quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Newton Sampaio (Bomba de Santo Antônio)

(contos do sertão paranaense)

O vilarejo sem história, apertado em todos os ângulos pelas sentinelas inflexíveis das serras, libertava-se pouco a pouco da serena dormida sob um céu enfeitado de estrelas. A alvorada, sem clarins nem tambores, ia espantando, bem pra lá dos grotões e dos picos as grandes sombras inúteis. Para que os telados das casas sem simetria começassem a fuzilar como as águas do rio. Do rio largo que vinha de muito longe caprichando arabescos nos vazios deselegantes das cordilheiras. Que vinha de longe e arrastava, não sei para que mistérios, as vibrações daquele povoado distante. Daquele povoado perdido no fundo do sertão paranaense.

Na última esquina um sírio gorducho abre a casa de armarinhos. O sírio varre o assoalho cuspinhado, diz um palavrão impossível por causa do vira-lata sem vergonha que queria se coçar nas portas do respeitável estabelecimento. Diz o palavrão no momento exato em que o vizinho da frente, sentando na beira do catre, amaldiçoa a botina ringideira. A mulher chega e ajuda. Benedito Olivério exibe, na risada de bem-aventurado, uma dúzia de maus dentes. E Nida volta à cozinha, onde as crianças esfregam os olhos ainda cheios de sono e de remela, e reclamam choramingando um naco de batata assada.

O Tonico, filho mais velho, parado na porta que dá para o quintal, espia o longínquo e azulado Pico Agudo. De repente diz:

— Mãe. Hoje eu queria comer pão.

— Cala a boca, feição de enorme. Já se viu esse luxo?

— Mas hoje é o meu dia...

Intervém Benedito Olivério:

— Patroa. Faça a vontade do menino. Pelo menos no dia de Santo Antônio.

Nida resmunga seu protesto de todas as horas. E fecha a cara quando o marido, ajeitando a cinta, procura um níquel de duzentos réis.

De tardinha, só o Tonico não comparece à novena. Fica no quintal da casa encasmurrado, longe dos busca-pés, das bombas de parede. Longe da garotada que aplaude o balão subindo, o balão inchado como fêmea pandorga.

Depois da novena, os irmãozinhos de mãos vazias, mas num assanhamento sem conta, vão peruar a festa das outras crianças.

O Tonico se chega ao pai.

— Eu queria rebentar uma bomba, hoje. Só uma.

Nida interrompe violentamente.

— Diabo de guri pedinchão! Pensa que a gente plantou dinheiro na horta?

— Não se amofine, mulher. É comigo que ele está falando. – E para o filho: “pega lá, rapaz.”

Nida não se conforma.

— É um esbanjamento nesta casa... Tomara que essa bomba rebente nas fuças de vocês.

Tonico sai em silêncio. Com vontade, com uma bruta vontade de comprar uma bomba do tamanho do mundo e jogá-la de encontro à lua, no crescente.

— Seu Indalécio. Qual é a maior bomba que o senhor tem aí?

— A maior é esta que veio como brinde. Mas esta eu não vendo.

— Venda seu Indalécio. Lhe dou quatrocentão por ela.

O velho sente uma força diferente no olhar do guri. E lhe dá de presente a maior bomba daquele comércio, recomendando:

— Cuidado menino. O estouro desse não é estouro de traque, não. 

Na esquina a gurizada se aglomera, inquieta. E o filho de Benedito Olivério grita:

— Pessoal. Espia só o estouro desta.

Aperta na mão direita o famoso embrulho. Precisa tomar impulso, arreda um passo, arreda dois, descreve meia curva com o braço distendido, projeta a bomba que volta intacta da parede da casa.

Sai da experiência ainda mais acabrunhado. Quisera, como nunca, uma pelota do tamanho do mundo para atirá-la de encontro à lua no crescente. Por isso caminha de cabeça baixa sozinho para o lado do Rio das Cinzas. Do rio que banhava aquele vilarejo distante. Do rio que vinha muito de longe, caprichando arabescos nos claros deselegantes das cordilheiras, fazendo redemoinhos em fundos grotões cheios de história…

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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