A sirene tocou, indicando o final da aula. Os alunos apanharam seus materiais e retiraram-se apressadamente. O Professor, já de costas para a classe, apagava do quadro negro os apontamentos que fizera, sem atentar para o detalhe de que a sala não ficara vazia. Ao acabar seu meticuloso trabalho voltou-se para apanhar seus livros, confirmando a sua suspeita:
— Adorei a aula, Professor. - disse Míriam.
— Foi? Que bom.
— Apenas estou com algumas dúvidas.
— Pois não. É só dizer, eu estou aqui para tirá-las. Para isso servem os professores.
— Bem... eu não gostaria que fosse aqui. Não podemos ir a algum lugar mais sossegado? Lá em casa, por exemplo. Meus pais viajaram e nós poderíamos conversar tranquilamente, a sós.
O Professor olhou em seus olhos e um hiato de tempo abriu-se, então. Ele retornou anos e anos em sua lembrança, para recordar quando pela primeira vez olhos tão belos quanto aqueles o fizeram sentir o que ele chamou de amor. Ele era moço, muito moço ainda, idealista, romântico e sonhador. Luísa aparecera em sua vida por um destes acasos do destino, uma simples colega na sala de aulas, uma colega extremamente bonita e sedutora. Ele, um promissor herdeiro de relativo patrimônio e possuidor de sólida cultura. Atração, namoro e casamento sucederam-se numa pequena fração de tempo.
Depois de algum tempo, a dura rotina cotidiana transformou o sonho em pesadelo. O egocentrismo de Luísa a impedia de suprir a carência afetiva dele e tudo desmoronou. Vieram as discussões, as brigas. A insistência de Luísa em não querer filhos, em defesa da sua beleza estética, foi a gota d'água, e tudo acabou.
Para ela, uma rentável separação; para ele, a desintegração de um sonho, da ilusão de ser feliz, completar e ser completado por uma mulher, viver por e para alguém, amar e ser amado. Ele trouxera em si, até então, a cândida imagem de sua mãe e transportava este sentimento para todas as mulheres, fazendo delas pequenas deusas, seres puros, almas perfeitas, sem máculas e que jamais poderiam ser sequer magoadas. Luísa destruíra toda a sua concepção acerca do ser feminino. Para ele, agora, elas não passavam de seres dissimulados, falsos e mentirosos, que se compraziam em perpetuamente iludir o sexo oposto, deliciá-lo com seus prazeres para, então, enganá-los sordidamente.
Ele fugira. Fugira de Luísa e de todas as mulheres que depois surgiram, fugira do mundo. Apenas encontros casuais, contatos frugais e gozos banais. Ele fugira até de si próprio, refugiando-se em seu subconsciente.
E agora aparecia Míriam. Míriam que o olhava com ternura e lhe falava de amor, Míriam que quase o fazia tornar a acreditar em tudo o que já não acreditava, com seu jeito meigo de pós-adolescente. Míriam e seus lábios que diziam ter tanto a dar, seus olhos que brilhavam ao seu olhar, seu corpo que o fazia ter loucas fantasias, um convite ao prazer.
— Desculpe, Míriam, mas hoje eu vou estar muito ocupado.
— Tudo bem, Professor, fica para outra oportunidade.
*** *** ***
A noite transcorria fresca e calma. Alguns dias se passaram desde a objetiva "cantada" de Míriam. O Professor estava em casa, confortavelmente recostado no sofá, assistindo televisão e pensando. Pensando que buscara aquele recanto, aquele lugar tranqUilo do interior como um refúgio. Um refúgio do mundo, das pessoas e de si próprio. E logo ali o Senhor dos Seus Pesadelos viera buscá-lo, no corpo de Míriam: o Amor. E o Professor, que tanto fugira, deparava-se com ele e voltava a ver que este mesmo Senhor fora, outrora, o Dono dos Seus Sonhos.
Batem à porta e a confusão se fez maior quando, ao abri-la, depara-se frente a frente com Míriam.
— Boa noite, Professor.
— Boa noite, Míriam.
— Posso entrar?
— Claro.
Ela entra e senta-se no sofá, ele ao seu lado, olhando-a.
— O que há?
— Não dá mais. Eu juro que não aguento mais. Será que você não entende que eu te amo? Será que você não percebe que tudo que eu quero é ser sua, que só tenho ido ao colégio para ver você? Poxa, será que você é mesmo assim tão insensível? Será que não é nada disso tudo que eu imagino? Eu sei que você não é assim. Por favor, quebre este gelo. Eu não consigo parar de pensar em você!
Houve um brevíssimo silêncio. Lágrimas escorriam dos olhos dela. Ele se enternecera e sentia, mais uma vez, regredir anos para voltar a ser aquele jovem idealista, romântico e descobrir que Míriam estava a externar o que também ele já sentira ardentemente. Ele cedera, quebrara-se o encanto e uma porta há muito tempo fechada abriu-se: ele deixava o coração agir.
Envolveu-a nos braços e beijou-a.
— Eu te amo, disse ela.
— É. Eu acho que sim, respondeu-lhe.
A partir daí os corpos falaram mais que as bocas e eles se amaram, como nunca haviam amado antes.
*** *** ***
A reunião transcorrera animada. Foram delineados todos os pontos básicos para a fundação do Grêmio: estatuto, diretoria, sócios, direitos e deveres. Quando tudo acabou, Álvaro arrastou o Professor pelo braço e foram para um barzinho sossegado.
— Professor, a reunião foi o máximo, não acha?
— Realmente, foi muito produtiva.
O Professor via-se em Álvaro, quando ainda nos primeiros anos da juventude: idealista e entusiasta.
— Você vai longe, Álvaro.
— Talvez, Professor, talvez. Como se não bastasse esta base que criamos para o nosso Grêmio, terei ainda uma outra feliz reunião hoje.
— É? O que?
— Vou ficar noivo.
— Mesmo? Quem é a felizarda?
— Uma aluna sua: a Míriam.
O impacto não poderia ser maior. E então, o que acontecera? O Professor não sabia, ninguém saberia, nenhum de nós poderá saber. O certo é que no dia seguinte o Professor não foi ao colégio, nem no outro, nem em dia nenhum mais.
Ninguém daquela cidade saberia dizer o que acontecera com ele, para onde fora. O Professor simplesmente desaparecera. Enquanto na festa de noivado, Álvaro sorria feliz e Míriam relembrava os momentos que passara junto ao Professor, acreditando que ainda haveria muitos outros, ele partia, em busca de um outro mundo, onde não existissem ilusões.
— Adorei a aula, Professor. - disse Míriam.
— Foi? Que bom.
— Apenas estou com algumas dúvidas.
— Pois não. É só dizer, eu estou aqui para tirá-las. Para isso servem os professores.
— Bem... eu não gostaria que fosse aqui. Não podemos ir a algum lugar mais sossegado? Lá em casa, por exemplo. Meus pais viajaram e nós poderíamos conversar tranquilamente, a sós.
O Professor olhou em seus olhos e um hiato de tempo abriu-se, então. Ele retornou anos e anos em sua lembrança, para recordar quando pela primeira vez olhos tão belos quanto aqueles o fizeram sentir o que ele chamou de amor. Ele era moço, muito moço ainda, idealista, romântico e sonhador. Luísa aparecera em sua vida por um destes acasos do destino, uma simples colega na sala de aulas, uma colega extremamente bonita e sedutora. Ele, um promissor herdeiro de relativo patrimônio e possuidor de sólida cultura. Atração, namoro e casamento sucederam-se numa pequena fração de tempo.
Depois de algum tempo, a dura rotina cotidiana transformou o sonho em pesadelo. O egocentrismo de Luísa a impedia de suprir a carência afetiva dele e tudo desmoronou. Vieram as discussões, as brigas. A insistência de Luísa em não querer filhos, em defesa da sua beleza estética, foi a gota d'água, e tudo acabou.
Para ela, uma rentável separação; para ele, a desintegração de um sonho, da ilusão de ser feliz, completar e ser completado por uma mulher, viver por e para alguém, amar e ser amado. Ele trouxera em si, até então, a cândida imagem de sua mãe e transportava este sentimento para todas as mulheres, fazendo delas pequenas deusas, seres puros, almas perfeitas, sem máculas e que jamais poderiam ser sequer magoadas. Luísa destruíra toda a sua concepção acerca do ser feminino. Para ele, agora, elas não passavam de seres dissimulados, falsos e mentirosos, que se compraziam em perpetuamente iludir o sexo oposto, deliciá-lo com seus prazeres para, então, enganá-los sordidamente.
Ele fugira. Fugira de Luísa e de todas as mulheres que depois surgiram, fugira do mundo. Apenas encontros casuais, contatos frugais e gozos banais. Ele fugira até de si próprio, refugiando-se em seu subconsciente.
E agora aparecia Míriam. Míriam que o olhava com ternura e lhe falava de amor, Míriam que quase o fazia tornar a acreditar em tudo o que já não acreditava, com seu jeito meigo de pós-adolescente. Míriam e seus lábios que diziam ter tanto a dar, seus olhos que brilhavam ao seu olhar, seu corpo que o fazia ter loucas fantasias, um convite ao prazer.
— Desculpe, Míriam, mas hoje eu vou estar muito ocupado.
— Tudo bem, Professor, fica para outra oportunidade.
*** *** ***
A noite transcorria fresca e calma. Alguns dias se passaram desde a objetiva "cantada" de Míriam. O Professor estava em casa, confortavelmente recostado no sofá, assistindo televisão e pensando. Pensando que buscara aquele recanto, aquele lugar tranqUilo do interior como um refúgio. Um refúgio do mundo, das pessoas e de si próprio. E logo ali o Senhor dos Seus Pesadelos viera buscá-lo, no corpo de Míriam: o Amor. E o Professor, que tanto fugira, deparava-se com ele e voltava a ver que este mesmo Senhor fora, outrora, o Dono dos Seus Sonhos.
Batem à porta e a confusão se fez maior quando, ao abri-la, depara-se frente a frente com Míriam.
— Boa noite, Professor.
— Boa noite, Míriam.
— Posso entrar?
— Claro.
Ela entra e senta-se no sofá, ele ao seu lado, olhando-a.
— O que há?
— Não dá mais. Eu juro que não aguento mais. Será que você não entende que eu te amo? Será que você não percebe que tudo que eu quero é ser sua, que só tenho ido ao colégio para ver você? Poxa, será que você é mesmo assim tão insensível? Será que não é nada disso tudo que eu imagino? Eu sei que você não é assim. Por favor, quebre este gelo. Eu não consigo parar de pensar em você!
Houve um brevíssimo silêncio. Lágrimas escorriam dos olhos dela. Ele se enternecera e sentia, mais uma vez, regredir anos para voltar a ser aquele jovem idealista, romântico e descobrir que Míriam estava a externar o que também ele já sentira ardentemente. Ele cedera, quebrara-se o encanto e uma porta há muito tempo fechada abriu-se: ele deixava o coração agir.
Envolveu-a nos braços e beijou-a.
— Eu te amo, disse ela.
— É. Eu acho que sim, respondeu-lhe.
A partir daí os corpos falaram mais que as bocas e eles se amaram, como nunca haviam amado antes.
*** *** ***
A reunião transcorrera animada. Foram delineados todos os pontos básicos para a fundação do Grêmio: estatuto, diretoria, sócios, direitos e deveres. Quando tudo acabou, Álvaro arrastou o Professor pelo braço e foram para um barzinho sossegado.
— Professor, a reunião foi o máximo, não acha?
— Realmente, foi muito produtiva.
O Professor via-se em Álvaro, quando ainda nos primeiros anos da juventude: idealista e entusiasta.
— Você vai longe, Álvaro.
— Talvez, Professor, talvez. Como se não bastasse esta base que criamos para o nosso Grêmio, terei ainda uma outra feliz reunião hoje.
— É? O que?
— Vou ficar noivo.
— Mesmo? Quem é a felizarda?
— Uma aluna sua: a Míriam.
O impacto não poderia ser maior. E então, o que acontecera? O Professor não sabia, ninguém saberia, nenhum de nós poderá saber. O certo é que no dia seguinte o Professor não foi ao colégio, nem no outro, nem em dia nenhum mais.
Ninguém daquela cidade saberia dizer o que acontecera com ele, para onde fora. O Professor simplesmente desaparecera. Enquanto na festa de noivado, Álvaro sorria feliz e Míriam relembrava os momentos que passara junto ao Professor, acreditando que ainda haveria muitos outros, ele partia, em busca de um outro mundo, onde não existissem ilusões.
Fonte:
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.
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