sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 6 –

 

Aparecido Raimundo de Souza (Pulp’s)

O pior cego é aquele que nunca se enxergou - primeiramente a si mesmo -, no espelho interno da sua alma”. 
Tompson de Panasco.

A BURRICE ou o despautério das pessoas, não se arregimenta em fazer o que elas querem, de livre vontade e, sim, no que os outros escolhem e perpetram, geralmente contra seus princípios morais.  De certa forma, este particular quase insignificante as deixam e as tornam submissas. Num quadro geral, viram escravas de desonrosa e desprezível estupidez.

Em cada um de nós (seres humanos) existe uma pequena parcela de imbecilidade, como também de idealismo. Ambos funcionam como uma balança de precisão imprecisa. Com o passar do tempo, ou a extravagância prevalece, aflorando, ou a futilidade toma conta fazendo da personalidade do infeliz um joguete a seu bel prazer.

O “ideal” de toda alma vivente (ou a sua congeminação) deve ser como a árvore plantada no meio de uma floresta enorme. Ter suas raízes sedimentadas em terra firme, cravadas de modo duradouro e eterno. Ao contrário da boçalidade. Seus embriões precisam navegar continuamente em águas correntes.

Aconteça o que acontecer, meus caros amigos, nunca percam a esperança de serem felizes. Estejam alegres, saltitantes, haja o que houver. Seja o que for que esperem, não importa. Dias melhores, horas mais benfazejas, momentos mais agradáveis, surgirão em oportunos instantes, para que realizem seus propósitos e intentos de acordo com as necessidades consideradas mais prementes.

Lembrem que as criaturas de corações tidos como excelentes, exigem tudo de bom de si mesmas, principalmente em relação aos demais da sua estirpe. Os medíocres, ao contrário, esperam tudo de belo e majestoso, mas vindo dos outros semelhantes à sua volta.

“De onde menos se espera – dizia o Barão de Itararé – é que não sai nada mesmo.” Existem controvérsias quanto a este pensamento. Desta forma, procurem incansavelmente os seus “de onde menos se espera”. De repente, contrariando literalmente o famoso jornalista Apparício Torelly (1895-1971), as senhoras e os senhores deem de cara com algo suntuoso que não estava previsto e este simples gesto virá fazer ou fará toda a diferença em suas vidinhas medíocres.

Mas atenção, amigos. Cuidado com as contraindicações. Leiam, antes, a bula. “Enquanto há vida, há esperança.”, lecionava o filósofo romano Cícero (106-43 a. C). Do mesmo modo, onde há esperança, aí estará e se presenciará a vida. De modo algum deixem que se esvaia a esperança pela vida. Tampouco a vida pela esperança. Não chovam –, dito de outra maneira –, no molhado, nem façam sombras onde a escuridão impera duradoura e determinante. 

A melhor parte das nossas vidas, passamos em aguardar o que, talvez, nunca aconteça. Todavia, às vezes, o destino interfere, arrebatador, dando uma forcinha e nos brindando com aquilo que almejamos num abrir e piscar de olhos. A sorte às vezes, aparece, surge do nada, quando menos esperamos pela sua visita.

“Um raio de sol é suficiente para afastar muitas sombras”, no entendimento do religioso italiano e depois canonizado santo, Francisco de Assis. Porém, jamais se olvidem de um detalhe importantíssimo. A esperança é como a vida plena.  Se ocupem dela sonhando com os olhos bem abertos, de preferência quando estiverem dormindo.

Em tempo algum deixem de ser otimistas. O entusiasmo, o positivismo; alegra a alma; clareia o espírito; ajuda na reestruturação do corpo cansado; além de espalhar; para longe; as contrariedades e as tristezas do dia a dia.

Esperançosos e confiantes são aquelas pessoas que acreditam, que creem piamente que o que está para acontecer (seja de agradável, ou de temeroso, por alguma forma inexplicável), será sumariamente adiado. 

“A crença positivista – na concepção da escritora americana Helen Keller, autora de “A história da minha vida” é a FÉ em constante AÇÃO.” Em resumo, se vocês perderem a AÇÃO, a FÉ irá, de mala e cuia, para os cafundós. E vice-versa.

Como um todo, não devemos nunca, senhoras e senhores, deixar que se percam as ilusões. Sejam elas quais forem. Ilusões perdidas seriam (grosso modo), como mandarmos para o espaço, de uma vez para nuca mais, a realidade pujante e viçosa em que vivemos.

Necessitamos constantemente massagearmos nosso ego, alimentando-o todos os dias (ainda que construindo castelos no ar), embora tenhamos pleno conhecimento que nos será cruel e doloroso a sua destruição, logo adiante.

“A capacidade de nos iludirmos nessa vida de altos e baixos (ensinava, com muita propriedade, Jane Wagner, escritora e humorista) pode ser uma importante ferramenta de sobrevivência.”   

Tenham este conceito aparentemente bobo, meus queridos leitores, ao alcance das mãos. Usem como uma espécie de sentença, ou acórdão*. “Pode ser uma importante ferramenta de SOBREVIVÊNCIA.” De fato, se forem pesquisar a fundo, NÃO DEIXA DE SER. OU MELHOR, É.
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*Acórdão = [Jurídico] Última sentença ou decisão final que, atribuída por uma instância superior, começa a valer como modelo para resolver casos, questões ou situações de teor semelhante.

Fonte:
Enviado pelo autor, da Lagoa Rodrigo Freitas, no Rio de Janeiro.  

Sílvia Araújo Motta (Sonetos Sáficos-Heroicos) – 1 -


DEPOIS DO CARNAVAL 

É quarta-feira! Nuvem chega escura! 
O mascarado perde o grande encanto; 
tira o disfarce, vê real figura;
apaixonado, triste enxuga o pranto. 

Hoje o palhaço chora a dor, sem cura! 
Entra na Igreja, faz a prece, enquanto   
cinzas na testa põe, naquela altura; 
na multidão, perdeu garota e tanto. 

O morador de rua faz poesia; 
do carnaval, nenhum confete resta... 
Volta à marquise, chora todo dia. 

Nos blocos pulam, dançam, fazem festa, 
para brindar amor e paz na terra. 
A fantasia, só ilusão encerra!
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DIA DAS MENTIRAS-1º de ABRIL

Dia primeiro, mês de abril, persisto:
siga a razão e creia, traz ventura;
educação faz obra, pense nisto.
Sabedoria é graça, ao tempo dura...

Valor moral requer ação benquista.
Saber sofrer, enfim suporta a agrura...
A criatura humana é boa, insisto:
-Sabe escolher o livre-arbítrio e cura:

Vícios, defeitos onde houver vontade...
A liberdade dá poder total profundo;
quem tem caráter firme diz verdade.

Quem mente, não prospera neste vício,
pois faz trapaça e engana a todo mundo.
O mentiroso é escravo desde o início.
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Nota: Acróstico mesóstico-diagonal (letras em vermelho)
Esse tipo acontece quando a palavra ou verso é formado pelas letras que estão situadas no meio das palavras ou versos, e seguem em diagonal.
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MÃE - NOME SUBLIME

Nome sublime, mãe, um ser que eu amo,
no peito guarda amor, magia, calma,
somente quer a flor do belo ramo;
a dor esquece fácil, sempre acalma.

Com seu sorriso, nada mais reclamo;
astro no mundo, sol que brilha n´alma;
anjo do lar, do bem, presença clamo,
não tem nenhum limite e luz espalma.

Feliz aquele ser que em ninho sonha,
para acordar e ter mamãe presente,
bem sorridente, ao colo, então lhe ponha.

Feliz quem teve voz materna augusta,
que já partiu da terra; embora ausente:
– Mãe é Rainha... e sua fama é justa.
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NADA ME FALTA – TENHO O TUDO

Tento saber dos males, dentre tantos,
que tanta gente chora e faz lamento;
no mundo existe fome, em quatro cantos;
amor é fruto raro, neste intento.

Ausente luz traz choro, negros mantos!
No patamar da vida, em banco sento;
no meu teclado, o canto tem encantos,
com pais amados, meu viver foi bento. 

Irmãos unidos, risos, filhos, beijos...
Na caridade vi razão de sobra;
plantamos fé; até fizemos queijos.

“Tem mais presença em mim o que me falta.”
A gratidão nenhuma coisa cobra:
- Se nada falta, Deus, o Tudo exalta.
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NÃO HÁ PERFEIÇÃO - Pensando em Colombina

Nesta existência, viu Pierrot que canta.
Nas brincadeiras, teve o tempo inteiro,
troca de beijos, num salão que encanta;
a chave de ouro deu por um pandeiro.

A mascarada fez altar à santa.
Grande promessa quis cumprir no outeiro,
pois ser estrela, todo astral levanta,
pede esperança, em quadro com letreiro.

A falsidade é força e inveja encena.
Nem Colombina esconde ser vadia,
a solidão, bem sei traz choro e pena.

Sem fantasia, perde a cor... Desiste;
acena a mão; na quarta; quem diria!
Casal feliz, perfeito, não existe.
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Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa.
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=3146&categoria=Z

A. A. de Assis (Agenda de Criança)

Perguntei ao meu bisneto de 9 anos se ele teria um tempinho para ir comigo comer um hambúrguer numa lanchonete. Ele respondeu que seria legal e que acharia um tempinho sim, porém primeiro precisaria consultar a agenda.

Só então me dei conta de que agenda de criança não é moleza hoje em dia. Quando eu era menino, muitas luas passadas, a gente ia também à escola e tinha um momento para fazer os deveres de casa, mas sobrava tempo para viver plenamente a infância. Futebol, banho de rio, matinê de cinema, leitura de gibi, brinquedos diversos e “artes” várias preenchiam os nossos dias sem nenhum medo ou estresse.

A modernidade mudou tudo: obrigou a garotada a assumir precocemente compromissos e responsabilidades de gente grande. Meninos e meninas têm uma agenda pesadíssima: além das aulas regulares, frequentam cursos paralelos de inglês, música, judô, balé, robótica, sabe-se lá mais o quê. E ainda tem o celular, que prende todo mundo por horas e horas, roubando até boa parte das horas de dormir. Daí fica mesmo difícil achar uns minutinhos livres para ir à lanchonete com o biso. A sorte é que o biso nunca tem nada que fazer, e então pode esperar. 

Sairiam todos ganhando, caso tivessem como conversar mais – pais e filhos, netos e avós, bisnetos e bisavós. Me arrependo até hoje por não ter batido longos papos com os meus pais e avós. O vô e a vó paternos não conheci, mas com o vô e a vó maternos convivi até os 12 anos, quando eles partiram para a eternidade.

Poderia ter ouvido deles histórias interessantíssimas, inclusive sobre as raízes de nossa própria família. Eles nasceram no século 19, poderiam ter falado sobre a monarquia, sobre o início da república, sobre os primeiros anos do século 20, sobre as mudanças nos usos e costumes. Meu avô era um homem da roça, mas gostava de ler, sabia das coisas. Meu pai também, embora fosse igualmente da roça, era bem informado, lia jornais. Minha mãe tinha só o curso primário, porém tinha sempre um livro na cabeceira e até escrevia poemas.

Pois é: e eu conversei tão pouco com eles. Falta de tempo não era; era só bobice minha, que na época não pensava no valor do diálogo entre as gerações.

Você, que está lendo agora esta conversinha, se tem na sua família pessoas de idades diferentes, aproveite bem esse privilégio. Estimule, sempre e tanto quanto possível, o diálogo entre os mais novos e os mais vividos. É muito bonita a troca de experiências entre os meninos e os bisos. Sei que os jovens vivem correndo. Sei também que é meio complicado achar assuntos que interessem ao mesmo a todos. Todavia, com um pouco de jeitinho e habilidade, dá para criar encontros familiares extremamente prazerosos.           

Comer um lanchinho é bom. Com os bisnetos ao lado é bem melhor. E muito melhor ainda é o papo que rola enquanto a gente se farta no hambúrguer com refrigerante e batata frita.

O biso pede sempre bis quando isso acontece. 
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(Publicada no Jornal do Povo, em 20.07.2023)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/07/20/agenda-de-crianca/

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 21

Vanice é de Curitiba/PR
 

Lauro Grein Filho (A xícara de azeite)

Convencido e presumido de um bom cabedal médico, respaldado por um  curso laureado e uma especialização no "Miguel Couto", do Rio, animado e motivado por todas as ilusões que envaidecem os anos da mocidade, iniciava em Castro os primeiros passos da jornada.

Não tinha mais que uma semana na cidade, que tanto me desconhecia quanto eu desejava conquistá-la, quando recebi o chamado lá pelas onze da noite. Vinha com o táxi, cabendo ao motorista o encargo único de me conduzir, nada sabendo sobre o doente, o caso, a ocorrência. Apenas o nome e o endereço do cidadão, pessoa ilustre e conhecida na praça. Chegando à residência, nela ingressei firme e forte, dono da verdade, da ciência e de tudo. No quarto e na cama do casal, um menino de quatro anos choramingava suas dores para a plateia de sete adultos e três menores. É proverbial a solidariedade dos sírios, nos infortúnios da saúde. Não faltavam, pois, parentes e amigos, todo um clã, irmanado na mesma preocupação, unidos no mesmo lamento, sofrido no mesmo pranto.

À minha presença, o guri aumentou o choro no timbre e na intensidade. Esclareceram-me, então, que havia caído da mesa e machucado o braço. Após algum empenho consegui por fim acalmá-lo, pondo-o dócil e amigo em minhas mãos. O exame cuidadoso não revelou, nos sinais específicos, qualquer indício de fratura ou luxação. Tratei, pois, de serenar o ambiente, explicando a benignidade de uma simples contusão, sem gravidade e sem importância, coisa banal, de recuperação espontânea em poucas horas. A confirmar minhas palavras, o moleque, já refeito do médico e do susto, ensaiava alguns sorrisos para o auditório a esta altura tranquilizado.

Aprontava-me em instantes para sair, certo da missão encerrada e bem cumprida, quando uma voz retumbou autoritária pelos quatro cantos da sala: - "Mas então, doutor, o Sr. não vai fazer nada?". Era uma senhora gorda, idosa e bem disposta, avó materna do moleque.

- Minha Senhora, como eu disse...

- Olha, doutor, bom para isso é esfregação de azeite quente. Vamos acudir a criança.

E enquanto me aturdia na surpresa e na indecisão, a devotada criatura dirigiu-se resolutamente à cozinha, de lá trazendo, rápida e triunfante, uma detestável xícara de azeite morno.

Para não me alterar na inconveniência e na descortesia, mergulhei corajosamente os dedos no unguento repulsivo, passando a lambuzar com ele o braço do garoto.

A cena durou uns cinco minutos, o mínimo necessário para o contentamento de todos e a aprovação geral da casa. Preço caro em troca da imagem preservada, a simpatia conquistada, a lição apreendida.

Lavei as mãos para me livrar da gordura incômoda, ouvindo do pai agradecido a firase irrecorrível que haveria de me acompanhar trabalhos afora: “Por enquanto muito obrigado, depois nós acertamos". Amavelmente fui me despedindo, um por um, entrevendo na clareza dos semblantes as evidências de que deixava o campo são e salvo.

Da esclarecida senhora mereci um confortável abraço, que beijo não se dava a esmo no passado. As aparências, resguardei-as como devia. A verdade, entretanto, é que, naquela casa e naquela noite, deixava no braço inocente daquele guri moreno uma parte das minhas ilusões, outro tanto do meu orgulho, das minhas convicções e um pedaço de mim mesmo. Muitas e muitas vezes depois, ao longo da clínica interiorana, a experiência me levaria ao melhor convívio com tais maneiras, admitindo-as em nome de uma cultura autenticamente nossa, criada e embalada no mundo simplório de nossos avós.

Mas o primeiro confronto foi por demais impiedoso para que dele facilmente me esquecesse.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao Entardecer) – 3


A carícia do Nordeste
às lindas praias morenas
é magia que reveste
as suas noites serenas.
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Acorda a nossa consciência
o drama da moto-serra
que mesmo em sua inocência,
sela o destino da Terra.
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Após trabalho incessante,
num pipilo, o passarinho
anuncia, triunfante,
a festa de um novo ninho.
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A rosa, o lírio, a violeta
dão o tom com seus olores,
e o jardim abre a retreta
em sinfonia de cores.
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A roseira solferina
num cantinho do jardim,
guarda os sonhos da menina
que o tempo mudou, em mim.
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Até por gênios deixada,
a floresta a vida encerra,
e deserta, devastada,
sela o destino da Terra.
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Dizemos que o tempo voa,
e enquanto filosofamos,
ele vive aí... à toa...
e somos nós que voamos.
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Envolto em nívea camada,
sonha, em repouso, o jardim.
Vem o sol, derrete a geada…
Negro, o sonho chega ao fim.
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Fala a gota que se esconde
no cálice de uma flor;
fala o mar, tudo responde,
quando fala o Criador,
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Garoto à fome minguando,
na calçada sentadinho,
e o vendedor apregoando;
"Olha gente, o pão quentinho!"
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Na capelinha da aldeia,
os contornos esfumados
brilham à luz da candeio
da fé dos seus devotados.
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Na praça, neste banquinho,
passou correndo a amizade;
sentou o amor, só um pouquinho,
ficou pra sempre a saudade.
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Nas águas de um turvo horrível
espelha-se um céu cinéreo,
onde a ganância, insensível,
já pôs também seu império.
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  Nem sonhos maus acontecem
nas noites mais tormentosas.
Se teus abraços me aquecem,
durmo num leito de rosas.
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No mar a lua se espelha,
mas o gigante, enciumado,
reduz a cocos de telha
o lindo disco prateado.!
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Num estranho automatismo,
lá do fundo, os meus gemidos
voltam ò tona do abismo,
procurando os teus ouvidos,
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Parecemos - tu chorando
e eu num discreto lamento -
dois violinos ensaiando
a charanga atroz do vento.
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Se enfrento a agressão do frio,
do gelo pelos caminhos,
é porque me refugio
sob o sol dos teus carinhos.
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Se me abrigo no teu braço
das noites na travessia,
até da insónia, o cansaço
torna doce a companhia.
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Sem motivo, sem palavra,
no adeus insinuado em calma,
deste o golpe que escalavra
os pilares de minha alma.
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  Sinto, e é quase transparente
que estás a te divertir,
mas falta ao meu ser carente
coragem pra conferir.
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Talvez um simples "Bom dia"
dito em casual diapasão,
seja a nota de alegria
que faltava ao teu irmão.
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Toda enfeitada, a capela
faceira põe-se a esperar
de algum artista a chancela
que a venha imortalizar.
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Uma certeza me encanta
e traz minha alma aquecida:
Se o orvalho reanima a planta,
a fé é o orvalho da vida.
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Você, absurda e volúvel,
que ora quer, ora recusa,
é, o grande enigma insolúvel
em minha vida confusa.
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Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.
Enviado pela trovadora.

Silmar Böhrer (Vem chegando a invernia)

Vento gelado na pradaria, 
vem chegando a invernia, 

sombra invade e serrania, 
vem chegando a invernia, 

na friagem bate a correria, 
vem chegando a invernia. 

Noite, névoa e ventania, 
vem chegando a invernia, 

geada branqueou a ramaria, 
vem chegando a invernia, 

a inverneira sempre arredia, 
vem chegando a invernia. 

Vem chegando a invernia 
com seus nacos de poesia, 

vem chegando a invernia, 
pinhão na chapa, vinhos, alegria, 

vem chegando a invernia, 
lenha no fogo, dona Maria. 

Fonte:
Enviado pelo autor.

Machado de Assis (Singular ocorrência)

Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na Igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.

— De preto?

— Justamente! Lá vai entrando. Entrou.

— Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua recordação de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz .

 — Deve ter quarenta e seis anos.

 — Ah! Conservada. Vamos lá! Deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está viúva, naturalmente?

— Não.

— Bem, o marido ainda vive. É velho?

— Não é casada.

— Solteira?

— Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na Rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje, modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento (de modo pomposo), arrastava a muitos, ainda assim.

— Por exemplo, ao senhor.

— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada. Quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos.

— Apesar disso, a Marocas...?

— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma coisa interessante.

— Diga.

— A primeira vez que ele a encontrou, foi à porta da loja Paula Brito, no Rocio. Estava ali, viu à distância uma mulher bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres. Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura alguma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito. Andrade disse-lhe que do outro lado do Rocio, e ensinou-lhe a altura provável da casa. Ela cortejou com muita graça; ele ficou sem saber o que pensasse da pergunta.

— Como eu estou.

— Nada mais simples: Marocas não sabia ler. Ele não chegou a suspeitá-lo. Viu-a atravessar o Rocio, que ainda não tinha estátua nem jardim, e ir à casa que buscava, ainda assim perguntando em outras. De noite foi ao Ginásio; dava-se a Dama das Camélias; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como uma criança. Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente. Marocas despediu todos os seus namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse.

— Como a Dama das Camélias.

— Justo. Andrade ensinou-lhe a ler. “Estou mestre-escola”, disse-me ele um dia; e foi então que me contou a anedota do Rocio. Marocas aprendeu depressa. Compreende-se; o vexame de não saber, o desejo de conhecer os romances em que ele lhe falava, e finalmente o gosto de obedecer a um desejo dele, de lhe ser agradável... Não me escondeu nada; contou-me tudo com um riso de gratidão nos olhos, que o senhor não imagina. Eu tinha a confiança de ambos. Jantávamos às vezes os três juntos; e... não sei por que negá-lo, — algumas vezes os quatro. Não cuide que eram jantares de gente pândega; alegres, mas honestos. Marocas gostava da linguagem afogada, como os vestidos. Pouco a pouco estabeleceu-se intimidade entre nós; ela interrogava-me acerca da vida do Andrade, da mulher, da filha, dos hábitos dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, se tivera outros, se era capaz de a esquecer, uma chuva de perguntas, e um receio de o perder, que mostravam a força e a sinceridade da afeição... Um dia, numa festa de S. João, o Andrade acompanhou a família à Gávea, onde ia assistir a um jantar e um baile; dois dias de ausência. Eu fui com eles. Marocas, ao despedir-se, recordou a comédia que ouvira algumas semanas antes no Ginásio — “Janto com minha mãe” — e disse-me que, não tendo família para passar a festa de S. João, ia fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o da mãe, porque não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade chegou a inclinar-se; ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o delicadamente com a mão.

 — Gosto desse gesto.

— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa. Seguimos para a Gávea. De caminho disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas, contou-me as últimas frioleiras (frivolidades) de ambos, falou-me do projeto que tinha de comprar-lhe uma casa em algum arrabalde, logo que pudesse dispor de dinheiro; e, de passagem, elogiou a modéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamente necessário. “Há mais do que isso”, disse-lhe eu, e contei-lhe uma coisa que sabia, isto é, que cerca de três semanas antes, a Marocas empenhara algumas joias para pagar uma conta da costureira. Esta notícia abalou-o muito; não juro, mas creio que ficou com os olhos molhados. Em todo caso, depois de cogitar algum tempo, disse-me que definitivamente ia arranjar-lhe uma casa e pô-la ao abrigo da miséria. Na Gávea ainda falamos da Marocas, até que as festas acabaram, e nós voltamos. O Andrade deixou a família em casa, na Lapa, e foi ao escritório aviar alguns papéis urgentes. Pouco depois do meio-dia apareceu-lhe um tal Leandro, ex-agente de certo advogado a pedir-lhe, como de costume, dois ou três mil réis. Era um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade deu-lhe três mil réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram amores. Ele mastigou um pouco, e confessou que sim.

— Olhe! Lá vem ela saindo. Não é ela?

— Ela mesma: afastemo-nos da esquina.

— Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem um ar de duquesa.

— Não olhou para cá, não olha nunca para os lados. Vai subir pela Rua do Ouvidor...

— Sim, senhor. Compreendo o Andrade.

— Vamos ao caso. O Leandro confessou que tivera na véspera uma fortuna rara, ou antes única, uma coisa que ele nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque se conhecia e não passava de um pobre-diabo. Mas, enfim, os pobres também são filhos de Deus. Foi o caso que, na véspera, perto das dez horas da noite, encontrara no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo, e muito embrulhada num xale grande. A dama vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rente com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. O pobre-diabo imaginou que era engano de pessoa; confessou ao Andrade que, apesar da roupa simples, viu logo que não era coisa para os seus beiços. Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse... "Olhe, acrescentou ele, para V. Sa é que era um bom arranjo". Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o comborço (indivíduo amancebado). Mas o Leandro teimou; era na Rua do Sacramento, número tantos...

— Não me diga isso!

— Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez, nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou, nem o que sentiu. Afinal, teve força para perguntar se era verdade o que estava contando; mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela sua parte, era discreto. Parece que ia sair; Andrade deteve-o, e propôs-lhe um negócio; propôs-lhe ganhar vinte mil réis.  —"Pronto!" — "Dou-lhe vinte mil réis, se você for comigo à casa dessa moça e disser em presença dela que é ela mesma".

— Oh!

— Não defendo o Andrade; a coisa não era bonita; mas a paixão, nesse caso, cega os melhores homens. Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de uma tal vingança.

 — O outro aceitou?

— Hesitou um pouco, meio que por medo, não por dignidade, mas vinte mil-réis... Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos... Marocas estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta, na intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar o Leandro; Marocas empalideceu. — "É esta senhora?" perguntou ele. — "Sim, senhor", murmurou o Leandro com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma nota de vinte mil réis e deu-a; e, com a mesma afetação, ordenou-lhe que se retirasse. O Leandro saiu. A cena que se seguiu, foi breve, mas dramática. Não a soube inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e, naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela não confessou nada; mas estava fora de si, e, quando ele, depois de lhe dizer as coisas mais duras do mundo, atirou-se para a porta, ela arrojou-se-lhe aos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu.

 — Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos dela?

— Não.

— Não?

— Ouça o resto. De noite seriam oito horas, o Andrade veio à minha casa, e esperou por mim. Já me tinha procurado três vezes. Fiquei estupefato, mas como duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova até à evidência? Não lhe conto o que ouvi, os planos de vingança, as exclamações, os nomes que lhe chamou, todo o estilo e todo o repertório dessas crises. Meu conselho foi que a deixasse; que, afinal, vivesse para a mulher e a filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele concordava, mas tornava ao furor. Do furor passou à dúvida; chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele saber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta inverossimilhança, tentava fugir à realidade; mas a realidade vinha, — a palidez de Marocas, a alegria sincera do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era certa. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas!

— Há uma frase de teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: "a nostalgia da lama".

— Acho que não; mas vá ouvindo. Às dez horas apareceu-nos em casa uma criada de Marocas, uma aia preta, muito amiga da ama. Andava aflita em procura do Andrade, porque a Marocas, depois de chorar muito, trancada no quarto, saiu de casa sem jantar, e não voltara mais. Contive o Andrade, cujo primeiro gesto foi para sair logo. A preta pedia-nos por tudo, que fôssemos descobrir a ama. "Não é costume dela sair?" perguntou o Andrade com sarcasmo. Mas a preta disse que não era costume. "Está ouvindo?" bradou ele para mim. Era a esperança que de novo empolgara o coração do pobre-diabo. "E ontem?..." disse eu. A preta respondeu que na véspera sim; mas não lhe perguntei mais nada, tive compaixão do Andrade, cuja aflição crescia, e cujo pundonor ia cedendo diante do perigo. Saímos em busca da Marocas; fomos a todas as casas em que era possível encontrá-la; fomos à polícia; mas a noite passou-se sem outro resultado. De manhã voltamos à polícia. O chefe ou um dos delegados, não me lembra, era amigo do Andrade, que lhe contou da aventura a parte conveniente; aliás a ligação do Andrade e da Marocas era conhecida de todos os seus amigos. 

Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante a noite; as barcas da Praia Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno. A polícia pôs em campo todos os seus recursos, e nada. Não lhe digo o estado de aflição em que o pobre Andrade viveu durante essas longas horas, porque todo o dia se passou em pesquisas inúteis. Não era só a dor de a perder; era também o remorso, a dúvida, ao menos, da consciência, em presença de um possível desastre, que parecia justificar a moça. Ele perguntava-me, a cada passo se não era natural fazer o que fez, no delírio da indignação, se eu não faria a mesma coisa. Mas depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me que era verdadeira, com o mesmo ardor com que na véspera tentara provar que era falsa; o que ele queria era acomodar a realidade ao sentimento da ocasião.

— Mas, enfim, descobriram a Marocas?

— Estávamos comendo alguma coisa, em um hotel, eram perto de oito horas, quando recebemos notícia de um vestígio: — um cocheiro que levara na véspera uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela entrou em uma hospedaria, e ficou. Nem acabamos o jantar; fomos no mesmo carro ao Jardim Botânico. O dono da hospedaria confirmou a versão; acrescentando que a pessoa se recolhera a um quarto, não comera nada desde que chegou na véspera; apenas pediu uma xícara de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nos para o quarto, o dono da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca, e abriu. O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos.

— Tudo se explicou?

— Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o Norte, em comissão do governo, a afeição era ainda a mesma, posto que os primeiros ardores não tivessem já a mesma intensidade. Não obstante, ela quis ir também; fui eu que a obriguei a ficar. O Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas, como lhe disse, morreu na província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que nos três primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia aniversário. Há dez anos perdi-a de vista. Que lhe parece tudo isto?

— Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou da minha ingenuidade de rapaz para imaginar um romance...

— Não inventei nada; é a realidade pura.

— Pois, senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente, tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.

— Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros.

— Então por que desceria naquela noite?

— Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo. . . Enfim, coisas!

Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado originalmente em 1884.
Disponível em Domínio Público

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 12)

 

George Abrão (A casa da Felisberta)

Nada havia e bonito, de estilo arquitetônico, nem de especial na casa situada numa das esquinas da Rua Almeida Salim. Era uma velha casa de madeira sem pintura e já quase em ruínas. O que me impressionavam eram as histórias que eu ouvia sobre a sua antiga proprietária: dona Felisberta, que era uma proxeneta negra, sendo a sua casa um bordel.

Apesar das suas funções e da destinação da casa, ela sempre exigia respeito e ordem no eu lupanar. Ai de quem desacatasse as normas, fosse uma das suas meninas ou um dos frequentadores, ela tomava as devidas providências. Exigia sempre respeito à vizinhança e aos transeuntes.

Higiene também era primordial. Para tanto, as meninas, além do ofício a que se propunham, também recebiam instruções sobre cuidados pessoais e limpeza doméstica, Recebiam também ensinamentos sobre culinária (Felisberta era uma excelente cozinheira).

Pelo exposto, Felisberta recebia tratamento respeitoso por parte da sociedade jaguariaivense, tanto que, em determinados dias do ano, seu bordel era fechado e ela mandava as meninas passear (com exceção de algumas delas, que ficavam para auxiliá-la).

Então preparava um banquete composto de saborosas iguarias e bebidas finas que era servido em uma enorme mesa, sobre toalhas de linho, porcelana inglesa, pratarias, e cristais.

Os convidados eram os senhores mais importantes da cidade, os mesmos que frequentavam o seu bordel, acompanhados pelas suas esposas.

Os convites para tais festas eram muito disputados.

Dona Felisberta, símbolo da liberdade em uma época austera com a moral e os bons costumes.

Fonte:
Enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Avessos da invenção)

PIRIBÊNCIO RODRIGUES FAISÃO chegou apressado na recepção do consultório dentário onde havia marcado uma sessão com a sua dentista. Estava meia hora atrasado. Depois de se dirigir à moça da recepção, dar uma desculpa esfarrapada, recebeu uma senha. Tinha gente na frente. Iria ser atendido, mas demoraria um pouco. Que fazer? O jeito, esperar. Afinal de contas, o dente doía e latejava e isso o estava tirando do sério. 

Decidiu sentar numa cadeira vaga e folhear um jornal, que dobrado amargava a solidão do desprezo numa cestinha adequada para revistas e livros. Foi quando deparou com uma dessas máquinas de café num canto da sala, ao lado da janela. Na vez anterior em que ali estivera, coisa de um mês atrás, não havia visto aquele modelo express, pelo menos que se lembrasse. Sinal de que a sua odontóloga fazia progressos na profissão. Enquanto aguardava a vez de ser atendido, resolveu preparar uma bebida. 

Caminhou até o aparelho e antes de apertar um dos doze botões procurou ler atentamente as instruções. A geringonça oferecia uma serie de opções: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro e chá”. Decidiu pelo café com leite. Adorava café com leite. De graça, até injeção no olho esquerdo ou ovo podre, cru e cozido, com bastante sal, certamente caia de bom grado. 

Apertou o botão correspondente. O copinho plástico descartável pousou suave na bandeja. Partiu para o segundo passo: “muito açúcar, pouco açúcar, médio ou amargo”. Médio. Doce demais, não descia. Amargo, bastava a vida. O açúcar caiu na medida escolhida e milimetricamente calculada. Ação seguinte: pressionar a tecla de cor azul que indicava “CAFÉ COM LEITE” e partir para o abraço.  Ao comprimir, contudo o botão que despejaria a bebida, a coisa entrou em pane. 

Assim, sem aviso, sem dar o menor sinal. Simplesmente a operação enguiçou. Num repente, o dispositivo engoliu o copo, e, como se não bastasse, com o açúcar dentro. Piribêncio achou estranho, mas se conformou. Olhou ao redor. A moça da recepção falava com alguém ao telefone. Pelo sorriso, papeava com o namoradinho. Dos quatro pacientes que esperavam vez, dois eram mulheres e ambas folheavam umas revistas de moda do tempo do onça. Um senhor de boné vermelho, parecia cochilar e o sujeito, ao lado, quebrava a cabeça fazendo palavras cruzadas. 

Ninguém com a atenção voltada para ele. Portanto, os presentes não chegaram a perceber a sacanagem pela qual passara.  Voltou a ler as instruções no pequeno visor: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro, chá”. O dedinho indicador ávido e certeiro investiu no que mais gostava. Repetiria a dose. “CAFÉ COM LEITE”. Reiterou as fases anteriores. Afinal das contas, porém, o mesmo problema atonou teimoso. Tornou a perscrutar em derredor. O quadro não mudara, com exceção do velho que cruzara as pernas. Tentou a terceira investida agora com mais vagareza, ponto por ponto, sem afobação. 

Quem sabe, na ânsia ávida de ingerir o bendito “quentinho”, atrelado à dor que não treguava, tivesse digitado um dos protocolos erroneamente. Sem contar com o fato das letras serem pequenas e os comandos minúsculos. Qual o quê! A mesma historia de antes ascendeu, apatetado e ímprobo. Ficou vermelho de raiva. Bufou enfezado enquanto coçava o lóbulo da orelha. Pensou em incomodar a secretária. Droga! Para lhe servir um simples cafezinho? Desistiu da ideia.  

A propósito, a jovem continuava a falar ao telefone. Desviou o fone por um segundo apenas para anunciar o nome do próximo que ocuparia a cadeira da dentista. Uma senhora com uma criança acabava de sair. Foi à vez do velho de boné vermelho que cochilava. E então? Não era suficientemente inteligente e esperto para preparar uma simples infusão? Ainda mais num equipamento ultramoderno em que não precisava fazer nada, a não ser ler cuidadosamente as indicações de utilização correta e, por fim, mecanografar meia dúzia de redondinhos de cores variadas. 

Não! Não desistiria, jamais. Partiu para a quarta vez. Tirou os óculos e leu tudo de novo, tintim por tintim: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro, chá”. Registrou a sua concentração obstinada no “CAFÉ COM LEITE”. Sacanagem ou não, a engenhoca piripaqueou de novo. Desta feita, mais decisiva e abusada. Engoliu o copo e jogou o açúcar no chão. Inconformado, Piribêncio aloprou. Perdeu a paciência, enrubesceu as maçãs do rosto. Não tivesse ninguém ali, mandava um belo de um chute bem dado naquela droga. Muita gente em volta. Câmeras monitorando. Conteve os ânimos. Respirou. Partiria para a derradeira. 

Saísse o café agora, tudo azul, com bolinhas da mesma cor. Caso contrário, acomodaria o traseiro ao lado dos demais, comportado e conformado, e aguardaria “na sua”, até ser chamado. Assim foi. Entretanto, no instante final resolveu mudar o botão do favoritismo. Talvez a droga fosse uma espécie rara de empacação com a sua eleição pelo coffee with cream. Optou, à contragosto, pelo CAPPUCCINO. Reproduziu, pois, passo a passo todas as etapas. Até aquele estágio, tudo as mil, muito legal e prático. Copo no lugar certo, açúcar, dosagem correta da água... entretanto na hora de sustentacular o amarelinho indicador do preparado finalizado, again, em repetência, pá pum, a porcaria travou e degringolou tresloucada. 
Nessa pancada, sugou o copo, e esparramou o açúcar. Piribêncio saiu da tranquilidade aparente para a tragédia anunciada. Perdeu o chão. Irritado, encolerizado, espumando ódio pelas ventas, e de lambuja, num acinte de enfezo, apertou desordenadamente os manetes livres de uma só vez: operou a sua desdita empombada (altercação) uma, duas, três, dez vezes... 

Nesse fluxo desigual, um copinho apareceu na bandeja, o açúcar saiu na dosagem certa. O Cappuccino, porém, ao invés de vazar no local destinado, subitamente esguichou à frente, espirrando de maneira frontal, o líquido quente diretamente em seu rosto. Pego, assim de surpresa, Piribêncio levou as mãos aos olhos, emitiu um grito horrível, lancinante, ao tempo em que empreendia um espetacular palavrão, saltando de banda, como um gato assustado. Às cegas, tropeçou numa mesinha, perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão junto com um vaso de plantas em meio a um monte de cacos que se espalhou fragmentado pelos ladrilhos. O troço seguiu desmoderado, não parou aí. 

Aliás, não parou mais. Continuou dando vazão às operações numa contraversão de ciclos por conta e risco, descontroladamente desgovernada. Nessa fuzarca, liberava ora copinhos um atrás do outro e açúcar, água fervendo e café, ora derramando e espalhando as variadas opções das indicações do cardápio. Acabou, nessa enxurrada, exausta, vencida, pegando fogo em meio a uma poça enorme de chocolate, chá e café. Com a galera e a secretária aos berros, a dentista veio lá de dentro, apavorada, deixando o paciente que começara a atender boquiabertamente escancarado. 

Ela própria, ao se afrontar com a cena inusitada, arreganhou as orelhas à sua cavidade de entrada do tubo digestivo e se viu socorrida pelos bombeiros que os albergados das salas vizinhas chamaram às pressas. Piribêncio, de roldão, seguiu atrás, braços dados com dois paramédicos. Caso passado, os envolvidos socorridos, a esfuziante estilista que colocava sorrisos em gengivas cariadas, mandou jogar a máquina no lixo. Literalmente. 

Fonte:
Enviado pelo autor, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro