quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Nilson Monteiro (Mão)


Pousou no balcão, ao meu lado. Grossa. Dava pra ver. De onde teria vindo aquela borboleta vincada, cansada talvez? Que terras eram aquelas que abrigavam seus vincos, quase cor de vinho, suas unhas, as erosões talhadas em sua carne?

A mão não me perguntava, nem me explicava nada. Pousou indiferente. Com calos aqui e ali, sugerindo vidas. Com riachos roxos em suas linhas. Simplesmente pousou. E ficou. Tamborilou os dedos, pra lá e pra cá no balcão, como a desfrutar do espaço livre para sua existência. Mas não avançou e nem recuou. Parou. Um cheiro geográfico, paranaense, quem sabe?

Parada, a borboleta de cinco pétalas, criava mais emoção, ficção. Instigava. Inspirava. Lavrar, colher, levar o milho para o paiol, derriçar o café, cuidar dos cavalos, afagar suas crinas, puxar água do poço, rachar madeira, quem sabe o labor daquela borboleta e seus dedos de unhas enlutadas? Ou quem pode adiantar os destinos que aquela mão ainda planeja? Talvez remexer o chão para dele brotar o verde? Talvez enterrar uma ex-vida? Nada dizia. Nem questionava. Parada.

Será que não seria a executora de belas sinfonias, tragando poesia no balcão antes de causar emoção por teatros e óperas? Não, não era uma mão fina, bem tratada, de unhas caprichadas nos melhores salões e encharcada de bálsamos. Mas, quem disse que só essas conseguem executar as obras dos imortais ou, melhor, compor novas delícias sonoras? Onde está o sábio que prova que a poesia só pode ser destilada de mão sem calos, cheirosas e intelectuais?

Sim ou não. Nada parecia ferir a paciência e a sensibilidade da personagem. Vez ou outra levantava breve voo, mas logo depois espalmava-se sobre o balcão, indiferente às minhas elucubrações: não poderia ser o instrumento de um preciso bisturi, operando as dores de homens, mulheres e crianças? Ou célere instrumento de um esportista, acostumado à fama? Ou até mesmo o funil de informações, passadas a limpo na neurose das teclas de uma máquina de Redação?

Havia pelos sobre ela, sim. Poderia ser de um tosquiador de ovelhas, nobre e triste operário que descobre aqui para cobrir ali. Ou mesmo de um gênio da argamassa, mestre nas quantidades de cimento e areia e tijolos e água para erguer casas, prédios, pontes etc. Sim, poderia, por que não?, ser de um preocupado bancário, às voltas o dia todo com milhões e milhões de cruzeiros e seus salários no final do mês...

Desta vez o gesto foi mais largo, demorado. Ela traçou parábolas no ar, abandonando a frieza do balcão. Subiu, desceu. Levantou, caiu, garça louca, esparramou-se no chão seco do balcão. Garça não, borboleta. Borboleta é mais infantil, agrada mais às crianças, é mais ágil, brinca com os olhos e lembra a existência das matas, dos matos, dos quintais, do barro grudento, dos rios...

Borboleta.

Assim como pousou, alçou voo. O balcão ficou de novo frio, gelado, impessoal.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

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