quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Irmãos Grimm (O alfaiatezinho valente)

Um dia de verão, estava um pequeno alfaiate sentado sobre sua mesa, junto à janela. Satisfeito da vida, cosia e cosia com grande entusiasmo. Nisso uma camponesa desceu a rua, apregoando:

- Marmelada! Quem quer marmelada?

Aquilo soou bonito aos ouvidos do alfaiatezinho, que meteu a delicada cabecinha fora da janela e chamou:

- Ei, boa mulher! Venha, que aqui ficará livre da mercadoria!

A camponesa com seu cesto pesado, subiu as três escadas e o homenzinho a fez abrir todos os potes. Examinou-os, cheirou-os um por um, e afinal acabou dizendo:

- Parece-me boa essa marmelada. Sirva umas quatro colheradas, boa mulher, e, se forem cinco, também não fará diferença para mim.

A mulher, que esperava realizar um bom negócio, deu-lhe o que havia pedido, mas retirou-se aborrecida e resmungando.

- Bem! - disse o pequeno alfaiate- que Deus abençoe este doce, para que me dê forças e ânimo.

Foi ao armário, tirou de dentro um pão e, cortando um bom pedaço, passou nele a marmelada.

- Não há de ter mau gosto, - disse consigo- mas antes de provar, quero ver se termino este gibão.

Pôs o pão a seu lado e continuou costurando, sentia-se tão feliz que ia fazendo pontos cada vez maiores.

Nesse meio tempo, o doce aroma da marmelada subiu até o teto, onde havia moscas em quantidade. Estas, sentindo-se atraídas pelo bom cheiro, foram pousar no pão, aos montes.

- Ei! Quem convidou vocês? - disse o alfaiatezinho, espantando as hóspedes indesejadas.

As moscas não entendiam sua linguagem, nem fizeram caso. Ao contrário, apresentaram-se em  número cada vez maior. Aí, então, o homenzinho ficou por aqui, como se costuma dizer e, passando a mão num retalho de fazenda, gritou:

- Esperem, que terão o que merecem!

E bateu com toda força nelas. Quando levantou o pano, viu que nada menos de sete estavam ali mortas, de perna esticada.

- Como és valente! – disse a si mesmo, admirando sua bravura - a cidade toda deverá ficar sabendo!

Mais que depressa, cortou e costurou um cinto, bordando nele os seguintes dizeres em letras bem grandes: "Sete de um golpe só!"

- Qual cidade, qual nada ! – prosseguiu monologando - o mundo inteiro precisa ficar sabendo!

E, de tanta alegria, seu coração se agitava como o rabinho de cordeiro. Colocou o cinto, resolvido a correr mundo, pois achava que a alfaiataria se tornara pequena demais para sua coragem. Antes, porém, deu uma busca na casa para ver se havia qualquer coisa que pudesse levar consigo, mas só encontrou um queijo velho que enfiou no bolso. Em frente ao portão, viu um pássaro que se enredara nos arbustos; apanhou-o e também o guardou no bolso, para que fizesse companhia ao queijo.

Iniciou, então, corajosamente, sua jornada, como era leve e ágil, não sentiu cansaço. O caminho o levou a uma montanha e, ao chegar no ponto mais elevado, viu, de repente, um gigante, enorme, sentado no chão a olhar, tranquilamente, a seu redor. Cheio de valentia, o pequeno alfaiate aproximou-se dele e falou:

- Bom dia, companheiro! Contemplando a imensidão do mundo, não? É para lá, exatamente, que me dirijo, a fim de tentar a sorte. Queres acompanhar-me?

O gigante olhou-o com desprezo e respondeu:

- Ora só quem está falando! Que sujeitinho mais miserável!

- Alto lá! -disse o nosso homenzinho e, desabotoando o casaco, exibiu o seu cinto.- Aí podes ler que espécie de homem sou eu!

O gigante leu: "Sete de um golpe só!" E como pensasse tratar-se de pessoas, mostrou um pouco mais desrespeito ao alfaiate. Em todo caso, quis experimenta-lo antes; apanhou uma pedra e tanto a espremeu com uma das mãos que fez correr dela algumas gotas de água.

   - Imita-me,- disse o gigante- se tiveres força.

    - Se é só isso, - retrucou o pequeno - não passa de um brinquedo de criança para gente como eu.

Enfiou a mão no bolso, tirou o queijo, que era mole, e o apertou até sair o sumo.

Que tal? – disse ele. - Um pouquinho melhor, não é?

O gigante ficou sem o que dizer, pois a força de homenzinho o desconcertara. Apanhou outra pedra e atirou-a tão alto que mal se podia distingui-la a olho nu.

- E daí, seu valentão? Imita-me!

- Boa jogada! - concordou o alfaiate.- Mas a pedra caiu de volta ao chão e eu vou atirar uma que não voltará.

E, tirando o pássaro do bolso, jogou-o no espaço. A Ave, satisfeita com a liberdade, ergueu-se em voo rápido e desapareceu no ar.

- Que me dizes dessa jogada, companheiro? - perguntou o alfaiate.

- Sabes atirar, - retrucou o gigante - mas agora vejamos se és capaz de carregar um peso razoável.

E conduzindo o alfaiatezinho até um carvalho muito grande que estava, cortado, no chão, disse-lhe:

- Se tiveres força suficiente, ajuda-me a carregar esta árvore para fora do mato.

- Com muito prazer. - respondeu o homenzinho.- Vai pondo o tronco nos ombros que eu me encarrego dos galhos e ramos, que são a parte mais pesada.

O gigante colocou o tronco nos ombros, enquanto o alfaiatezinho se acomodou num dos galhos. E, como o primeiro não podia voltar-se para vê-lo, carregou a árvore inteira e, ainda por cima, o alfaiate. Este, muito alegre, assobiava a canção: " Três alfaiates saíram a trote..." - como se carregar uma árvore fosse brinquedo de criança. O gigante, depois de ter arrastado por algum tempo o pesado fardo, não aguentou mais e gritou:

- Atenção! Vou deixar cair a árvore!

O  alfaiatezinho saltou logo para baixo, agarrou o carvalho com ambos os braços, como se estivesse a carregá-lo e disse ao gigante:

– És grandalhão, mas incapaz de carregar essa árvore!

Continuaram juntos o caminho e chegaram ao pé de uma cerejeira. O gigante meteu a mão na copa onde estavam as frutas mais doces, curvou os galhos e, pondo-os nas mãos do alfaiate, o convidou a comer cerejas. Mas o homenzinho era fraco demais para segurar a árvore e, quando o gigante soltou os galhos, a cerejeira voltou à sua posição primitiva, levando aos ares o nosso herói. Este, sem sofrer dano algum, caiu no chão e o gigante logo perguntou:

- Como? Não tens força para segurar essa árvore tão pequena?

- Não se trata de força.- respondeu o outro. – Acreditas que isso significa algo para quem matou sete de um golpe só? Saltei de propósito sobre a árvore porque os caçadores andam atirando lá em baixo, no matagal. Imita-me se és capaz!

O gigante tentou, mas não conseguiu pular a árvore, ficando preso nos galhos. E, com isso, também desta vez o pequeno alfaiate ficou com a vitória. Disse, então, o gigante:

- Se és tão valente mesmo, acompanha-me à nossa caverna e passa a noite conosco.

O nosso homenzinho aceitou a proposta e o seguiu. Chegaram à caverna, onde havia vários outros gigantes, cada um deles comendo uma ovelha assada que tinha nas mãos. O alfaiatezinho olhou em redor e pensou: "Isso aqui é  bem maior do que minha alfaiataria.”

O gigante mostrou-lhe uma cama e o convidou a deitar-se e dormir. Ele, porém, achou grande demais o leito e, em vez de se deitar nele, foi acomodar-se num canto. Pela meia-noite, o gigante, imaginando o alfaiatezinho em sono ferrado, levantou-se, apanhou uma barra de ferro e desfechou tamanho golpe na cama que julgou ter acabado, de uma vez por todas, com a vida daquele gafanhoto. 

De madrugada, bem cedo, os gigantes foram ao mato e já nem se lembravam mais do alfaiate, quando de repente, este lhes veio ao encontro, bem alegre e satisfeito. Levaram um susto danado e, receando que ele fosse matá-los, fugiram espavoridos.

Continuou o nosso herói a viagem, seguindo sempre o seu nariz arrebitado. Depois de uma longa jornada, chegou ao jardim de um palácio real e, sentindo-se cansado, espichou-se na relva e adormeceu. enquanto estava ali deitado, chegou gente. Aproximaram-se dele e puseram-se a examiná-lo por todos os lados. Nisso, leram o seu cinto: " Sete de um golpe só!"

- Céus! - exclamaram o grupo todo - que estará fazendo aqui este grande herói, agora, em tempos de paz? Deve ser cavaleiro famoso!

E saíram para avisar o rei, dizendo-lhe que, se houvesse guerra, seria um homem importante e útil que não se deveria deixar escapar. O rei gostou de conselho enviou um dos seus cortesões ao alfaiate, para contratar os seus serviços logo que ele despertasse. O mensageiro assim fez e, quando o homenzinho se espreguiçou e abriu os olhos, transmitiu-lhe o recado.

- Vim aqui, justamente, para isso. - disse o pequeno alfaiate. - Estou disposto a entrar a serviço do rei.

Receberam-no, então, com todas as honras e deram-lhe uma moradia especial.

Os soldados do rei, no entanto, o olhavam com maus olhos e desejavam que ele estivesse a mil léguas de distância.

- Que será de nós quando tivermos uma briga e ele, com cada golpe, derrubar sete de nossa gente? - diziam entre si.- Desse jeito não viveremos muito,

E resolveram ir ao rei para pedir que os despedisse.

- Não estamos preparados - disseram - para viver perto de um homem que matou sete de um só golpe.

O rei entristeceu-se por ter de renunciar a todos os seus soldados por causa de um só; já estava arrependido de tê-lo contratado e desejou que seus olhos nunca o tivessem visto. Entretanto, não se animou a despedi-lo, porque receava que ele o matasse junto com todo o seu povo e fosse depois apoderar-se do trono. Pensou durante muito tempo e, afinal, descobriu um meio. Mandou dizer ao alfaiate tão famoso, queria fazer-lhe uma proposta. 

Na floresta do país havia dois gigantes que provocavam grandes prejuízos, com roubos, assassinatos, incêndios e outro crimes mais. Ninguém podia aproximar-se deles sem arriscar a vida. Se ele vencesse e matasse os dois gigantes, dar-lhe-ia sua filha única para esposa e ainda a metade de seu reino como dote; teria, também, o auxílio de cem cavaleiros. "Seria algo para um homem como tu" – pensou o alfaiatezinho - " e não é todos os dias que oferecem uma bela princesa para esposa e meio reino como dote".

  - Aceito! - foi a sua resposta.- Vencerei os dois gigantes e não preciso dos cem homens para essa tarefa; quem matou sete de um golpe só, não se amedronta com dois.

Pôs-se a caminho e os cem cavaleiros o seguiram. Quando chegou à beira do bosque, dirigiu-se a seus acompanhantes, dizendo:

- Fiquem por aqui; eu, sozinho, sou suficiente para acabar com os gigantes.

E embrenhou-se no mato, olhando para direita e para esquerda. Passado algum tempo, avistou os gigantes. Deitados embaixo de uma árvore, estavam dormindo e roncando tão alto que faziam balançar os galhos. Sem perda de tempo, o pequeno alfaiate encheu os bolsos de pedra e foi trepando na árvore. Assim que chegou na metade, escorregou para a ponta de um galho, de modo a ficar bem em cima dos dois adormecidos e começou a jogar as pedras, uma a uma, no peito de um dos gigante. Durante muito tempo o homenzarrão não notou coisa alguma, mas, por fim, acordou, deu um empurrão no companheiro e disse:

- Por que estás me batendo?

- Batendo coisa nenhuma! Tu é que estás sonhando. - disse o outro.

Recomeçaram a dormir, e o alfaiate jogou uma pedra no segundo.

- Que significa isso?! - gritou o outro gigante. - Por que estás me atirando pedras?

- Não estou atirando nenhuma pedra. - resmungou o primeiro.

Discutiram ainda por algum tempo, mas, como estavam cansados, cessaram a discussão e voltaram a dormir. O nosso alfaiatezinho então recomeçou o jogo; escolheu a pedra mais pesada e arremessou-a com toda força, no peito do primeiro gigante.

- Isso agora é demais! - gritou este e, erguendo-se de um salto, como um louco, jogou seu companheiro com tal força contra a árvore que a fez estremecer. O outro pagou-lhe na mesma moeda e tão furiosos ficaram que se puseram a arrancar as árvores ao redor, e com elas tanto se bateram que caíram mortos, ao mesmo tempo, no chão. Só aí é que o alfaiatezinho desceu de seu posto.

- Uma sorte, - disse ele - não terem arrancado a árvore onde eu estava, senão teria sido obrigado a saltar para outra, que nem esquilo. Ainda bem que sou ligeiro!

Tirou a espada da bainha e deu diversos golpes no peito do gigantes. Em seguida foi ao encontro dos cavaleiros e lhes disse:

- O trabalho foi feito; dei cabo dos dois. Custou-me algum esforço porque se defenderam com troncos de árvores que iam arrancando, mas nada disso adianta quando surge alguém como eu que mata sete de um golpe só.

- E não está ferido? - perguntaram os homens.

- Era só o que faltava! - respondeu o alfaiate.- Não perdi um único fio de cabelo!

Os cavaleiros não lhe quiseram dar crédito e foram ao bosque; lá encontraram os gigantes banhando em sangue e, ao redor, as árvores arrancadas.

O pequeno alfaiate apresentou-se ao rei para exigir a recompensa prometida. Mas este já se arrependera da promessa e começou a imaginar como livrar-se do herói.

- Antes de receberes minha filha e metade do reino - disse-lhe- terás de realizar outra façanha. Anda por aí um unicórnio a causar prejuízos graves. Deves, primeiro capturá-lo.

Um unicórnio me assusta menos ainda que dois gigantes. Minha divisa é : "Sete de um golpe só."

Pegou uma corda e um machado e saiu para a floresta. Novamente ordenou a seus acompanhantes que o emperrasse fora do bosque. Não teve de procurar muito. O animal veio saltando em sua direção, como se quisesse espetá-lo sem maiores rodeiros,

- Calma! Calma! - exclamou o alfaiatezinho.- Não corramos tanto!

Ficou parado e esperou que o bicho chegasse bem perto; depois, num gesto rápido, colocou-se atrás de uma árvore. O unicórnio, que vinha direto a ele, disparando com toda fúria, cravou o corno com tanta força no tronco que não conseguiu mais retirá-lo e ali ficou aprisionado.

- Apanhei o animal! - disse o homenzinho, saindo de trás da árvore. Colocou, primeiro, a corda no pescoço do bicho e depois retirou, a golpes de machado, o corno do tronco. A seguir, levou o animal para o rei.

Ainda assim o soberano não quis conceder-lhe o prêmio e deu-lhe uma terceira incumbência. Antes do casamento, o alfaiate deveria capturar um javali que causava grandes danos na floresta. Os caçadores lhe prestariam auxílio.

- Com muito prazer- disse o alfaiate- isso é brincadeira de criança.

Deixou os caçadores à beira do mato e eles ficaram bem satisfeitos com isso, pois o javali, muitas vezes, os recebera de um modo que lhes tirara toda a vontade de o enfrentar novamente.

Logo que o javali avistou o alfaiate, correu-lhe ao encontro com a boca espumando, cheia de dentes aguçados, e pronto para derrubá-lo. O ágil herói, porém, correu  a refugiar-se numa capelinha que havia ali e, em seguida, saiu pela janela que ficava ao alto. O javali, que o seguia de perto, entrou também na capela e, então, o homenzinho, dando volta por fora, correu a fechar o pórtico, prendendo assim a fera, pesada e desajeitada demais para sair pela janela. Feito isso, chamou os caçadores para eles vissem o prisioneiro com seus próprios olhos. O valente foi, então, apresentar-se ao rei, o qual, quisesse ou não, foi obrigado a cumprir sua promessa, dando-lhe a filha e metade de seu reino. Mas teria ficado ainda mais aborrecido se imaginasse tratar-se de um simples alfaiate e não de um guerreiro famoso. O casamento foi, pois, celebrado com grande pompa, mas pouca alegria, e de um alfaiate se fez rei.

Passado algum tempo, numa noite, a jovem rainha ouviu quando seu marido falava em sonhos:

- Rapaz, apronta esse gibão e me remenda as calças ou te medirei as costas com esta vara!

Compreendeu aí a rainha qual era a origem de seu jovem esposo. Na manhã seguinte, queixou-se ao pai, pedindo-lhe que a libertasse do homem que não passava de um alfaiate. O rei consolou-a, dizendo:

– Deixa a porta de teu quarto aberta esta noite. Meus criados ficarão do lado de fora e, quando ele estiver dormindo, será atado e levado para um navio que o conduzirá para bem longe.

A filha deu-se por satisfeita, mas o escudeiro ouvira tudo e, como gostasse de seu amo, revelou-lhe toda a trama.

- Vou por um pequeno empecilho a esse plano.- disse o alfaiatezinho.

À noite deitou-se como de costume, na cama, com sua mulher. Quando o viu adormecido, ela levantou-se, abriu a porta e tornou-se a deitar. O alfaiate, que só estava fingindo, começou a gritar com voz bem forte:

- Rapaz, apronta o gibão e remenda minhas calças ou te medirei as costas com esta vara! Atingi sete com um golpe só, matei dois gigantes, apanhei um unicórnio, capturei um javali e haveria de temer a esses que estão do lado de fora da porta?

Os homens, quando o ouviram falar daquele jeito, assustaram-se e deitaram a correr como se um  exército inteiro estivesse em seu encalço e nenhum deles se atreveu a enfrentá-lo. E foi assim que o alfaiatezinho ficou sendo rei por toda vida.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.

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