DOMINGO, ONZE da manhã. Horário de pico. Restaurante lotado. Almoço sendo servido a toda velocidade. Nenhuma mesa disponível. Na calçada, uma fila quilométrica de pessoas espera a vez para ingressar. Ao lado do pianista tocando repertórios populares, uma família ocupa a mesa cinquenta e dois. Não outra, senão os consanguíneos do desembargador Sizino de Albuquerque Garranchoso (encabeçado por ele), sua esposa Beatriz, as duas filhas, Sara e Simone e também o único filho varão, Sizino de Albuquerque Garranchoso Junior. Almoçam tranquilamente enquanto o músico, ao instrumento, muda o tom das notas, passando a executar melodias românticas.
Numa mesa um pouco afastada, a de número sessenta e um, se vê capitaneada pelo doutor Moacir Fortunato, delegado de polícia. O insigne representante da lei se faz acompanhar também da sua prole. Por esta razão, está sentada à sua beira, a esposa, dona Mara, companheira de quarenta anos e o casal de filhos, Augusto, de vinte e Liliane, de vinte e dois. Os garçons, num vaivém incessante, transitam em ziguezagues servindo os muitos pratos do cardápio, sem falar nas garrafas de cervejas e refrigerantes, bem ainda, para alguns mais exigentes, o vinho ao ponto e o champanhe espumante. Todos estão radiantes, em particular o delegado Moacir Fortunado, em vista da Liliane, a sua mais velha, comemorar a passagem de seu natalício. De repente, o pai coruja dá início a uma cantoria de parabéns, na qual ao ser terminada, incrivelmente toda a galera, em peso se solidariza, irmanada, ajudando o velhote no tradicional cumprimento do “viva à aniversariante”, culminando as felicitações com estrondosas palmas embaladas pelo pianista que interrompe o que executa e passa a mandar brasa num improvisado “Parabéns pra você”.
As famílias, naquele recinto, com gente saindo pelo ladrão, nunca se viram. Até aquele momento, todo o pessoal se fazia desconhecido uns aos outros. Nada, portanto, os unia em algo comum. Apenas os alinhavam o almoço no mesmo espaço seguido da solidariedade e do carinho da troca de gentilezas. Ao saírem dali, possivelmente jamais se esbarrariam. Cada grupo distinto seguiria o seu caminho permanecendo as lembranças do evento oculto nas memórias inesquecíveis de um instante imperdível que se perpetuou. Entretanto, meia hora depois, talvez menos, dona Mara é acometida por um piripaque repentino. Se engasga com alguma coisa que engoliu por descuido e o alimento, sabe-se lá por qual motivo, a faz entrar em estado de pânico.
De fato, a senhora passa a se sentir mal, a se debater, desesperada, dando a impressão, aos demais, que se sufocava com alguma entalação imprevisível. Seu estado se torna crítico. Em questão de segundos, os garçons, irmanados em suporte de socorro, tentam reanimar a pobre criatura livrando-a do desconforto. As ações por eles tomadas não surtem o efeito pleiteado. A infeliz, aos poucos, está perdendo o chão, ficando cada vez mais carente de cuidados e próxima de uma prostração infernal. O dono aparece, solidário e visivelmente nervoso, bem como o gerente. Alguns clientes palpitam... dão sugestões, enfim, um grupo se junta aos contratempos visíveis do senhor Moacir Fortunato.
Extremamente prestativo, ao tomar conhecimento daquele bafafá inesperado, e, em face do agito e de pessoas falando ao mesmo tempo, Sizino Junior salta da sua cadeira, na cinquenta e dois e corre à beira de dona Mara. Em contínuo, agarra a mulher pelas costas, levanta-a do chão com uma força jamais vista pelos presentes. Seu Moacir Fortunato, da sessenta e um, o marido, meio que apatetado, investe, furioso e aos berros, contra o impetuoso rapaz, bem como o filho Augusto. Prestes estão, pai e filho, a pegarem o maluco pelos fundilhos (o miserável, do nada, e, em meio a uma plateia pasma e endoidecida), que num ato impensado e sem nenhum tipo de explicação, agarrou dona Mara e a suspendeu em pleno ar. Todavia o quadro se faz inverossímil. Dona Mara é salva do desditoso engasgo.
Sizino em curto interregno, ao invés de um muito obrigado, ouve uma chuva de impropérios, como “vamos pegar o desgraçado na porrada? Onde já se viu desrespeitar uma senhora honesta, tomando-a pelas costas e, pior, ao lado de seu marido e filhos”’? Em meio ao pandemônio desfigurado que se segue, alguém tem a infeliz ideia de mandar ligar para a polícia:
— Meu senhor, chama os “home”! – grita o careca da mesa quarenta e nove.
— Bem pensado. Este safado precisa ir direto para a cadeia, sem mais perda de tempo – corrobora a idosa da trinta e oito:
Augusto, o filho, mais abestalhado que o pai, dá o alerta:
— Pai, pelo amor de Deus, para que chamar uma viatura? O senhor é a polícia. Acaso vai chamar a si mesmo? – Prende o cara.
O pai, coça a cabeça, ainda desatinado:
— É mesmo. Havia me esquecido...
Espumando de raiva e ódio, seu Moacir tonitrua voz de prisão à Sizino, exibindo seu distintivo da Civil acompanhada de uma poderosa arma em punho. As barbas de ser linchado, contudo, Sizino, o salvador de dona Mara, se faz ouvir, gritando a plenos pulmões e acima do estardalhaço para que todos lhe deem atenção:
— Calma, gente. Por favor, me escutem. Sou médico. Eis aqui a minha credencial. Esta senhora se engasgou. Como podem ver, está agora, fora de perigo. Apliquei nela um procedimento de compressão abdominal, ou como no dia a dia dos hospitais conhecemos como “Manobra de Heimlich.”
O senhor Moacir, estanca. Diante da identificação exibida não só para ele, como para os demais em encorpada roda, muda a postura. Guarda a arma. Enfia o par de algemas no bolso. Aos prantos, o velho desaba se debulhando em lágrimas. Chorando, abraça a esposa e os filhos. Em seguida, pede desculpas e estende os braços em atitude de agradecimento ao clínico que, por graça divina, estava no local na hora certa e se prontificou a socorrer a mulher em apuros descomedidos:
— Meu filho – diz seu Moacir à Sizino. Me perdoe. Tudo aconteceu de forma tão rápida... como iríamos supor que uma pessoa tão jovem fosse um médico e viesse em socorro de minha querida esposa?
O restaurante, ao saber do ocorrido se solidariza, e, como era de se esperar, termina com uma centena de cumprimentos e vivas atrelado a um “Deus lhe pague” sincero e sem rancores. O fato é seguido de palavras elogiosas "apogeado" com uma salva de palmas e algazarras calorosas. Aquela cena inusitada contagia até os que engrossavam a enorme fila na calçada em frente. O senhor Moacir Fortunado, delegado de polícia, em profundo agradecimento, não permite que o desembargador Sizino de Albuquerque arque com a conta. Correndo ao caixa, sem que ninguém perceba, toma para si os haveres dos gastos da família do ilustre esculápio.
O melhor de tudo acontece em sequência. Uma profunda amizade entre os dois líderes consolida aquele inesperado encontro, mudando para sempre a vida de todos os partícipes. A partir daquele bagunçado almoço, uma alicerçada e desinteressada união se propaga entre os Albuquerque e os Fortunatos. O ápice foi tão difundido que redundou em noticiário e saiu na televisão com destaque nos jornais do começo de noite. Dois meses depois, no mesmo restaurante, igual mesa, o jovem médico Sizino Júnior, filho do desembargador Sizino de Albuquerque pede publicamente ao líder da família Fortunato, em noivado, com aliança e tudo o que tem direito, a filha dele, a linda e esfuziante Liliane. Após o “sim” e as bênçãos de ambas as famílias, numa euforia açodada se fez ouvir quando os pombinhos se beijam acalorados, e, claro, ovacionados por uma nova e desta vez mais robusta e tonitruante gritaria em embalos de “vivas e vivas” ao mais novo elegante e majestoso casal.
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