Que posso eu? Donde tirar o cabedal para os reparos? E devia eu tentar nova empresa, quando a primeira tão mal surtiu-me?
- Que contais então fazer do barco? Vendê-lo, sem dúvida?
- Só para lenha o comprariam no estado em que ficou. Nem vale a pena de pensar nisso; deixá-lo apodrecer aí, que não tardará muito.
- Neste caso tomo emprestada a balandra, e vou eu à aventura.
- Naquele casco aberto? Mas é uma temeridade, Aires!
- Ide-vos a casa sossegar vossa mulher que deve estar aflita; o resto me pertence. Levai este abraço; talvez não tenha tempo de dar-vos outro cá neste mundo.
Antes que Duarte o pudesse reter, saltou Aires no batel, que singrou para a balandra,
IV
A CANOA
Saltando a bordo, foi Aires recebido ao portaló pela maruja um tanto surpresa da visita.
- Doravante quem manda aqui sou eu, rapazes; e desde já os aviso, que esta mesma tarde, em soprando a viração, fazemo-nos ao largo.
- Com o barco da maneira que está? observou o gajeiro.
Os outros resmungaram aprovando.
- Esperem lá, que ainda não acabei. Esta tarde pois, como dizia, conto ir mar em fora ao encontro do primeiro pechelingue que passar-me por davante. O negócio há de estar quente, prometo-lhes.
- Isso era muito bom, se tivesse a gente navio; mas numa capoeira de galinhas como esta?...
- Ah! não temos navio?... Com a breca! Pois vamos procurá-lo onde se eles tomam!
Entreolhou-se a maruja, um tanto embasbacada daquele desplante.
- Ora bem! continuou Aires. Agora que já sabem o que têm de fazer, cada um que tome o partido que mais lhe aprouver. Se lhe não toa a dança, pode-se ir à terra, e deixar o posto a outro mais decidido. Eia, rapazes, avante os que me seguem; o resto toca a safar e sem mais detença, se não mando carga ao mar.
Sem a mais leve sombra de hesitação, dum só e mesmo impulso magnânimo, os rudes marujos deram um passo á frente, com o ar destemido e marcial com que marchariam á abordagem.
- Bravo, rapazes! Podeis contar que os pichelingues levarão desta feita uma famosa lição. Convido-vos a todos para bebermos à nossa vitória, antes da terceira noite, na taberna do Simão Chantana.
- Viva o capitão!...
- Se lá não nos acharmos nessa noite, é que então estamos livres de uma vez desta praga de viver!...
- É mesmo! É uma canseira! acrescentou um marujo filósofo.
Passou Aires a examinar as avarias da balandra, e embora a achasse bastante deteriorada, contudo não demoveu-se por isso de seu propósito. Tratou logo dos reparos, distribuindo a maruja pelos diversos misteres; e tão prontas e acertadas foram suas providências, que poucas horas depois os rombos estavam tapados, o aparelho consertado, os outros estragos atamancados, e o navio em estado de navegar por alguns dias.
Era quanto dele exigia Aires, que o resto confiava à sorte.
Quando levantou-se a viração da tarde, a balandra cobriu-se com todo o pano e singrou barra fora.
Era meio-dia, e os sinos das torres repicavam alegremente. Lembrou-se Aires que estava a 14 de agosto, véspera da Assunção de Nossa Senhora, e encomendou-se à Virgem Santíssima.
Deste mundo não esperava mais cousa alguma para si, além de uma morte gloriosa, que legasse um triunfo à sua pátria. Mas o amigo de infância, Duarte de Morais, estava arruinado, e ele queria restituir-lhe o patrimônio, deixando-lhe em troca do chaveco desmantelado um bom navio.
Há momentos em que O espírito mais indiferente é repassado pela gravidade das circunstâncias. Colocado já no limiar da eternidade, olhando o mundo como uma terra a submergir-se no oceano pela popa de seu navio, Aires absorveu-se naquela cisma religiosa, que balbuciava uma prece, no meio da contrição da alma, crivada pelo pecado.
Uma vez chegou o mancebo a esclavinhar as mãos, e as ia erguendo no fervor de uma súplica; mas deu cobro de si, e disfarçou com enleio, receoso de que o tivesse percebido a maruja naquela atitude.
Dobrando o Pão d'Açúcar, com a proa para o norte, e o vento à bolina, sulcou a balandra ao longo da praia de Copacabana e Gávea. Conhecia Aires perfeitamente toda aquela costa com seus recantos, por tê-la freqüentemente percorrido no navio de seu pai, durante o cruzeiro que este fazia aos pichelingues.
Escolheu posição estratégica, em uma aba da Ilha dos Papagaios onde o encontramos, e colocou o velho gajeiro Bruno de atalaia no píncaro de um rochedo, para lhe dar aviso do primeiro navio que aparecesse.
Se o arrojado mancebo tinha desde o primeiro instante arrebatado a maruja pela sua intrepidez, a presteza e tino com que provera aos reparos da balandra, a segurança de sua manobra por entre os parcéis, e a sagacidade da posição que tomara, haviam inspirado a confiança absoluta, que torna a tripulação um instrumento cego e quase mecânico na mão do comandante.
Enquanto esperava, Aires vira do tombadilho passar uma canoinha de pescador, dirigida por uma formosa rapariga.
- Para aprender o meu novo ofício de corsário vou dar caça á canoa! exclamou o mancebo a rir. Olá, rapazes!
E saltou no bate!, acompanhado por quatro marujos que a um aceno esticaram os remos.
- Com certeza é espia dos calvinistas! Força, rapazes; carecemos de agarrá-la a todo o transe.
Facilmente foi a canoa alcançada, e trazida a bordo a rapariga, que ainda trêmula de medo, todavia já despregava dos lábios no meio dos requebros vergonhosos um sorriso brejeiro.
Vira ela e ouvira os chupões que lhe atirava à sorrelfa a boca de Aires apinhada à feição de beijo.
- Tocam a descansar, rapazes, e a refrescar. Eu cá vou tripular esta presa, enquanto não capturamos a outra.
Isto disse-o Aires a rir; e os marujos lhe responderam no mesmo tom.
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