EIS AQUI um livro feito de verdade e poesia, para dar-lhe o título das memórias de Goethe. Não são memórias; a verdade entra aqui pela sinceridade do homem, e a poesia pelos lavores do artista. Nem se diga que tais são as condições, essenciais de um livro de versos. Não contradigo a asserção, peço só que concordem não ser comum nem de todos os dias este balanço igual e cabal de emoção e de arte.
Magalhães de Azeredo não é um nome recente. Há oito para nove anos que trabalha com afinco e apuro. Prosa e verso, descrição e critica, idéias e sensações, a várias formas e assuntos tem dado o seu espírito. Pouco a pouco veio andando, até fazer-se um dos mais brilhantes nomes da geração nova, e ao mesmo tempo um dos seus mais sisudos caracteres. Quem escreve estas linhas sente-se bastante livre para julgá-lo, por mais íntima e direta que seja a afeição que o liga ao poeta das Procelárias. Um dos primeiros confidentes dos seus tentâmens literários. estimou vê-lo caminhar sempre, juntamente modesto e ambicioso, daquela ambição paciente que cogita primeiro da perfeição que do rumor público.
Já nesta mesma Revista, já em folhas quotidianas, deu composições suas, de vária espécie, e não há muito publicou em folheto a ode A Portugal, por ocasião do centenário dos Índias, acompanhada da carta a Eça de Queirós, a primeira das quais foi impressa na Revista Brasileira.
Este livro das Procelárias mostra o valor do artista. Desde muito anunciado entre poucos, só agora aparece, quando o poeta julgou não lhe faltar mais nada, e vem apresentá-lo simplesmente ao público. Desde as primeiras páginas, vêem-se bem juntas a poesia e a verdade: são as duas composições votivas, à mãe e à esposa. A primeira resume bem a influência que a mãe do poeta teve na formação moral do filho. Este verso:
Não me disseste: Vai! disseste: Eu vou contigo!
conta a história daquela valente senhora, que o acompanhou sempre e a toda parte, nos estudos e nos trabalhos, onde quer que ele estivesse, e agora vive a seu lado, ouvindo-lhe esta bela confissão:
Tu é tudo o que bom e nobre em mim existe,
e esta outra, com que termina a estrofe derradeira da composição, a um tempo bela, terna e bem expressa:
Duas vezes teu filho e tua criatura!
Eis por que me confesso, enternecidamente,
Ao pé de tais versos vêm os que o poeta dedicou à noiva: são do mesmo ano de 1895. O poeta convida a noiva ao amor e à luta da existência. Nestes, como naqueles, pede perdão dos erros da vida, fala do presente e do futuro, chega a falar da velhice, e da consolação que acharão em si de se haverem amado.
Ora, o livro todo é a justificação daquelas duas páginas votivas. Uma parte é a dos erros, que não são mais que as primeiras paixões da juventude, ainda assim veladas e castas, e algumas delas apenas pressentidas. O poeta, como todos os moços, conta os seus meses por anos. Em 1890 fala-nos de papéis velhos, amores e poesias, e compõe com isso um dos melhores sonetos da coleção. Já se dá por um daqueles que "riem só porque chorar não sabem". Certo é que há raios de luz e pedaços de céu no meio daquela sombra passageira. A sinceridade de tudo está na sensibilidade particular da pessoa, a quem o mínimo dói e o mínimo delicia. Uma das composições principais dessa parte do livro é a "Ode Triunfal", em que a comoção cresce até esta nota:
Ah! como fora doce
Morrer nesse delírio vago e terno,
Em teu seio morrer, — morrer num trono;
E ter teus beijos, como sonho eterno
Do meu eterno sonho...
E até esta outra, com que a ode termina:
Deixa-me absorto, a sós contigo, a sós!
Lá fora, longe, tumultua o mundo,
Em baldas lutas... Tumultue embora!
Que vale o mundo agora?
O mundo somos nós!
As datas, — e alguma vez a própria falta delas, — poderiam dar-nos a história moral daquele trecho da vida do poeta. Os seus mais íntimos suspiros antigos são de criança, como Musset dizia dos seus primeiros versos; assim temos o citado soneto dos "Papéis Velhos" e outras páginas, e ainda aquela dos "Cabelos Brancos", uns que precocemente encaneceram, cabelos de viúva moça, objeto de uma das mais doces elegias do livro. Há nele também várias sombras que passam como a do Livro Sagrado, como a da menina inglesa (Good Night), que uma tarde lhe deu as boas noites, e com quem o poeta valsara uma vez.
Um dia veio a saber que era morta, e que a última palavra que lhe saiu dos lábios foi o seu nome, e foi também a primeira notícia do estado da alma da moça; a sepultura é que lhe não deu, por mais que a interrogasse, senão esta melancólica resposta:
E eu leio sobre a sua humilde lousa:
Graça, beleza, juventude .... e Nada!
Cito versos soltos, quisera transcrever uma composição inteira, mas hesito entre mais de uma, como o "Carnaval", por exemplo, e tantas outras, ou como aquele soneto "Em Desalento", cuja estrofe final tão energicamente resume o estado moral expresso nas primeiras. Podeis julgá-lo diretamente:
Ando de mágoas tais entristecido.
Por mais que as minhas rebeldias dome ...
Tanta angústia me abate e me consome,
ue do meu próprio senso ora duvido.
Tudo por causa deste amor perdido,
Que a ti só, para sempre, escravizou-me;
Tudo porque aprendi teu caro nome,
Porque o gravei no peito dolorido.
Vês que eu sou, dizes bem, uma criança,
E já de tédio envelhecer me sinto,
E a mesma luz do sol meus olhos cansa;
Pois, como absorve um lenho o mar faminto,
Um corpo a tumba, a morte uma esperança,
Tal teu ser absorveu meu ser extinto.
Belo soneto, sem dúvida, feito de sentimento e de arte. Todo o livro reflete assim as impressões diferentes do poeta, e os versos trazem, com o alento da inspiração, o cuidado da forma. Fogem ao banal, sem cair no rebuscado. As estrofes variam de metro e de rima, e não buscam suprir o cansado pelo insólito. A educação do artista revela-se bem na escolha e na renovação. Magalhães de Azeredo dá expressão nova ao tema antigo, e não confunde o raro com o afetado. Além disso, — é supérfluo dizê-lo, — ama a poesia com a mesma ternura e respeito que nos mostra naquelas duas composições votivas do intróito. Pode ter momentos de desânimo como no "Soneto Negro", e achar que "é triste a decadência antes da glória", mas o espírito normal do poeta está no "Escudo", que
andou pela Terra Santa, e agora ninguém já pode erguer sem cair vencido; tal escudo, no conceito do autor, é o Belo, é a Forma, é a Arte, que o artista busca e não alcança, sem ficar abatido com isso, antes sentindo que, embora caia ignorado do vulgo, é doce havê-los adorado na vida.
Aqui se distinguem as duas fontes da inspiração de Magalhães de Azeredo, ou as duas fases, se parece melhor assim. Quando as sensações, que chamarei de ensaio, ditam os versos, eles trazem a nota de melancolia, de incerteza e de mistério, alguma vez de entusiasmo; mas a contemplação pura e desambiciosa da arte dá-lhe o alento maior, e ainda quando crê que não pode sobraçar o escudo, a idéia de havê-lo despegado da parede é bastante à continuação da obra. Será preciso dizer que esse receio não é mais que modéstia, sempre cabida, posto que a reincidência do esforço traz a esperança da vitória? E será preciso afirmar que a vitória é dos que têm, com a centelha do engenho, a obstinação do trabalho, e conseguintemente é dele também? Assim, ou pelas sensações do moço ou pela robustez do artista, este livro "é a vida que ele viveu" —como o poeta se exprime em uma página que li com emoção. Na composição final é o sentimento da arte que persiste, quando o poeta fala à musa em fortes e fluentes versos alexandrinos, tão apropriados à contemplação longa e mística da idéia.
Não quero tratar aqui do prosador a propósito deste primeiro livro de versos. De resto, os leitores da Revista Brasileira já o conhecem por esse lado, e sabem que Magalhães de Azeredo será em uma e outra forma um dos primeiros espíritos da geração que surge. Neste ponto, a ode A Portugal com a carta a Eça de Queirós, publicada em avulso, dão clara amostra de ambas as línguas do nosso jovem patrício.
Felizes os que entre um e outro século podem dar aos que se vão embora um antegosto do que há de vir, e aos que vêm chegando uma lembrança e exemplo do que foi ou acaba. Tal é o nosso Magalhães de Azeredo por seus dotes nativos, paciente e forte cultura.
Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.
Magalhães de Azeredo não é um nome recente. Há oito para nove anos que trabalha com afinco e apuro. Prosa e verso, descrição e critica, idéias e sensações, a várias formas e assuntos tem dado o seu espírito. Pouco a pouco veio andando, até fazer-se um dos mais brilhantes nomes da geração nova, e ao mesmo tempo um dos seus mais sisudos caracteres. Quem escreve estas linhas sente-se bastante livre para julgá-lo, por mais íntima e direta que seja a afeição que o liga ao poeta das Procelárias. Um dos primeiros confidentes dos seus tentâmens literários. estimou vê-lo caminhar sempre, juntamente modesto e ambicioso, daquela ambição paciente que cogita primeiro da perfeição que do rumor público.
Já nesta mesma Revista, já em folhas quotidianas, deu composições suas, de vária espécie, e não há muito publicou em folheto a ode A Portugal, por ocasião do centenário dos Índias, acompanhada da carta a Eça de Queirós, a primeira das quais foi impressa na Revista Brasileira.
Este livro das Procelárias mostra o valor do artista. Desde muito anunciado entre poucos, só agora aparece, quando o poeta julgou não lhe faltar mais nada, e vem apresentá-lo simplesmente ao público. Desde as primeiras páginas, vêem-se bem juntas a poesia e a verdade: são as duas composições votivas, à mãe e à esposa. A primeira resume bem a influência que a mãe do poeta teve na formação moral do filho. Este verso:
Não me disseste: Vai! disseste: Eu vou contigo!
conta a história daquela valente senhora, que o acompanhou sempre e a toda parte, nos estudos e nos trabalhos, onde quer que ele estivesse, e agora vive a seu lado, ouvindo-lhe esta bela confissão:
Tu é tudo o que bom e nobre em mim existe,
e esta outra, com que termina a estrofe derradeira da composição, a um tempo bela, terna e bem expressa:
Duas vezes teu filho e tua criatura!
Eis por que me confesso, enternecidamente,
Ao pé de tais versos vêm os que o poeta dedicou à noiva: são do mesmo ano de 1895. O poeta convida a noiva ao amor e à luta da existência. Nestes, como naqueles, pede perdão dos erros da vida, fala do presente e do futuro, chega a falar da velhice, e da consolação que acharão em si de se haverem amado.
Ora, o livro todo é a justificação daquelas duas páginas votivas. Uma parte é a dos erros, que não são mais que as primeiras paixões da juventude, ainda assim veladas e castas, e algumas delas apenas pressentidas. O poeta, como todos os moços, conta os seus meses por anos. Em 1890 fala-nos de papéis velhos, amores e poesias, e compõe com isso um dos melhores sonetos da coleção. Já se dá por um daqueles que "riem só porque chorar não sabem". Certo é que há raios de luz e pedaços de céu no meio daquela sombra passageira. A sinceridade de tudo está na sensibilidade particular da pessoa, a quem o mínimo dói e o mínimo delicia. Uma das composições principais dessa parte do livro é a "Ode Triunfal", em que a comoção cresce até esta nota:
Ah! como fora doce
Morrer nesse delírio vago e terno,
Em teu seio morrer, — morrer num trono;
E ter teus beijos, como sonho eterno
Do meu eterno sonho...
E até esta outra, com que a ode termina:
Deixa-me absorto, a sós contigo, a sós!
Lá fora, longe, tumultua o mundo,
Em baldas lutas... Tumultue embora!
Que vale o mundo agora?
O mundo somos nós!
As datas, — e alguma vez a própria falta delas, — poderiam dar-nos a história moral daquele trecho da vida do poeta. Os seus mais íntimos suspiros antigos são de criança, como Musset dizia dos seus primeiros versos; assim temos o citado soneto dos "Papéis Velhos" e outras páginas, e ainda aquela dos "Cabelos Brancos", uns que precocemente encaneceram, cabelos de viúva moça, objeto de uma das mais doces elegias do livro. Há nele também várias sombras que passam como a do Livro Sagrado, como a da menina inglesa (Good Night), que uma tarde lhe deu as boas noites, e com quem o poeta valsara uma vez.
Um dia veio a saber que era morta, e que a última palavra que lhe saiu dos lábios foi o seu nome, e foi também a primeira notícia do estado da alma da moça; a sepultura é que lhe não deu, por mais que a interrogasse, senão esta melancólica resposta:
E eu leio sobre a sua humilde lousa:
Graça, beleza, juventude .... e Nada!
Cito versos soltos, quisera transcrever uma composição inteira, mas hesito entre mais de uma, como o "Carnaval", por exemplo, e tantas outras, ou como aquele soneto "Em Desalento", cuja estrofe final tão energicamente resume o estado moral expresso nas primeiras. Podeis julgá-lo diretamente:
Ando de mágoas tais entristecido.
Por mais que as minhas rebeldias dome ...
Tanta angústia me abate e me consome,
ue do meu próprio senso ora duvido.
Tudo por causa deste amor perdido,
Que a ti só, para sempre, escravizou-me;
Tudo porque aprendi teu caro nome,
Porque o gravei no peito dolorido.
Vês que eu sou, dizes bem, uma criança,
E já de tédio envelhecer me sinto,
E a mesma luz do sol meus olhos cansa;
Pois, como absorve um lenho o mar faminto,
Um corpo a tumba, a morte uma esperança,
Tal teu ser absorveu meu ser extinto.
Belo soneto, sem dúvida, feito de sentimento e de arte. Todo o livro reflete assim as impressões diferentes do poeta, e os versos trazem, com o alento da inspiração, o cuidado da forma. Fogem ao banal, sem cair no rebuscado. As estrofes variam de metro e de rima, e não buscam suprir o cansado pelo insólito. A educação do artista revela-se bem na escolha e na renovação. Magalhães de Azeredo dá expressão nova ao tema antigo, e não confunde o raro com o afetado. Além disso, — é supérfluo dizê-lo, — ama a poesia com a mesma ternura e respeito que nos mostra naquelas duas composições votivas do intróito. Pode ter momentos de desânimo como no "Soneto Negro", e achar que "é triste a decadência antes da glória", mas o espírito normal do poeta está no "Escudo", que
andou pela Terra Santa, e agora ninguém já pode erguer sem cair vencido; tal escudo, no conceito do autor, é o Belo, é a Forma, é a Arte, que o artista busca e não alcança, sem ficar abatido com isso, antes sentindo que, embora caia ignorado do vulgo, é doce havê-los adorado na vida.
Aqui se distinguem as duas fontes da inspiração de Magalhães de Azeredo, ou as duas fases, se parece melhor assim. Quando as sensações, que chamarei de ensaio, ditam os versos, eles trazem a nota de melancolia, de incerteza e de mistério, alguma vez de entusiasmo; mas a contemplação pura e desambiciosa da arte dá-lhe o alento maior, e ainda quando crê que não pode sobraçar o escudo, a idéia de havê-lo despegado da parede é bastante à continuação da obra. Será preciso dizer que esse receio não é mais que modéstia, sempre cabida, posto que a reincidência do esforço traz a esperança da vitória? E será preciso afirmar que a vitória é dos que têm, com a centelha do engenho, a obstinação do trabalho, e conseguintemente é dele também? Assim, ou pelas sensações do moço ou pela robustez do artista, este livro "é a vida que ele viveu" —como o poeta se exprime em uma página que li com emoção. Na composição final é o sentimento da arte que persiste, quando o poeta fala à musa em fortes e fluentes versos alexandrinos, tão apropriados à contemplação longa e mística da idéia.
Não quero tratar aqui do prosador a propósito deste primeiro livro de versos. De resto, os leitores da Revista Brasileira já o conhecem por esse lado, e sabem que Magalhães de Azeredo será em uma e outra forma um dos primeiros espíritos da geração que surge. Neste ponto, a ode A Portugal com a carta a Eça de Queirós, publicada em avulso, dão clara amostra de ambas as línguas do nosso jovem patrício.
Felizes os que entre um e outro século podem dar aos que se vão embora um antegosto do que há de vir, e aos que vêm chegando uma lembrança e exemplo do que foi ou acaba. Tal é o nosso Magalhães de Azeredo por seus dotes nativos, paciente e forte cultura.
Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.
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