quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 9, final


Camilloff

– Não! nunca! – rugi com furor, amarrotando a carta, monologando a largas passadas pelo melancólico claustro. – Não, por Deus ou pelo Demónio! Ir de novo bater as estradas da China? Jamais! Oh sorte grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadora de Marselha a Xangai, sofro as pulgas das bateiras chinesas, o fedor das vielas, a poeirada dos caminhos áridos – e para quê? Tinha um plano, que se erguia até aos Céus, grandioso e ornamentado como um troféu: por sobre ele cintilavam, de alto a baixo, toda a sorte de acções boas: e eis que o vejo tombar ao chão, peça a peça, numa ruína! Queria dar o meu nome, os meus milhões e metade do meu leito de oiro a uma senhora Ti Chin-Fu – e não mo permitem os prejuízos sociais de uma raça bárbara! Pretendo, com o botão de cristal de mandarim, remodelar os destinos da China, trazer-lhe a prosperidade civil – e veda-mo a lei imperial! Aspiro a derramar uma esmola sem fim por esta populaça faminta – e corro o perigo ingrato de ser decapitado como instigador de rebeliões! Venho enriquecer uma vila – e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia enfim dar a abundância, o conforto que louva Confúcio, à família Ti Chin-Fu – e essa família some-se, evapora-se como um fumo, e outras famílias Ti Chin-Fu surgem, aqui e além, vagamente, ao sul, a oeste, como clarões enganadores... E havia de ir a Cantão, a Kao-Li, expor a outra orelha a tijolos brutais, fugir ainda pelos descampados, agarrado às crinas de um potro? Jamais!

Parei: e de braços erguidos, falando às arcadas do claustro, às árvores, ao ar silencioso e fino que me envolvia:

– Ti Chin-Fu! – bradei. – Ti Chin-Fu! Para te aplacar, fiz o que era racional, generoso e lógico! Estás enfim satisfeito, letrado venerável, tu, o teu gentil papagaio, a tua pança oficial? Fala-me! Fala-me!...

Escutei, olhei: a roldana do poço, àquela hora do meio-dia, rangia devagar, no pátio: sob as amoreiras, ao longo da arcaria do claustro, secavam em papel de seda as folhas de chá da colheita de Outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um sussurro lento de declinações latinas: era uma paz severa, feita da simplicidade das ocupações, da honestidade dos estudos, do ar pastoril daquela colina, onde dormia, sob um sol branco de Inverno, o burgo religioso... E com aquela serenidade ambiente, pareceu-me receber na alma, de repente, uma pacificação absoluta! 

Acendi com os dedos ainda trémulos um charuto, e disse, limpando na testa uma baga de suor, esta palavra, resumo de um destino:

– Bem, Ti Chin-Fu está contente.

Fui logo à cela do excelente padre Giulio. Ele lia o seu Breviário à janela, debicando confeitos de açúcar, com o gato do convento no colo.

– Reverendíssimo, volto à Europa... Algum dos nossos bons padres vai por acaso em missão, para os lados de Xangai?...

O venerável superior pôs os seus óculos redondos: e folheando com unção um vasto registo em letra chinesa, ia assim murmurando:

– Quinto dia da décima Lua... Sim, há o padre Anacleto para Tien-Tsin, para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodécima Lua, o padre Sanchez para Tien-Tsin também, para a obra do Catecismo aos Órfãos... Sim, caro hóspede, tem companheiros para leste...

– Amanhã?

– Amanhã. É dolorosa a separação nestes confins do mundo, quando as almas se compreendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe faça um bom farnel... Nós já o amávamos como irmão, Teodoro... Coma um confeito, são deliciosos... As coisas estão em feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar do coração do homem é o coração de Deus: e o seu está nesse asilo seguro... Coma um confeito... Que é isso, meu filho, que é isso?

Eu estava colocando sobre o seu Breviário, aberto numa página do Evangelho de Pobreza, um rolo de notas do Banco de Inglaterra; e balbuciei:

– Meu reverendíssimo, para os seus pobres...

– Excelente, excelente... O nosso bom Gutierrez que lhe faça um farnel copioso... Amen, meu filho... In Deo omnia spes...

Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E aí vamos para Hiang-Hiam, vila negra e murada, onde atracam os barcos que descem a Tien-Tsin. Já as terras ao longo do Pei-Hó estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas já a água ia gelando: e embrulhados em peles de carneiro, em roda do fogareiro, à popa do barco, os bons padres e eu íamos conversando de trabalhos de missionários, de coisas da China, por vezes dos interesses do Céu – passando em redor sem cessar o grosso frasco da genebra...

Em Tien-Tsin separei-me daqueles santos camaradas. E daí a duas semanas, por um meio-dia de sol tépido, passeava, fumando o meu charuto e olhando a azáfama dos cais de Hong-Kong, no tombadilho do «Java», que ia levantar ferro para a Europa. 

Foi um momento comovente para mim, aquele em que vi, às primeiras voltas do hélice, afastar-se a terra da China.

Desde que acordara, nessa manhã, uma inquietação surda recomeçava a pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera àquele vasto império para acalmar pela expiação um protesto temeroso da Consciência: e por fim, impelido por uma impaciência nervosa, aí partia, sem ter feito mais que desonrar os bigodes brancos de um general heróico, e ter recebido pedradas pela orelha numa vila dos confins da Mongólia.

Estranho destino, o meu!...

Até ao anoitecer estive encostado sombriamente à borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta peça de seda azul, dobrar-se aos lados em duas pregas moles: pouco a pouco grandes estrelas palpitaram na concavidade negra, e o hélice na sombra ia trabalhando em ritmo. Então, tomado de uma fadiga mole, fui errando pelo paquete, olhando, aqui e além, a bússola alumiada; os montões de cabrestantes; as peças da máquina, numa claridade ardente, batendo em cadência; as fagulhas que fugiam do cano, num rolo de fumaraça negra; os marinheiros de barba ruiva, imóveis à roda do leme; e as formas dos pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na cabina do capitão, um inglês de capacete de cortiça, cercado de damas que bebiam conhaque, ia tocando melancolicamente na flauta a ária de «Bonnie Dundee»...

Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já estavam apagadas: mas a Lua que se erguia ao nível da água, redonda e branca, batia o vidro da cabina com um raio de claridade: e então, a essa meia-tinta pálida, lá vi, estirada sobre a maca, a figura pançuda, vestida de seda amarela, com o seu papagaio nos braços!

Era ele, outra vez!

E foi ele, perpetuamente! Foi ele em Singapura e em Ceilão. Foi ele erguendo-se dos areais do deserto ao passarmos no canal de Suez; adiantando-se à proa de um barco de provisões quando parámos em Malta; resvalando sobre as rosadas montanhas da Sicília; emergindo dos nevoeiros que cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no Cais das Colunas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da Rua Augusta; o seu olho oblíquo fixava-me – e os dois olhos pintados do seu papagaio pareciam fixar-me também...

VIII

Então, certo que não poderia jamais aplacar Ti Chin-Fu, toda essa noite no meu quarto ao Loreto, onde como outrora as velas inumeráveis das serpentinas davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de mim, como um adorno de pecado, esses milhões sobrenaturais. E assim me libertaria talvez daquela pança e daquele papagaio abominável! 

Abandonei o palacete ao Loreto, a existência de nababo. Fui, com uma quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei à repartição, de espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil réis mensais, e a minha doce pena de amanuense!...

Mas um sofrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me arruinado – todos aqueles que a minha opulência humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma estátua derrubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo de ironia, achincalharam a minha miséria. A Aristocracia, que balbuciara adulações aos pés do nababo, ordenava agora aos seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo encolhido do plumitivo de secretaria. O Clero, que eu enriquecera, acusava-me de «feiticeiro»; o Povo atirou-me pedras; e a Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granítica dos bifes, plantava as duas mãos à cinta, e gritava:

– Ora o enguiço! Então que quer você mais? Aguente! Olha o pelintra!...

E apesar desta expiação, o velho Ti Chin-Fu lá estava sempre à minha ilharga, obeso e cor de oca – porque os seus milhões, que jaziam agora estéreis e intactos nos bancos, ainda de facto eram meus! Desgraçadamente meus!

Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo no meu palacete e no meu luxo. Nessa noite, de novo o resplendor das minhas janelas alumiou o Loreto: e pelo portão aberto, viram-se como outrora negrejar, nas suas fardas de seda negra, as longas filas de lacaios decorativos.

Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame Marques chamou-me, chorando, «filho do seu coração». Os jornais deram-me os qualificativos que, de antiga tradição, pertencem à Divindade: fui o Omnipotente, fui o Omnisciente! A Aristocracia beijou-me os dedos como a um tirano: e o Clero incensou-me como a um ídolo. E o meu desprezo pela humanidade foi tão largo – que se estendeu ao Deus que a criou.

Desde então uma saciedade enervante mantém-me semanas inteiras num sofá, mudo e soturno, pensando na felicidade do não-ser...

Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de mim o Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do braço, o mesmo que no meu quarto feliz da Travessa da Conceição me fizera, a um ti-li-tim de campainha, herdar tantos milhões detestáveis. Corri para ele, agarrei-me às abas da sua sobrecasaca burguesa, bradei:

– Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da miséria! 

Ele passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e respondeu com bondade:

– Não pode ser, meu prezado senhor, não pode ser...

Eu atirei-me aos seus pós numa suplicação abjecta: mas só vi diante de mim, sob uma luz mortiça de gás, a forma magra de um cão farejando o lixo.

Nunca mais encontrei este indivíduo. – E agora o mundo parece-me um imenso montão de ruínas onde a minha alma solitária, como um exilado que erra por entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar...

As flores dos meus aposentos murcham e ninguém as renova: toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes vêm, na brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro – como se avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias defuntas...

Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta.. 

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: «Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!»

E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!

Angers – Junho de 1880.

FIM

Fonte:
http://leituradiaria.com 

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