sábado, 5 de agosto de 2023

Leandro Bertoldo (Como se fosse pássaro)


Texto inspirado em canções de Chico Buarque e da tela Acidente de Trabalho, de Sigaud.

O operário que todo dia fazia tudo sempre igual achou um destino diferente...

Francisco escolhera o branco para se parecer com os pássaros que via em voos tão de perto por cima daquele andaime pingente. Juntou parte de suas economias, meteu-se em uma camisa de cambraia branca e saiu daquela loja como se fosse a última. Andava pelas ruas sentindo-se livre. Todo ele era um sorriso de passarinhar. Sentia que seus braços eram asas e as penas dos dedos tocavam o firmamento. Lembrou-se da história da cidade iluminada a qual por tempos não recordava o nome, mas havia lido em uma revista aberta ao acaso na espera do barbeiro, e quis tocar o céu, fazer um buraquinho nele para deixar passar o facho de luz brilhante. Logo ele a passar dias e dias como se fosse náufrago das alturas ao estar tão perto e tão longe do que desejava. Desejava? Ele não sabia, apenas sentia (que é bem diferente) um leve desprendimento.

Andava como se fosse sábado por aquelas ruas de segunda-feira. Como um aluno travesso, só que adulto, matava o dia de trabalho sem se importar com as consequências. Só gargalhava como se ouvisse música, aquela do farfalhar do princípio de um sorriso flácido de quem nasceu para olhar. Só olhar. Mas agora ele deseja voar como seus amigos das alturas; os pássaros, naturalmente, porque os outros eram operários como ele, com as mesmas mãos grandes e pés enormes contrapondo-se com as cabeças pequenas sem pensação.

Nisso, passou por aquelas ruas poetizando o tráfego sem se dar conta para onde ia. Não carregava pastas, documentos, celular, caderneta, patuá, nada para o identificar ou que lhe fizesse lembrar o desarranjo do uniforme azul marinho da firma. Ao menor sinal de memória corria a distrair-se em olhar para a cambraia branca e novamente se passarinhava.

Desejou tomar sorvete e comer cachorro-quente sem implicar de melar os dedos e os cantos da boca. E daí? Era só limpar! Não entendia a recriminação de sua mãe em tempos meninos e depois de sua esposa sempre tão arbitrária em questões de prazer. Ela era capaz de dizer que não ficava bem a um homem pai de família abocanhar um pão no meio da rua. E assim era por tudo: pela risada mais alta que a gente tem que engolir, pelo grito de gol que a gente tem que encobrir, pela alegria fortuita de nunca sentir. Arree!

Mal começa o sol se pôr, ouve-se o badalar do relógio da matriz. “Os carros avançam os sinais na hora da Ave-Maria”, já dizia a canção plácida de um amigo. "Seria o momento de sair do trabalho" — pensa Francisco — no exato instante em que ouve, vindo do alto dos andaimes, os operários o chamarem, clamarem, gritarem por cuidado. Nem se dera conta de como foi parar ali em frente à construção. Certamente o costume a direcionar a alma distraída para a obrigação de todo dia. A partir daí tudo foi lento e rápido. Rápido para a multidão que se aglomerava e maravilhosamente lento para ele ao sair da noite infinita e retornar à quietude do quintal como numa roda-gigante. Tudo, absolutamente tudo rodou num instante. De repente uma freada. Uma buzina. Um baque. Olhos assustados. Gritos. Muitos olhos. Mais gritos. Rostos disformes. Mãos na cabeça. Nas bocas. Tempo. Paz. Quanto tempo? Não sabia. Quanta paz? Ela agora existia. A sexta badalada do relógio. Silêncio.

Olhou para o vermelho da sua cambraia — não era branco? — e sentiu-se flutuando naquele chão de dormir. Ouviu novamente o farfalhar de asas por cima de sua cabeça ao som longe da Ave-Maria que lá vem, que lá vem, que lá vem...

Lá estavam eles, os pássaros, a esperá-lo...
Apenas sorriu...
Agora...
Podia...
Voar.
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"Amou daquela vez como se fosse a última". As músicas de Chico sempre me fizeram pensar. Pensar em acontecimentos, pensar em situações, pensar em histórias... Essa é uma delas, e juntamente com a tela de Sigaud nos conduz a um desprendimento perfeitamente possível à suavidade. Por que não? Para uma experiência ainda maior, ouça e depois deixe seus comentários, eles são muito importantes.

Fonte:
Enviado pelo autor. Disponível na Árvore das Letras (https://arvoredasletras.com.br/2023/07/23/como-se-fosse-passaro/)

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