sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Newton Sampaio (O atrapalhador de noivados)

(
Contos do Sertão Paranaense)

A dança, na casa do Fabiano do Boqueirão, fervia animadíssima. Na redondeza não se tivera notícia, em tempo algum, de festança mais concorrida.

Gente de muito longe aportara à fazendola: atendendo ao convite barulhento do Fabiano, que planejara celebrar, o santo de sua devoção de maneira nunca vista até aquele dia. E de fato, os convivas estavam boquiabertos.

— Mas, que despropósito! O compadre Fabiano até parece que tirou a sorte grande...

Foram três dias de comilança exagerada, de rezas, com sermão muito bonito, de colossais corridas de cavalos. E para terminar, um baile de arromba.

Às onze e pouco entrou na sala um conhecido de Fabiano que não pudera assistir ao começo da festa. Miguel Ignácio chamavam-nos todos. E a seu nome as caboclas acompridavam logo um olhar cheio de secretos desejos. É que o Miguel Ignácio tinha fama de ser o rapagão mais desempenado do sítio vizinho. Não havia quem resistisse à teia de seus galanteios. Até andavam falando de coisas a respeito dele e da dona Alcina, mulher do segundo suplente de delegado.

Infundados ou não esses boatos, o fato é que as moças tinham uma quebrantura invencível quando dançavam com o Miguel Ignácio. Seu corpo atlético, seus dentes claros — tudo, enfim, servia para bulir com o coração das morenas do Boqueirão.

Miguel Ignácio apenas entrou, mexeu os olhos nas quatro direções da sala. E viu, bem escondidinha num canto, a Joaninha, que era de uma timidez fora de propósito. Enveredou para ela, jactanciosamente, sabendo-se alvo de muitos olhares. Puseram-se a dançar.

— Como vai essa flor, Joaninha? Não sentia saudades de mim?

— Não.

— Por quê?

— Eu tenho agora em quem pensar...

(O caboclo desapontou).

— … Estou noiva.

— Verdade? Não sabia... Também quanto tempo há que não apareço por cá.

Pigarreou para disfarçar o embaraço.

— E quem é o felizardo?

— O Luiz.

— Quem? O Luiz Alves?

Riu com gosto.

— Logo quem!

Procurou com a vista o noivo da Joaninha. Lá estava encostado à porta, carrancudo, solene, seguindo-os com os olhos maus, o Luiz Alves.

— Aquele caboré (caipira feio e melancólico) desajeitado? Que coisa, Joaninha? Você é mulher pra casar com homem fino. Que é que vale o Luiz Alves? É um poaia (sem graça)! Tem sangue de barata. Só porque a empreitada dele é grande?

— E você com isso?

— Eu? Nada... mas tenho pena de ver a flor bonita do Boqueirão cair nas mãos daquele nhengo (imbecil).

E Miguel Ignácio começou a menosprezar o outro. Ia apontando à moçoila todos os defeitos do noivo. 

A música parou e o caboclo ainda tinha palavras na boca para dizer.

Logo em seguida, o Luiz Alves procurou a noiva.

— O que foi que ele lhe disse?

— Nada...

— Então por que vocês me olhavam tanto?

— A gente ‘tava pondo reparo no seu cabelo, nos olhos de você...

Luiz Alves ficou vermelho de raiva.

— Então...

Ela lhe contou tudo. Discutiram. Endossou a opinião do galanteador. E romperam o noivado. 

Dali a pouco o Miguel Ignácio viu que a Joaninha estava só.

— Como vai o seu caboré formoso?

— Não sei. Nós brigamos.

— Ora essa. Por quê?

— Você disse...

Miguel Ignácio quase caiu de tanto rir.

— Pra que isso, boba? Então você quer vir pro meu lado? Não pense que eu vou casar com moça do Boqueirão. Inda mais quem já foi noiva do Luiz Alves.

A marcha cessara. Joaninha mergulhou no quarto mais próximo, chorando.

No terreiro, os dois homens rolaram, enfurecidos. Venceu o mais forte. Era inevitável. E o Luiz Alves ficou no chão desacordado de tanta bofetada.

Miguel Ignácio virou-se para o lado, à procura do chapéu, que caíra longe, durante a luta. E a Joaninha ali estava, com os olhos cheios de lágrimas, limpando-lhe a aba com a barra do vestido.

A vida no Boqueirão continuou a correr. Não sei se o compadre Fabiano (era um santo homem, o compadre Fabiano) deu outra vez uma festa daquelas. Só sei que o Miguel Ignácio casou-se com Joaninha. Tem já quatro caboclinhos, dizem. Eu conheço somente o mais velho. Chama-se Luiz. E é ainda mais barulhento que o pai.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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