sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Hans Christian Andersen (Há coisas que o coração não esquece)

Velho era o morgado, e lamacento o fosso que o cercava; e a ponte levadiça raras vezes era baixada, pois nem todas as visitas são gente de distinção. Lá estavam, abaixo das goteiras, os balestreiros, por onde se podia despejar água fervendo, e até chumbo derretido sobre o inimigo, caso se aproximasse demais.

   Lá dentro as salas eram muito altas, o que tinha sua utilidade, porque uma espessa fumaça se erguia da lareira, onde se consumia lentamente os grandes nós de madeira úmida. Das paredes pendiam os retratos de homens revestidos de armadura, e de mulheres soberbas, trajando ricos vestido. Mas a mais bela de todas andava por ali, em carne e osso; era a dona do morgado, e chamava-se Mete Mogens.

   À noite chegaram alguns salteadores; degolaram três dos homens do castelo, e mais o cão de guarda. Feito isso, prenderam a dona da casa no canil, amarrando-a com a corrente do cachorro, e foram pavonear-se pelas salas, tomando o vinho e a cerveja que acharam na adega.

    E enquanto isso a dama, acorrentada no canil, nem se quer podia ladrar!

   Mas nisso aproximou-se cautelosamente o escudeiro de um dos bandidos. Cautelosamente, sim: se fosse descoberto, seria trucidado, E disse à dona da casa.

   - Sra, Mete Mogens, lembra-se a senhora de meu pai? Lembra-se que foi obrigado a montar o cavalo de pau, ainda em vida de seu marido?  A senhora pediu por ele, mas não foi atendida. Queriam que ficasse assim montado, até que as pernas se despegassem do corpo. Foi então que a senhora desceu e foi, devagarinho, como eu fiz agora, e colocou-lhe uma pedra debaixo de cada pé, para que eles tivessem um apoio. Ninguém a viu; e, se alguém viu, fingiu não ver - porque a senhora era jovem dona da casa. Meu pai contou-me essa história, que guardei na memória; não a esqueci, não. E agora vou libertá- la, Sra. Mete Mogens.

   Tiraram os cavalos de estrebaria e saíram, arrostando a chuva e a tempestade, até encontrar amigos que lhes prestaram auxílio.

  - De modo que aquele pequeno serviço que prestei outrora ao velho, veio a ser-me amplamente retribuído - disse Mete Mogens.

   - Sim: há coisas que o coração nunca esquece - disse o rapaz.

  Os salteadores morreram na forca.
   
Há por aquelas bandas outro velho morgado. Não é o mesmo da Mete Mogens: pertence a outra família aristocrática.

    Este caso é dos dias que correm.

   O sol ilumina a flecha dourada da torre. Pousam na água, como ramalhetes, ilhotas cobertas de mato; e em volta delas nadam os cisnes. O jardim está cheio de roseiras floridas. Mas a dona da casa é na verdade a mais delicada pétala de rosa, radiante de alegria, da alegria que vem das boas ações. É um brilho que não esplende pelo mundo afora, mas que fica no mais íntimo do coração; e o que ali esta guardado não ficará esquecido.

  Neste momento ela sai do castelo e dirige-se à choupana de um camponês, no campo. Mora ali uma menina paralítica. A janela do quarto dá para o lado onde não penetra o sol. A menina só pode ver um pedacinho de campo, fechado por alta cerca. Mas hoje é um dia de sol: o quente sol, o sol maravilhoso de Deus Nosso Senhor entrou no quartinho. Entrou pela janela nova, rasgada onde outrora só se via a parede nua.

   A paralítica fica sentada. à luz quente do sol, olhando para o mato e para o lago. O mundo tornou-se tão grande, tão lindo...e tudo veio de uma única palavra da caridosa dona de morgado.

     - A palavra era tão fácil - disse ela, - e a ação tão pequenina...E a alegria que elas me proporcionaram é imensa, e cheia de bençãos.

   É porque ela pratica tantas ações meritórias, e pensa sempre naqueles que vivem nas casas pobres e nas moradas suntuosas - onde também há gente aflita.

   Tudo isso está oculto e guardado, Mas há coisas que o coração nunca esquece.

   Na grande cidade, de tráfego animado, havia uma casa muito velha, cheia de salas e quartos. Não entraremos nela: vamos ficar na cozinha, cheia de luz e calor, e onde tudo está asseado e alegre. As panelas de cobre reluzem. A mesa parece encerada, de tão lustrosa. A pia é tão polida como um espelho. E tudo isso é obra de uma única criada, que ainda achou tempo para se vestir e arranjar como se fosse para a igreja.

   Traz uma laçada na touca, uma laçada preta, que indica luto. Contudo não tem ninguém por quem usar luto: nem, pai, nem mãe, nem parentes, nem bem-amados. É uma mocinha pobre. Dantes teve um noivo. Contraíra casamento com um moço também pobre, e amavam-se muito. Mas um dia ele lhe disse:

  - Nós nada possuímos; e a rica viúva, dona daquela adega, disse-me palavras de amor. Ela me oferece a prosperidade. Contudo, és tu quem vive no meu coração. Que me aconselhas?

    - Que faças o que te parece que te dará a felicidade. Sê bondoso e carinhoso com ela; mas te previno: desde o momento em que nos separarmos, não devemos tornar a ver-nos.

  Passaram-se anos. Um dia ela encontrou na rua o antigo noivo. Pareceu-lhe tão doente, e envelhecido, que ela não pode deixar de lhe perguntar:

  - Como vais?

   - Sou rico, e tudo me vai bem, em todos os sentidos. Minha mulher é boa; mas tu continuas a viver no meu coração. Travei uma grande luta dentro de mim, mas está quase terminada agora. Só nos tornaremos a ver diante de Deus.

   Passou-se mais uma semana. Hoje de manhã ela leu  no jornal a notícia da sua morte. E é por isso que veste luto. Morreu ele, deixando a esposa e três enteados, diz o jornal.

   Essas palavra soam como uma pancada no metal fendido, e contudo, absolutamente puro.

  A laçada preta indica luto; o rosto da moça revela-o ainda mais claramente. Ele está guardando no seu coração, e jamais será esquecido.   

  Há coisas que o coração nunca esquece.

  Ora aí está! Contei três histórias, três folhas em uma só haste.

  Queres ainda mais folhas de trevo? No pequenino livro do coração existem muitas, muitas!

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837.

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