Foi numa quieta cidadezinha entrevada, dessas que se alheiam do mundo com a discrição humilde dos musgos. Havia lá a gente do Moura, o arrecadador de taxas municipais do mercado. A morte arrecadou o Moura muito fora de tempo e propósito. Consequência: viúva e sete filhos na dependura.
Dona Teodora, quarentona que nunca soubera a significação da palavra descanso, viu-se de trabalhos dobrados. Encher sete estômagos, vestir sete nudezas, educar outras tantas individualidades... Se houvesse justiça no mundo, quantas estátuas a certos tipos de mães!
A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite” – no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal empanam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as moças passam a “tias”, e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada.
Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados. Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado. Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das escolinhas locais.
O mulherio de Santa Rita lembra os rizomas de gladíolos de certas casas de “cera e sementes” pouco freqüentadas. O dono do negócio os expõe numa cesta à porta, à espera do freguês eventual. Não aparece freguês nenhum – e o homem os vai retirando da cesta à proporção que murcham. Mas o estoque não diminui porque entram sempre rizomas novos. O dona da casa de “cera e sementes” de Santa Rita á a Morte.
A boa mãe revolta-se. Tinha culpa de terem vindo ao mundo as cinco meninas e dois meninos, e de nenhum modo admitia que elas virassem maracujás secos e eles se estiolassem na lembrança viciosa dos zes-ninguéns.
O problema não era totalmente insolúvel como os meninos, porque podia mandá- los para fora no momento oportuno – mas, as meninas? Como arranjar a vida de cinco moças numa terra em que havia seis para cada homem casadouro – e só cinco cadeirinhas?
A mais velha, Maricota, herdara o temperamento, a valentia materna. Estudou o que pôde e como pôde. Fez-se professora – mas já estava nos vinte e quatro e nem sombra de colocação. As vagas iam sempre para as de maior peso político, ainda que analfabetas.
Maricota, um peso-pluma, que poderia esperar?
Mesmo assim, dona Teodora não desanimava.
– Estudem. Preparem-se. De repente qualquer coisa acontece e vocês se arrumam.
Os anos, entretanto, passavam sem que a esperadíssima “qualquer coisa” viesse – e os apertos recresciam. Por muito que trabalhassem em cocadas, bordados de enxoval e costurinhas, a renda não se distanciava do zero.
Dizem que as desgraças gostam de vir juntas. Quando a situação dos Mouras atingiu o ponto perigoso da “dependura”, nova calamidade sobreveio. Maricota recebeu do céu um estranho castigo: a singularíssima doença que lhe atacou o nariz...
No começo não deram importância ao caso; só no começo, porque a doença entrou a progredir, com desorientação de todos os entendidos em medicina das redondezas. Nunca, verdadeiramente nunca, ninguém soubera por lá de coisa assim.
O nariz da moça crescia, engordava, engrouvinhava, lembrando o de certos bêbados incorrigíveis. A deformação nessa parte do rosto é sempre desastrosa. Dá à fisionomia um ar cômico. Todos se apiedavam da Maricota – mas riam-se sem querer.
A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. Aquele nariz foi virando o prato predileto do Comentário. Nos momentos de escassez de assunto era infalível porem-no à mesa.
– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É só levar a mão ao rosto e colher...
– E dizem que está crescendo...
– Se está! A moça já não põe o pé na rua – nem para a missa. Aquela negrinha, cria de dona Teodora, me disse que já não e nariz – é beterraba...
– Sério?
– Cresce tanto que se a coisa continua vamos ter um nariz com uma moça atrás e não uma moça com um nariz na frente. O maior, o principal, ficará sendo o rabanete...
Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo. A tal ponto chegou a de Santa Rita que quando aparecia alguém de fora na vacilavam em enfileirar entre as curiosidades locais a doença da moça.
– Temos várias coisas dignas de ver-se. Há a igreja, cujo sino tem um som sem igual no mundo. Bronze do céu. Há o pé de cacto da casa do major Lima, com quatro metros de roda na altura do peito. E há o rabanete da Maricota...
O visitante espantava-se, está claro.
– Rabanete?
O informante desfiava a crônica do famoso nariz com invençõezinhas cômicas de sua lavra. “Não poderei ver isso?” “Creio que não, porque ela já não tem ânimo de pôr o pé na rua – nem para a missa.”
Chegou o momento de recorrer aos médicos especialistas. Como por lá não houvesse nenhum, dona Teodora lembrou-se de um doutor Clarimundo, especialista de toas as especialidades na cidade próxima. Tinha de mandar-lhe a filha. O nariz de Maricota estava ficando clamoroso demais. Mas... mandar como?
A distância era grande. Viagem por água – pelo rio São Francisco, em cuja margem direita se assentava Santa Rita. O percurso custaria dinheiro; e custariam dinheiro a consulta, o tratamento, a estada lá – e onde o dinheiro? Como reunir os duzentos mil réis necessários?
Não há barreiras para o heroísmo das mães. Dona Teodora redobrou da faina, operou milagres de gênio e, por fim, reuniu o dinheiro da salvação.
Chegou o dia. Muito vexada de mostra-se em público depois de tantos meses de segregação, Maricota embarcou para a viagem de dois dias. Embarcou numa gaiola – o “Comandante Exupério” – e logo que se viu a bordo tratou de descobrir um cantinho em que ficasse a salvo da curiosidade dos passageiros.
Inutilmente. Deu logo nos olhos de vários, sobretudo nos dum moço de bom aspecto, que entrou a mirá-la com singular insistência. Maricota esgueirou-se de sua presença e, de bruços na amurada, fingiu-se absorta na contemplação da paisagem. Fraude pura, coitadinha. A única paisagem que via era a sua – a nasal. O passageiro, entretanto, não a largava.
– Quem é essa moça? Quis saber – e um de boca perdigotante, também embarcado em Santa Rita, regalou-se em contar permenorizadamente tudo quanto sabia a respeito.
O moço refranziu a testa. Reconcentrou-se a meditar. Por fim, seus olhos brilharam.
– Será possível? – murmurou em solilóquio, e resolutamente encaminhou-se na direção da triste criatura, absorvida na contemplação da paisagem.
– Perdão, minha senhora, eu sou médico e...
Maricota voltou para ele os olhos, muito vexada, sem saber o que dizer. Como um eco, repetiu:
– Médico?
– Sim, médico – e o seu caso está me interessando profundamente. Se é o que suponho, talvez que... Mas, venha cá – conte-me tudo – conte-me como isso começou. Não se vexe. Sou médico – e para os médicos não há segredos. Vamos.
Maricota, depois de alguma resistência, contou tudo, e à medida que falava o interesse do moço recrescia.
– Com licença – disse ele, e pôs a examinar-lhe o nariz, sempre com perguntas cujo alcance a moça não percebia.
– Como é seu nome? – atreveu-se a indagar Maricota.
– Doutor Cadaval.
A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente, ele insistia:
– Conte, conte...
Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação ela sentira e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim:
– Maravilhoso! Exclamou. Um caso único de boa sorte...
Tais exclamações desnortearam a doente. Maravilhoso? Que maravilhamento poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. O médico tentou sossegá-la.
– Perdoe-me, dona Maricota, mas o seu caso é positivamente extraordinário. De momento não posso firmar parecer – estou sem livros; mas macacos me lembram se o que a senhora tem não é um rinofima – um RINOFIMA, imagine!
Rinofima! Aquela palavra estranha, dita naquele tom de entusiasmo, em coisa nenhuma melhorou a situação de atrapalhamento de Maricota. O fato de sabermos o nome de uma doença não nos consola nem cura.
– E que tem isso? perguntou ela.
– Tem, minha senhora, que é uma doença raríssima. Pelo que sei a respeito, não se conhece um só caso em toda a América do Sul...
Compreende agora o meu entusiasmo de profissional? Médico que descobre casos únicos é médico de nome feito...
Maricota começou a compreender.
Longamente Cadaval debateu a situação, informando-se de tudo – da família, do objeto da viagem. Ao saber de sua ida à cidade próxima em busca do dr. Clarimundo, rebelou-se.
– Qual Clarimundo, minha senhora! Esses médicos da roça não passam de perfeitas cavalgaduras. Formam-se e afundam nos lugarejos, nunca lêem nada. Atrasadíssimos. Se a senhora vai consultá-lo, perderá o seu tempo e o seu dinheiro. Ora, o Clarimundo!
– Conhece-o?
– Claro que não, mas adivinho. Conheço a classe. O seu caso, minha senhora, é a maravilha das maravilhas, desses que só podem ser tratados pelos grandes médicos dos grandes centros – e estudado pelas academias. A senhora vai mas é para o Rio de Janeiro. Tive a sorte de encontrá-la e não a largo mais. Ora esta! Um rinofima destes nas mãos do Clarimundo! Tinha graça...
A moça alegou que a sua pobreza não lhe permitia tratar-se na capital. Eram paupérrimos.
– Sossegue. Eu farei todas as despesas. Um caso como o seu vale ouro. Rinofima! O primeiro observado na América do Sul! Isso é ouro em barra, minha senhora...
E tanto falou, e tanto gabou a beleza do rinofima, que Maricota deu de sentir uns começos de orgulho. Depois de duas horas de debates e combinações, já estava outra – sem vexame nenhum dos passageiros – e a exibir pelo tombadilho o seu rabanete com quem exibe algo fascinante.
O doutor Cadaval era um moço extremamente expansivo, dos que não param de falar. O empolgamento em que ficou fê-lo debater o assunto com todos a bordo.
– Comandante – disse ao capitão horas depois –, aquilo é uma preciosidade sem par. Único na América do Sul, imagine! O sucesso que vou fazer no Rio – na Europa. É dessas coisas que arrumam a carreira de um médico. Um rinofima! Um ri-no-fi-ma, capitão!...
Não houve passageiro que não se inteirasse da história do rinofima da moça – e o sentimento de inveja tornou-se geral. Evidentemente Maricota fora marcada pelo Destino. Possuía algo único, uma coisa de fazer a carreira de um médico e de figurar em todos os tratados de medicina. Muitos houve que instintivamente correram os dedos pelo nariz na esperança de apalpar um comecinho da maravilha...
Maricota, ao recolher-se à cabine, escreveu á mãe:
“Tudo está mudando da maneira mais esquisita, mamãe! Encontrei a bordo um médico distintíssimo que, ao dar com o meu nariz, abriu a boca no maior entusiasmo. Eu só queria que a senhora visse. Acha que é uma grande – uma grandíssima coisa, a coisa mais rara do mundo, única na América do Sul, imagine!
Disse que vale um tesouro, que para ele foi o mesmo que ter encontrado um tal diamante Cullinan. Quer que eu vá para o Rio de Janeiro. Paga tudo. Como aleguei que somos muitos pobres, prometeu que depois da operação me arranja um lugar de professora no Rio!... Até a vergonha lá se foi. Passeio com o nariz à mostra, alto.
E, coisa incrível, mamãe, todos me olham com inveja! Inveja sim – eu leio nos olhos de todos. Decore esta palavra: RINOFIMA. É o nome da doença. Ah, eu só queria ver a cara desses bobos de Santa Rita, que tanto caçoavam de mim – quando souberem...”
Maricota mal conseguiu dormir essa noite. Grande mudança de idéias se operava em sua cabeça. Qualquer coisa a advertia de que era chegado o momento de uma grande tacada. Tinha de tirar vantagens da situação – e como ainda não dera resposta definitiva ao dr. Cadaval, deliberou executar um plano.
No dia seguinte o médico abordou-a de novo.
– Então, dona Maricota, está resolvida, afinal?
A moça estava resolvidíssima; mas, boa mulher que era, fingiu.
– Não sei ainda. Escrevi à mamãe... Há a minha situação pessoal e a da minha gente. Para que eu vá ao Rio preciso ficar sossegada quanto a estes dois pontos. Tenho dois irmãos e quatro irmãs – e como é? Ficar lá no Rio sem eles, impossível. E como deixá- los ficar sozinhos em Santa Rita, se sou o esteio da casa?
O dr. Cadaval refletiu uns momentos. Depois disse:
– Os rapazes eu posso colocar facilmente. Já suas irmãs, não sei. Que idade têm elas?
– Alzira, a logo abaixo de mim, está com 25 anos. Muito boa criatura. Borda que é um primor. Bonitinha.
– Se tem essas prendas poderemos colocá-la numa boa casa de modas. E as outras?– Há a Anita, com 22, mas essa só sabe ler e escrever versos. Sempre teve um jeito extraordinário para a poesia.
O dr. Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria.
Há os empregos do governo, nos quais cabem até os poetas.
– Há a Olga, com 20 anos, que só pensa em casar. Essa não quer outro emprego. Nasceu para o casamento – e lá em Santa Rita está secando porque não há homens – todos emigram.
– Arranjaremos um bom casamento para Olga – prometeu o médico.
– Há a Odete, com 19 anos, que ainda não revelou posição para coisa nenhuma.
Boa criatura, mas muito criançola, bobinha.
– Vai ser outro casamento – sugeriu o médico. – Arranja-se. Arranjaremos a vida de todos.
O dr. Cadaval ia prometendo com aquela facilidade porque no íntimo não tinha intenção de colocar tanta gente. Poderia, sim, arrumar a vida de Maricota – depois de operá-la. Mas o resto da família que se fomentasse.
Assim não sucedeu, entretanto. As aperturas da vida tinham dado a Maricota um senso das realidades verdadeiramente totalitário. Percebendo que aquela oportunidade era a maior de sua vida, resolveu não deixá-la escapar. De modo que, ao chegar ao Rio, antes de entregar-se ao tratamento e exibir na Academia de Medicina o seu caso único, impôs condições.
Alegou que sem a irmã Alzira não tinha jeito de ficar sozinha na capital – e o remédio foi a vinda de Alzira. Mal pilhou lá a irmã, insistiu em colocá-la – porque não tinha o menor propósito ficarem as duas nas costas do médico. “Assim, a Alzira acanha-se e volta.”
Ansioso por dar início à exploração do rinofima, o médico pulou para arranjar a colocação da Alzira. E depois disso deu novos pulos para mandar vir e colocar a Anita. E depois da Anita chegou a vez de Olga. E depois de Olga chegou a vez de Odete. E depois de Odete chegou a vez de dona Teodora e dos dois rapazes.
O caso de Olga foi difícil. Casamento! Mas Cadaval teve uma idéia filha do desespero: intimou um seu ajudante no consultório, português quarentão de nome Nicéforo, a casar-se com a menina. Ultimatum da Moral.
– Ou casa-se ou vai para o olho da rua. Não quero mais saber de auxiliares solterões.
Nicéforo, tipo bastante pai-da-vida, coçou a cabeça mas casou-se – e foi o mais feliz dos Nicéforos.
A família já estava toda arrumada, quando Maricota se lembrou de dois primos. O médico, porém, resistiu.
– Não. Isso também é demais. Se continuar assim a senhora acaba forçando-me a arranjar um bispado para o padre de Santa Rita. Não é não.
A vitória do dr. Cadaval foi verdadeiramente estrondosa. Encheram-se as revistas médicas e os jornais com a notícia da solene apresentação à Academia de Medicina do belíssimo caso – único da América do Sul – dum maravilhoso rinofima, o mais belos dos rinofimas. As publicações estrangeiras acompanharam as nacionais.
O mundo científico de todos os continentes ficou sabendo de Maricota, do seu “rabanete” e do eminente doutor Cadaval Lopeira – luminar da ciência médica sul-americana.
Dona Teodora, felicíssima, não cessava de comentar o estranho curso dos acontecimentos.
– Bem se diz que Deus escreve direito por linhas tortas. Quando havia eu de imaginar, ao nos surgir aquela horrível coisa no nariz de minha filha, que era para o bem geral de todos!
Restava a parte última – a operação. Maricota, entretanto, ainda nas vésperas do dia marcado vacilava.
– Que acha, mamãe? Deixo ou não deixo que o doutor me opere?
Dona Teodora abriu a boca.
– Que idéia, menina! Claro que deixa. Pois há de ficar toda vida assim com esse escândalo na cara?
Maricota não se decidia.
– Podemos demorar um pouco mais, mamãe. Tudo quanto nos veio de bom saiu do rinofima. Quem sabe se nos rende mais alguma coisa? Há ainda o Zezinho a colocar – e o pobre Quindó, que nunca achou emprego...
Mas dona Teodora, arquifarta do rabanete, ameaçou de levá-la de volta para Santa Rita, se ela teimasse na asneira de retardar, por um só dia, a operação. E Maricota foi operada. Perdeu o rinofima, ficando com um nariz igual ao de todas as outras, apenas levemente enrugadinho em conseqüência dos enxertos de epiderme.
Quem positivamente desapontou foi a gente maldosa do lugarejo. O maravilhoso romance de Maricota era comentado em todas as rodinhas com grandes exageros – até com o exagero de que ela estava noiva do dr. Cadaval.
– Como a gente se engana neste mundo! – filosofou o farmacêutico. – Todos pensamos que aquilo fosse doença – mas o verdadeiro nome de tais rabanetes, sabem qual é?–?
– Sorte grande, minha gente! Sorte Grande da Espanha…
Fonte:
Dona Teodora, quarentona que nunca soubera a significação da palavra descanso, viu-se de trabalhos dobrados. Encher sete estômagos, vestir sete nudezas, educar outras tantas individualidades... Se houvesse justiça no mundo, quantas estátuas a certos tipos de mães!
A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite” – no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal empanam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as moças passam a “tias”, e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada.
Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados. Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado. Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das escolinhas locais.
O mulherio de Santa Rita lembra os rizomas de gladíolos de certas casas de “cera e sementes” pouco freqüentadas. O dono do negócio os expõe numa cesta à porta, à espera do freguês eventual. Não aparece freguês nenhum – e o homem os vai retirando da cesta à proporção que murcham. Mas o estoque não diminui porque entram sempre rizomas novos. O dona da casa de “cera e sementes” de Santa Rita á a Morte.
A boa mãe revolta-se. Tinha culpa de terem vindo ao mundo as cinco meninas e dois meninos, e de nenhum modo admitia que elas virassem maracujás secos e eles se estiolassem na lembrança viciosa dos zes-ninguéns.
O problema não era totalmente insolúvel como os meninos, porque podia mandá- los para fora no momento oportuno – mas, as meninas? Como arranjar a vida de cinco moças numa terra em que havia seis para cada homem casadouro – e só cinco cadeirinhas?
A mais velha, Maricota, herdara o temperamento, a valentia materna. Estudou o que pôde e como pôde. Fez-se professora – mas já estava nos vinte e quatro e nem sombra de colocação. As vagas iam sempre para as de maior peso político, ainda que analfabetas.
Maricota, um peso-pluma, que poderia esperar?
Mesmo assim, dona Teodora não desanimava.
– Estudem. Preparem-se. De repente qualquer coisa acontece e vocês se arrumam.
Os anos, entretanto, passavam sem que a esperadíssima “qualquer coisa” viesse – e os apertos recresciam. Por muito que trabalhassem em cocadas, bordados de enxoval e costurinhas, a renda não se distanciava do zero.
Dizem que as desgraças gostam de vir juntas. Quando a situação dos Mouras atingiu o ponto perigoso da “dependura”, nova calamidade sobreveio. Maricota recebeu do céu um estranho castigo: a singularíssima doença que lhe atacou o nariz...
No começo não deram importância ao caso; só no começo, porque a doença entrou a progredir, com desorientação de todos os entendidos em medicina das redondezas. Nunca, verdadeiramente nunca, ninguém soubera por lá de coisa assim.
O nariz da moça crescia, engordava, engrouvinhava, lembrando o de certos bêbados incorrigíveis. A deformação nessa parte do rosto é sempre desastrosa. Dá à fisionomia um ar cômico. Todos se apiedavam da Maricota – mas riam-se sem querer.
A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. Aquele nariz foi virando o prato predileto do Comentário. Nos momentos de escassez de assunto era infalível porem-no à mesa.
– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É só levar a mão ao rosto e colher...
– E dizem que está crescendo...
– Se está! A moça já não põe o pé na rua – nem para a missa. Aquela negrinha, cria de dona Teodora, me disse que já não e nariz – é beterraba...
– Sério?
– Cresce tanto que se a coisa continua vamos ter um nariz com uma moça atrás e não uma moça com um nariz na frente. O maior, o principal, ficará sendo o rabanete...
Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo. A tal ponto chegou a de Santa Rita que quando aparecia alguém de fora na vacilavam em enfileirar entre as curiosidades locais a doença da moça.
– Temos várias coisas dignas de ver-se. Há a igreja, cujo sino tem um som sem igual no mundo. Bronze do céu. Há o pé de cacto da casa do major Lima, com quatro metros de roda na altura do peito. E há o rabanete da Maricota...
O visitante espantava-se, está claro.
– Rabanete?
O informante desfiava a crônica do famoso nariz com invençõezinhas cômicas de sua lavra. “Não poderei ver isso?” “Creio que não, porque ela já não tem ânimo de pôr o pé na rua – nem para a missa.”
Chegou o momento de recorrer aos médicos especialistas. Como por lá não houvesse nenhum, dona Teodora lembrou-se de um doutor Clarimundo, especialista de toas as especialidades na cidade próxima. Tinha de mandar-lhe a filha. O nariz de Maricota estava ficando clamoroso demais. Mas... mandar como?
A distância era grande. Viagem por água – pelo rio São Francisco, em cuja margem direita se assentava Santa Rita. O percurso custaria dinheiro; e custariam dinheiro a consulta, o tratamento, a estada lá – e onde o dinheiro? Como reunir os duzentos mil réis necessários?
Não há barreiras para o heroísmo das mães. Dona Teodora redobrou da faina, operou milagres de gênio e, por fim, reuniu o dinheiro da salvação.
Chegou o dia. Muito vexada de mostra-se em público depois de tantos meses de segregação, Maricota embarcou para a viagem de dois dias. Embarcou numa gaiola – o “Comandante Exupério” – e logo que se viu a bordo tratou de descobrir um cantinho em que ficasse a salvo da curiosidade dos passageiros.
Inutilmente. Deu logo nos olhos de vários, sobretudo nos dum moço de bom aspecto, que entrou a mirá-la com singular insistência. Maricota esgueirou-se de sua presença e, de bruços na amurada, fingiu-se absorta na contemplação da paisagem. Fraude pura, coitadinha. A única paisagem que via era a sua – a nasal. O passageiro, entretanto, não a largava.
– Quem é essa moça? Quis saber – e um de boca perdigotante, também embarcado em Santa Rita, regalou-se em contar permenorizadamente tudo quanto sabia a respeito.
O moço refranziu a testa. Reconcentrou-se a meditar. Por fim, seus olhos brilharam.
– Será possível? – murmurou em solilóquio, e resolutamente encaminhou-se na direção da triste criatura, absorvida na contemplação da paisagem.
– Perdão, minha senhora, eu sou médico e...
Maricota voltou para ele os olhos, muito vexada, sem saber o que dizer. Como um eco, repetiu:
– Médico?
– Sim, médico – e o seu caso está me interessando profundamente. Se é o que suponho, talvez que... Mas, venha cá – conte-me tudo – conte-me como isso começou. Não se vexe. Sou médico – e para os médicos não há segredos. Vamos.
Maricota, depois de alguma resistência, contou tudo, e à medida que falava o interesse do moço recrescia.
– Com licença – disse ele, e pôs a examinar-lhe o nariz, sempre com perguntas cujo alcance a moça não percebia.
– Como é seu nome? – atreveu-se a indagar Maricota.
– Doutor Cadaval.
A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente, ele insistia:
– Conte, conte...
Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação ela sentira e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim:
– Maravilhoso! Exclamou. Um caso único de boa sorte...
Tais exclamações desnortearam a doente. Maravilhoso? Que maravilhamento poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. O médico tentou sossegá-la.
– Perdoe-me, dona Maricota, mas o seu caso é positivamente extraordinário. De momento não posso firmar parecer – estou sem livros; mas macacos me lembram se o que a senhora tem não é um rinofima – um RINOFIMA, imagine!
Rinofima! Aquela palavra estranha, dita naquele tom de entusiasmo, em coisa nenhuma melhorou a situação de atrapalhamento de Maricota. O fato de sabermos o nome de uma doença não nos consola nem cura.
– E que tem isso? perguntou ela.
– Tem, minha senhora, que é uma doença raríssima. Pelo que sei a respeito, não se conhece um só caso em toda a América do Sul...
Compreende agora o meu entusiasmo de profissional? Médico que descobre casos únicos é médico de nome feito...
Maricota começou a compreender.
Longamente Cadaval debateu a situação, informando-se de tudo – da família, do objeto da viagem. Ao saber de sua ida à cidade próxima em busca do dr. Clarimundo, rebelou-se.
– Qual Clarimundo, minha senhora! Esses médicos da roça não passam de perfeitas cavalgaduras. Formam-se e afundam nos lugarejos, nunca lêem nada. Atrasadíssimos. Se a senhora vai consultá-lo, perderá o seu tempo e o seu dinheiro. Ora, o Clarimundo!
– Conhece-o?
– Claro que não, mas adivinho. Conheço a classe. O seu caso, minha senhora, é a maravilha das maravilhas, desses que só podem ser tratados pelos grandes médicos dos grandes centros – e estudado pelas academias. A senhora vai mas é para o Rio de Janeiro. Tive a sorte de encontrá-la e não a largo mais. Ora esta! Um rinofima destes nas mãos do Clarimundo! Tinha graça...
A moça alegou que a sua pobreza não lhe permitia tratar-se na capital. Eram paupérrimos.
– Sossegue. Eu farei todas as despesas. Um caso como o seu vale ouro. Rinofima! O primeiro observado na América do Sul! Isso é ouro em barra, minha senhora...
E tanto falou, e tanto gabou a beleza do rinofima, que Maricota deu de sentir uns começos de orgulho. Depois de duas horas de debates e combinações, já estava outra – sem vexame nenhum dos passageiros – e a exibir pelo tombadilho o seu rabanete com quem exibe algo fascinante.
O doutor Cadaval era um moço extremamente expansivo, dos que não param de falar. O empolgamento em que ficou fê-lo debater o assunto com todos a bordo.
– Comandante – disse ao capitão horas depois –, aquilo é uma preciosidade sem par. Único na América do Sul, imagine! O sucesso que vou fazer no Rio – na Europa. É dessas coisas que arrumam a carreira de um médico. Um rinofima! Um ri-no-fi-ma, capitão!...
Não houve passageiro que não se inteirasse da história do rinofima da moça – e o sentimento de inveja tornou-se geral. Evidentemente Maricota fora marcada pelo Destino. Possuía algo único, uma coisa de fazer a carreira de um médico e de figurar em todos os tratados de medicina. Muitos houve que instintivamente correram os dedos pelo nariz na esperança de apalpar um comecinho da maravilha...
Maricota, ao recolher-se à cabine, escreveu á mãe:
“Tudo está mudando da maneira mais esquisita, mamãe! Encontrei a bordo um médico distintíssimo que, ao dar com o meu nariz, abriu a boca no maior entusiasmo. Eu só queria que a senhora visse. Acha que é uma grande – uma grandíssima coisa, a coisa mais rara do mundo, única na América do Sul, imagine!
Disse que vale um tesouro, que para ele foi o mesmo que ter encontrado um tal diamante Cullinan. Quer que eu vá para o Rio de Janeiro. Paga tudo. Como aleguei que somos muitos pobres, prometeu que depois da operação me arranja um lugar de professora no Rio!... Até a vergonha lá se foi. Passeio com o nariz à mostra, alto.
E, coisa incrível, mamãe, todos me olham com inveja! Inveja sim – eu leio nos olhos de todos. Decore esta palavra: RINOFIMA. É o nome da doença. Ah, eu só queria ver a cara desses bobos de Santa Rita, que tanto caçoavam de mim – quando souberem...”
Maricota mal conseguiu dormir essa noite. Grande mudança de idéias se operava em sua cabeça. Qualquer coisa a advertia de que era chegado o momento de uma grande tacada. Tinha de tirar vantagens da situação – e como ainda não dera resposta definitiva ao dr. Cadaval, deliberou executar um plano.
No dia seguinte o médico abordou-a de novo.
– Então, dona Maricota, está resolvida, afinal?
A moça estava resolvidíssima; mas, boa mulher que era, fingiu.
– Não sei ainda. Escrevi à mamãe... Há a minha situação pessoal e a da minha gente. Para que eu vá ao Rio preciso ficar sossegada quanto a estes dois pontos. Tenho dois irmãos e quatro irmãs – e como é? Ficar lá no Rio sem eles, impossível. E como deixá- los ficar sozinhos em Santa Rita, se sou o esteio da casa?
O dr. Cadaval refletiu uns momentos. Depois disse:
– Os rapazes eu posso colocar facilmente. Já suas irmãs, não sei. Que idade têm elas?
– Alzira, a logo abaixo de mim, está com 25 anos. Muito boa criatura. Borda que é um primor. Bonitinha.
– Se tem essas prendas poderemos colocá-la numa boa casa de modas. E as outras?– Há a Anita, com 22, mas essa só sabe ler e escrever versos. Sempre teve um jeito extraordinário para a poesia.
O dr. Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria.
Há os empregos do governo, nos quais cabem até os poetas.
– Há a Olga, com 20 anos, que só pensa em casar. Essa não quer outro emprego. Nasceu para o casamento – e lá em Santa Rita está secando porque não há homens – todos emigram.
– Arranjaremos um bom casamento para Olga – prometeu o médico.
– Há a Odete, com 19 anos, que ainda não revelou posição para coisa nenhuma.
Boa criatura, mas muito criançola, bobinha.
– Vai ser outro casamento – sugeriu o médico. – Arranja-se. Arranjaremos a vida de todos.
O dr. Cadaval ia prometendo com aquela facilidade porque no íntimo não tinha intenção de colocar tanta gente. Poderia, sim, arrumar a vida de Maricota – depois de operá-la. Mas o resto da família que se fomentasse.
Assim não sucedeu, entretanto. As aperturas da vida tinham dado a Maricota um senso das realidades verdadeiramente totalitário. Percebendo que aquela oportunidade era a maior de sua vida, resolveu não deixá-la escapar. De modo que, ao chegar ao Rio, antes de entregar-se ao tratamento e exibir na Academia de Medicina o seu caso único, impôs condições.
Alegou que sem a irmã Alzira não tinha jeito de ficar sozinha na capital – e o remédio foi a vinda de Alzira. Mal pilhou lá a irmã, insistiu em colocá-la – porque não tinha o menor propósito ficarem as duas nas costas do médico. “Assim, a Alzira acanha-se e volta.”
Ansioso por dar início à exploração do rinofima, o médico pulou para arranjar a colocação da Alzira. E depois disso deu novos pulos para mandar vir e colocar a Anita. E depois da Anita chegou a vez de Olga. E depois de Olga chegou a vez de Odete. E depois de Odete chegou a vez de dona Teodora e dos dois rapazes.
O caso de Olga foi difícil. Casamento! Mas Cadaval teve uma idéia filha do desespero: intimou um seu ajudante no consultório, português quarentão de nome Nicéforo, a casar-se com a menina. Ultimatum da Moral.
– Ou casa-se ou vai para o olho da rua. Não quero mais saber de auxiliares solterões.
Nicéforo, tipo bastante pai-da-vida, coçou a cabeça mas casou-se – e foi o mais feliz dos Nicéforos.
A família já estava toda arrumada, quando Maricota se lembrou de dois primos. O médico, porém, resistiu.
– Não. Isso também é demais. Se continuar assim a senhora acaba forçando-me a arranjar um bispado para o padre de Santa Rita. Não é não.
A vitória do dr. Cadaval foi verdadeiramente estrondosa. Encheram-se as revistas médicas e os jornais com a notícia da solene apresentação à Academia de Medicina do belíssimo caso – único da América do Sul – dum maravilhoso rinofima, o mais belos dos rinofimas. As publicações estrangeiras acompanharam as nacionais.
O mundo científico de todos os continentes ficou sabendo de Maricota, do seu “rabanete” e do eminente doutor Cadaval Lopeira – luminar da ciência médica sul-americana.
Dona Teodora, felicíssima, não cessava de comentar o estranho curso dos acontecimentos.
– Bem se diz que Deus escreve direito por linhas tortas. Quando havia eu de imaginar, ao nos surgir aquela horrível coisa no nariz de minha filha, que era para o bem geral de todos!
Restava a parte última – a operação. Maricota, entretanto, ainda nas vésperas do dia marcado vacilava.
– Que acha, mamãe? Deixo ou não deixo que o doutor me opere?
Dona Teodora abriu a boca.
– Que idéia, menina! Claro que deixa. Pois há de ficar toda vida assim com esse escândalo na cara?
Maricota não se decidia.
– Podemos demorar um pouco mais, mamãe. Tudo quanto nos veio de bom saiu do rinofima. Quem sabe se nos rende mais alguma coisa? Há ainda o Zezinho a colocar – e o pobre Quindó, que nunca achou emprego...
Mas dona Teodora, arquifarta do rabanete, ameaçou de levá-la de volta para Santa Rita, se ela teimasse na asneira de retardar, por um só dia, a operação. E Maricota foi operada. Perdeu o rinofima, ficando com um nariz igual ao de todas as outras, apenas levemente enrugadinho em conseqüência dos enxertos de epiderme.
Quem positivamente desapontou foi a gente maldosa do lugarejo. O maravilhoso romance de Maricota era comentado em todas as rodinhas com grandes exageros – até com o exagero de que ela estava noiva do dr. Cadaval.
– Como a gente se engana neste mundo! – filosofou o farmacêutico. – Todos pensamos que aquilo fosse doença – mas o verdadeiro nome de tais rabanetes, sabem qual é?–?
– Sorte grande, minha gente! Sorte Grande da Espanha…
Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha. Disponível em Portal São Francisco
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