sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Estante de Livros (A casa sem fim, de Fernando Vugman)

(resenha por Maria Marta Furlanetto*).


“... se você está esperando uma história ágil e repleta de emoções, aconselho a desistir por aqui mesmo.”

É assim que Vugman investe em seu leitor-modelo. Esse autor não se incomoda em contar histórias que não tenham final luminoso – ainda que ele seja o personagem, ou porque ele é o personagem.

Nos vinte contos de A casa sem fim, escritos de 1978 a 2009, há uma longa e desconcertante construção de vida, de lembranças e de morte. A construção e a desconstrução das casas – seu mote – figuram o perpétuo caminhar do andarilho, ora perdido, ora se encontrando, ora indo, ora retornando. Sempre haverá uma casa, familiar e estrangeira ao mesmo tempo, representando seus próprios passos no presente e tudo o mais que ficou para trás sem morrer. O fantasma que perambula solitário, acompanhando o personagem, são os fragmentos do passado sendo olhados pelo prisma do sonho. O personagem caminha sem rumo, perde-se na distância, assusta-se, mas reencontra sempre o vento, as areias macias de uma praia, as alturas de um céu incrivelmente luminoso e azul, e os fantasmas vívidos de almas agora distantes.

Não é de surpreender que os contos de Fernando sejam autobiográficos (há uns mais que outros, na literatura): dissimulando ou não, não há como fugir da linha de um ir e vir, mesmo que contemos a história do “outro”, ou dos objetos, dos símbolos, das lembranças. Aqui, o desdobramento do autor não precisa de rótulo. Ele aí põe a máscara do “eu”, do “ele”, do gavião, do poeta, do que estiver sentindo. E sempre encontra uma casa, sombria ou iluminada, solitária ou plena de vozes e sombras antigas. Há portas surpreendentes, com maçanetas concretas e simbólicas que ele sofregamente agarra, querendo encontrar algo. Pensa mesmo em fazer perguntas aos objetos, pistas para sua leitura do que tinha sido.

Apesar da atmosfera de sonho e de um silêncio triste, Vugman é surpreendente e poeticamente preciso em sua evocação de detalhes na paisagem e no corpo: aqui, “orquídeas bizarras pendiam dos troncos cobertos de musgo e fungos”; ali, o sol traz “um calor manso e luminoso”; acolá, jovens “levam consigo a manhã”. Aqui, “aquele débil serzinho verde gemia e seu gemido flutuava em nosso nada”; ali, “Das nuvens carregadas ecoaram os trovões como tambores de batalha.”; acolá, “elevações que mal tocavam o firmamento árido, aquelas montanhas escuras e escarpadas”.

“Ao mar” lembra um conto de Edgar Allan Poe: “Descida no Maelstrom”, em que um pescador descreve para um visitante os efeitos de uma tempestade sobre um barco apanhado por um redemoinho na distante Escandinávia, sendo ele mesmo participante daquele horror.

No longo passeio dentro de si mesmo, como passageiro e outro, agora visitante, Vugman desfila a solidão das casas, que são seu próprio reflexo: em seu abandono, elas trazem a poeira do tempo, do descaso, mas há algo mais, imponderável: as pistas que os olhos não veem, mas que a alma apanha delicadamente e põe de volta nos antigos lugares – para surpreender com gesto silencioso o sentido das coisas que se agarraram nas entranhas, e continuam lá. O retorno, a cada vez, é tanto mais impressivo quanto persiste a possibilidade de os objetos olharem, de seu abandono, o personagem que retorna, insistindo em sua permanência magoada, que traz familiaridade e susto.

É assim que, como leitores, passeamos por um diário que nos apresenta casas, objetos, portões, quintais, córregos, montanhas e espaços áridos, figuras delicadas quase sem nome que serpenteiam pelas histórias com pés macios e depois somem, na luz do sol ou nas sombras da noite.

Vugman fala da permanência da casa. E exatamente nesse conto (A permanência da casa) o personagem acorda e vê que em torno não há “nada”. Vê-se numa planície iluminada e põe-se a andar, oprimido pela “liberdade de amarras”. Caminha sempre retornando para o mesmo lugar, mas no contínuo jogo de luz e sombra acaba se dando conta de que se transformava, e nem pensava mais em voltar: queria seguir adiante, abrindo trilhas – até sentir-se “incomodado” e descobrir que retornava ao ponto de partida: a casa permanecia lá.

Este passeio pelas fiéis casas de Vugman me leva a um horizonte bem distante no tempo e no espaço: conta-se que o conquistador Gêngis Khan, ao tomar conhecimento das casas de pedra construídas nas cidades pelos chineses (dinastia Jin), ficou muito espantado, desejando saber como eles as carregavam de um lado para o outro. Apesar da mobilidade de suas tendas, também eles, como guerreiros, iam e vinham, e elas acumulavam lembranças da mesma forma.

Ao nos contar sua viagem, Vugman roça a fímbria do indizível – talvez por isso seja conciso –, de modo que nos cabe, como leitores, o esforço de esvaziar a mente para preenchê-la em seguida com cores e sabores, estranhos ou familiares, para usufruir desse acontecimento com as marcas do mais além... FIM – essa tática inútil de cercar o que nos escapa (como diria Vugman).
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* Maria Marta Furlanetto - Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem e do curso de Letras da Unisul; Dra. em Linguística Aplicada. Pesquisadora na linha “Texto e discurso”.

Fonte:
http://www.escritoresdosul/a_casa_sem_fim,_de_fernando_vugman.html.
Acesso em 17.10.2011.

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