sábado, 12 de janeiro de 2013

Coelho Neto (Mano) Parte 3


A MORTE

Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.

Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.

Silêncio trágico continha a todos, suspensos.

Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?

Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.

De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:

- Que horas são?

Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”

Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.

Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.

O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para o oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.

E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.

Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.

Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.

Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.

Alguém chamou por ele, em pranto.

Ai! de nós...

Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.

É um caixão que se fecha. Nada mais.

CONSUMMATUM...

Onde estaria eu quando o desceram para a minha sala de trabalho?

Onde estaria eu que não dei pelo trânsito cruciante?

Quando entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no meu coração que estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!? Olhei em volta... Mas toda aquela desordem - velas ainda acesas, o silêncio, o lúgubre vazio...

Se o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos presente; o morto, não!

A morte arrasta tudo consigo e ali nada mais havia, mais nada senão um sulco revolto como o que fica nas águas à passagem de um barco - fundo, mas de breve duração; agitado, mas só em efêmeras espumas.

Onde estaria eu quando o desceram?

E foi diante daquele vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É pelo diâmetro e profundidade da cova que se pode avaliar a extensão das raízes da árvore derrubada.

Onde estaria eu quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo. Foi melhor assim.

Não há hora mais triste que a do ocaso, hora do descer da luz. A noite é o irremediável, com a consolação das estrelas, que são lágrimas.

Fizeram bem em poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio. Foi como se me adormecessem para uma operação dolorosa.

Quando dei acordo de mim tudo estava consumado.

A CHAVE

Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.

Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas entranhas de um peixe?

Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a jóia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.

Todos os abismos têm limite - de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade. Quantos lá têm amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios, todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o desespero.

O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.

Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se precipitaram!

A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias. Para que? De que me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?

Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável da Eternidade.

Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego - porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.

Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer aos penetrais do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?

De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?

Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão tremente e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo Céu e pela terra?

Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente - força, movimento e afeto: lume no olhar, idéia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no inverno.

Árvore!...

A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não levanta.

De que me serve possuir a chave!... Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não revelará jamais.

A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio.

E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias; lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura. 
––––––––

Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

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