terça-feira, 29 de agosto de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Almas carentes)

“A solidão era tanta, tanta e tamanha, que entrelaçava seus corações até antes mesmo de terem nascido”.
Tompson de Panasco
    

TINHA MAIS QUE MORRER O SUJEITO.  Vagabundo, desocupado, vivia pelas ruas andejando com visível dificuldade, batendo de porta em porta, vomitando a sua impotência desenfreada a quem cruzasse com ele. Tomado pelo instinto de um esmoleiro dos tempos medievais, parecia preso numa piedade calada. Aqui e acolá, implorava restos de comida, pães velhos, roupas fora de uso. E quem doasse alguma coisa - se esperasse um muito obrigado ou um Deus lhe pague - fosse tirando o cavalinho da chuva.  Aquele homem não abria a boca de jeito nenhum, para agradecer um nadinha que lhe fizessem.

Além de todos esses defeitos, terrivelmente mal-agradecido. Sem vergonha e descarado, atrevido e impávido, quando cruzava com mulheres bonitas, abria-se em gracejos e mesuras. Fazia piadinhas sem graça e pesadas. Deixava as boquiabertas raparigas com seus rebolados perdidos, inclusive as senhoras que não tinham mais rebolado, fisgadas pelo avanço da idade. O certo é que tais velhotas coravam boquiabertas e desgostosas com o infeliz.  

Um dia, um bando de desocupados e desordeiros deu-lhe algo forte para beber, e o colocaram a pique. Deu "tilte" no cabeção. Quando as irmãs do convento de São Francisco de Assis, por acaso, atinaram com o pobre, jazia o coitado, caído de bruços, numa vala aberta recentemente pela prefeitura nos arredores da cidade, as roupas quase a despencar do corpo mal nutrido e debilitado de saúde. Penalizadas, avisaram o Padre Gregório, que imediatamente providenciou uma equipe da pastoral. Resgatado, levaram-no para o banheiro público (cidadezinhas do interior tem muito desses WCs coletivos) e deram-lhe aos costados, um chuveiro em regra.

Trocaram as roupas farropoídas por novas. Fizeram-lhe a barba, apararam os cabelos e ainda descolaram um par de sapatos e até um paletó fora de moda, mas bom. Como para ele não havia isso de moda, a nova vestimenta veio a ser útil demais, até porque não se tinha notícia de algum dia os habitantes lhe terem visto vestido num paletó.

Dessa maneira, aquele andarilho, de repente, tornou-se até bem-apessoado, de personalidade firme e maneiras delicadas. Seu rosto sem a barba de semanas apresentava um aspecto jovial. Quem o visse agora, não daria para ele vinte e poucos anos, embora pela certidão, ou melhor, pelo que havia sobrado do documento, contasse trinta e cinco. Vendo-se assim, tão remoçado, o próprio não se reconheceu no espelho que lhe botaram na frente dos olhos espantados.

De fato, aquela tez refletida, deveria ser outra, menos a dele, o desgraçado, o traste, que vivia de deu em deu. “Que homem bonito – pensou com ares narcisistas – parece até artista de cinema”. Ao diabo, fosse quem fosse. Se o espelho estava ali, plantado diante de seu nariz, só poderia ser ele mesmo. Danasse o resto e tudo mais!

Bonito, simpático, atraente, passou a fazer as refeições junto com o padre, na casa paroquial que ficava colada a igreja. Poderia, agora, quem sabe, se desse a sorte, arranjar uma namorada. Mas naquele lugarejo... nenhuma rameira, ou dama que prezasse a honra, iria querer flertar com um borestia (folgado) daqueles... mesmo as encalhadas se candidatariam a viver ao lado de um homem que ninguém sabia de onde tinha pintado, se fugitivo da justiça, ou procurado por dever qualquer coisa à sociedade.

Somente ele sabia de onde provinha. Somente ele tinha as respostas e poderia falar abertamente do passado. Contudo, pobre mendigo, desprezível alma que ninguém dava importância. A ninguém interessava saber ou entender que, outrora, ele fora um rico e abastado fazendeiro, que tinha mansão, carro do ano, lojas de comércio, muitas terras, uma centena de empregados, mulher bonita e uma filha maravilhosa. Nos dizeres de Ovidio, “Donec eris felix, multos numerabis amicos; tempora si fuerint nubila, solus eris”*. Verdade, por sinal, incontestável.

O que se apurou depois, a companheira, sem mais nem menos, o abandonou e foi embora para outra localidade, a tiracolo com um sujeito esquisito, levando a filha de quinze anos (na época) e nunca mais dando sinais de vida. Ele, apavorado, sem saber o que fazer, ficou desatinado, alienado. Andou, procurou, fez mil loucuras, porém não soube, jamais topou com o paradeiro de sua consorte. Abestado e mentecapto, abandonou o sítio, as terras onde plantava café e virou andarilho. Na sua pequena e pacata Andirá, interior do Paraná, morador por mais antigo que fosse saberia dar notícias precisas. Nem da mulher ou da filha, ou do elemento que, com elas, se debandara.

Por isso, ele se tornara um nômade cigano, sem porto seguro, a vagar errante de cidade em cidade, sem paradeiro certo, alma vazia, comendo, vivendo, e se mantendo a custas da ajuda alheia. Quem, naquela localidade, iria se interessar por ele? Ninguém. Viva alma se atreveria a descer tanto... de novo com suas dores e misérias, lembranças e medos, abandonou o aconchego do padre Gregório e voltou à malfadada e incerta vida de João Ninguém.

Nem mesmo outra ambulante que há quinze ou vinte dias chegara e rodopiava por ali, igual a ele, vinda de algum eito com as suas típicas imundices, ou talvez, pior em flagelo, pudesse ser comparada. Moça bonita lembrava Oriana, amada de Amadis de Gaula**, apesar de seus olhos tristes e sofridos, as roupas frangalhadas, porcamente cobrindo um corpo escultural, os cabelos compridos em desalinho, figura que em pouco tempo tornou-se conhecida da galera pela ternura e meiguice que transmitia. Só tinha o defeito de ser pobre e a falha de ninguém saber de onde havia aparecido.

Coisa de dois sábados, o imprevisível criou vida e forma. Ambos se encontraram na praça, se viram em relance ligeiro. A beldade, num ímpeto fugiu alígera, porque ele quis maliciosamente, levantar a sua saia (ou o que restava dela) visando apreciar melhores perspectivas. A gargalhada dos transeuntes se generalizou. Uns queriam se divertir, outros acharam afrontoso. Teve meia dúzia de apressadas bocas que cuspiu no desgraçado rejeitos. Pura maldade. Padre Gregório apareceu de repente e lascou um sermão nos insensatos e a coisa caiu no esquecimento.

Todo esse incidente não passou de um fato a mais na pacata localidade, que logo em seguida mergulhou no marasmo rotineiro de sempre. Porém, uma semana após esse quase desentendimento entre o casal de indigentes, aconteceu uma coisa que espantou a todos, desde os cidadãos mais honrados, as damas da alta sociedade com suas riquezas à ponta do nariz, até os menos abastados pela sorte.

Tudo aconteceu numa chuvosa manhã de domingo. Ninguém avistou o mendigo pelas ruas e calçadas. Criaturas mais afoitas, perguntaram daqui e dali, mais por questão de desencargo de consciência, que por solidariedade. O fato é que durante todo o domingo ninguém avistou o rapaz. De roldão, tampouco a moça. Entretanto, na quarta-feira à tarde, um bando de garotos que brincava pelas redondezas da linha do trem, achou, num terreno baldio, dois corpos. O primeiro pertencia ao sem rumo que vivia de porta em porta pedindo comida e um copo de café.  

O segundo, da infeliz menina que chegara fazia pouco. Estavam de mãos dadas, rostos muito unidos, como se pretendessem eternizar um longo e derradeiro beijo de despedida. Os habitantes deduziram que o mendigo encontrara a garota numa ruela qualquer e a tivesse arrastado para o mato, a fim de violentá-la. Porém, dias mais tarde, em face da estação de rádio noticiar os fatos, o jornaleco publicar fotografias da dupla, a polícia civil entrar em ação, o ministério público se fazer presente, etc., e tal, investigadores e repórteres de uma dezena de emissoras de televisão se deslocaram da capital e até autoridades da longínqua Andirá para desvendarem o mistério.

E desvendaram. O pobre homem, abastado fazendeiro do norte do Paraná, que saíra pelo mundo feito louco, em busca de sua família, ou a procura da paz para si mesmo, finalmente fora abençoado com o evento benfazejo do objetivo que incansavelmente procurava. A moça, nada mais, nada menos, Érica, sua filha. O rebento que ele tanto especulou encontrar na sua triste e melancólica vida de solitário. Ambos (não se sabe como) se reencontraram naquele fim de mundo, e não se teve explicação plausível, de como se reconheceram, e pior, ninguém soube aclarar pormenorizadamente como bateram de frente com as garras frias da morte.

Um pequeno grupo de comerciantes a pedido do padre Gregório, em sintonia com as irmãs do convento de São Francisco de Assis, providenciou os enterros de pai e filha, com direito a velório, flores, gente chorando, cantoria, missas de sétimo dia... e até quermesse. Na verdade, o mínimo que poderia ser feito (e, diga-se de passagem, puseram em prática), para que dois seres humanos não fossem enterrados em covas rasas no pequeno cemitério local, como simples indigentes.

Atualmente, uma estátua enorme (“Almas Carentes”) se vê à entrada de quem chega ou sai dos arredores para a rodovia que interliga a São Paulo. As honras e os galardões recaíram claro, no atual prefeito, que trouxe para as redondezas, uma multidão sem conta de turistas e curiosos que deixam uma soma considerável em dinheiro nos restaurantes, bares e quiosques da (até então, antes e pacata) cidadela incrustrada entre montanhas e rios entre outros atrativos da natureza a se perderem de vistas.                       
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*"Enquanto fores feliz, contarás muitos amigos; se os tempos estiverem nublados, estarás só"

**Amadis de Gaula é uma obra marcante do ciclo de novelas de cavalaria da Península Ibérica do século XVI. Apesar de se saber que a obra existe desde, pelo menos, o século XIV, a versão definitiva mais antiga, atualmente conhecida, é a de Garci Rodríguez de Montalvo, impressa em língua castelhana em 1496, provavelmente (a edição mais antiga conservada é de 1508), e denominada Los quatro libros de Amadís de Gaula. Tudo indica, contudo, que a versão original era portuguesa e muito anterior. O próprio Montalvo reconhece ter emendado os três primeiros livros e ser apenas autor do quarto. (wikipedia)


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Texto enviado pelo autor

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