PIRIBÊNCIO RODRIGUES FAISÃO chegou apressado na recepção do consultório dentário onde havia marcado uma sessão com a sua dentista. Estava meia hora atrasado. Depois de se dirigir à moça da recepção, dar uma desculpa esfarrapada, recebeu uma senha. Tinha gente na frente. Iria ser atendido, mas demoraria um pouco. Que fazer? O jeito, esperar. Afinal de contas, o dente doía e latejava e isso o estava tirando do sério.
Decidiu sentar numa cadeira vaga e folhear um jornal, que dobrado amargava a solidão do desprezo numa cestinha adequada para revistas e livros. Foi quando deparou com uma dessas máquinas de café num canto da sala, ao lado da janela. Na vez anterior em que ali estivera, coisa de um mês atrás, não havia visto aquele modelo express, pelo menos que se lembrasse. Sinal de que a sua odontóloga fazia progressos na profissão. Enquanto aguardava a vez de ser atendido, resolveu preparar uma bebida.
Caminhou até o aparelho e antes de apertar um dos doze botões procurou ler atentamente as instruções. A geringonça oferecia uma serie de opções: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro e chá”. Decidiu pelo café com leite. Adorava café com leite. De graça, até injeção no olho esquerdo ou ovo podre, cru e cozido, com bastante sal, certamente caia de bom grado.
Apertou o botão correspondente. O copinho plástico descartável pousou suave na bandeja. Partiu para o segundo passo: “muito açúcar, pouco açúcar, médio ou amargo”. Médio. Doce demais, não descia. Amargo, bastava a vida. O açúcar caiu na medida escolhida e milimetricamente calculada. Ação seguinte: pressionar a tecla de cor azul que indicava “CAFÉ COM LEITE” e partir para o abraço. Ao comprimir, contudo o botão que despejaria a bebida, a coisa entrou em pane.
Assim, sem aviso, sem dar o menor sinal. Simplesmente a operação enguiçou. Num repente, o dispositivo engoliu o copo, e, como se não bastasse, com o açúcar dentro. Piribêncio achou estranho, mas se conformou. Olhou ao redor. A moça da recepção falava com alguém ao telefone. Pelo sorriso, papeava com o namoradinho. Dos quatro pacientes que esperavam vez, dois eram mulheres e ambas folheavam umas revistas de moda do tempo do onça. Um senhor de boné vermelho, parecia cochilar e o sujeito, ao lado, quebrava a cabeça fazendo palavras cruzadas.
Ninguém com a atenção voltada para ele. Portanto, os presentes não chegaram a perceber a sacanagem pela qual passara. Voltou a ler as instruções no pequeno visor: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro, chá”. O dedinho indicador ávido e certeiro investiu no que mais gostava. Repetiria a dose. “CAFÉ COM LEITE”. Reiterou as fases anteriores. Afinal das contas, porém, o mesmo problema atonou teimoso. Tornou a perscrutar em derredor. O quadro não mudara, com exceção do velho que cruzara as pernas. Tentou a terceira investida agora com mais vagareza, ponto por ponto, sem afobação.
Quem sabe, na ânsia ávida de ingerir o bendito “quentinho”, atrelado à dor que não treguava, tivesse digitado um dos protocolos erroneamente. Sem contar com o fato das letras serem pequenas e os comandos minúsculos. Qual o quê! A mesma historia de antes ascendeu, apatetado e ímprobo. Ficou vermelho de raiva. Bufou enfezado enquanto coçava o lóbulo da orelha. Pensou em incomodar a secretária. Droga! Para lhe servir um simples cafezinho? Desistiu da ideia.
A propósito, a jovem continuava a falar ao telefone. Desviou o fone por um segundo apenas para anunciar o nome do próximo que ocuparia a cadeira da dentista. Uma senhora com uma criança acabava de sair. Foi à vez do velho de boné vermelho que cochilava. E então? Não era suficientemente inteligente e esperto para preparar uma simples infusão? Ainda mais num equipamento ultramoderno em que não precisava fazer nada, a não ser ler cuidadosamente as indicações de utilização correta e, por fim, mecanografar meia dúzia de redondinhos de cores variadas.
Não! Não desistiria, jamais. Partiu para a quarta vez. Tirou os óculos e leu tudo de novo, tintim por tintim: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro, chá”. Registrou a sua concentração obstinada no “CAFÉ COM LEITE”. Sacanagem ou não, a engenhoca piripaqueou de novo. Desta feita, mais decisiva e abusada. Engoliu o copo e jogou o açúcar no chão. Inconformado, Piribêncio aloprou. Perdeu a paciência, enrubesceu as maçãs do rosto. Não tivesse ninguém ali, mandava um belo de um chute bem dado naquela droga. Muita gente em volta. Câmeras monitorando. Conteve os ânimos. Respirou. Partiria para a derradeira.
Saísse o café agora, tudo azul, com bolinhas da mesma cor. Caso contrário, acomodaria o traseiro ao lado dos demais, comportado e conformado, e aguardaria “na sua”, até ser chamado. Assim foi. Entretanto, no instante final resolveu mudar o botão do favoritismo. Talvez a droga fosse uma espécie rara de empacação com a sua eleição pelo coffee with cream. Optou, à contragosto, pelo CAPPUCCINO. Reproduziu, pois, passo a passo todas as etapas. Até aquele estágio, tudo as mil, muito legal e prático. Copo no lugar certo, açúcar, dosagem correta da água... entretanto na hora de sustentacular o amarelinho indicador do preparado finalizado, again, em repetência, pá pum, a porcaria travou e degringolou tresloucada.
Nessa pancada, sugou o copo, e esparramou o açúcar. Piribêncio saiu da tranquilidade aparente para a tragédia anunciada. Perdeu o chão. Irritado, encolerizado, espumando ódio pelas ventas, e de lambuja, num acinte de enfezo, apertou desordenadamente os manetes livres de uma só vez: operou a sua desdita empombada (altercação) uma, duas, três, dez vezes...
Nesse fluxo desigual, um copinho apareceu na bandeja, o açúcar saiu na dosagem certa. O Cappuccino, porém, ao invés de vazar no local destinado, subitamente esguichou à frente, espirrando de maneira frontal, o líquido quente diretamente em seu rosto. Pego, assim de surpresa, Piribêncio levou as mãos aos olhos, emitiu um grito horrível, lancinante, ao tempo em que empreendia um espetacular palavrão, saltando de banda, como um gato assustado. Às cegas, tropeçou numa mesinha, perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão junto com um vaso de plantas em meio a um monte de cacos que se espalhou fragmentado pelos ladrilhos. O troço seguiu desmoderado, não parou aí.
Aliás, não parou mais. Continuou dando vazão às operações numa contraversão de ciclos por conta e risco, descontroladamente desgovernada. Nessa fuzarca, liberava ora copinhos um atrás do outro e açúcar, água fervendo e café, ora derramando e espalhando as variadas opções das indicações do cardápio. Acabou, nessa enxurrada, exausta, vencida, pegando fogo em meio a uma poça enorme de chocolate, chá e café. Com a galera e a secretária aos berros, a dentista veio lá de dentro, apavorada, deixando o paciente que começara a atender boquiabertamente escancarado.
Ela própria, ao se afrontar com a cena inusitada, arreganhou as orelhas à sua cavidade de entrada do tubo digestivo e se viu socorrida pelos bombeiros que os albergados das salas vizinhas chamaram às pressas. Piribêncio, de roldão, seguiu atrás, braços dados com dois paramédicos. Caso passado, os envolvidos socorridos, a esfuziante estilista que colocava sorrisos em gengivas cariadas, mandou jogar a máquina no lixo. Literalmente.
Fonte:
Enviado pelo autor, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro
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