quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Lauro Grein Filho (A xícara de azeite)

Convencido e presumido de um bom cabedal médico, respaldado por um  curso laureado e uma especialização no "Miguel Couto", do Rio, animado e motivado por todas as ilusões que envaidecem os anos da mocidade, iniciava em Castro os primeiros passos da jornada.

Não tinha mais que uma semana na cidade, que tanto me desconhecia quanto eu desejava conquistá-la, quando recebi o chamado lá pelas onze da noite. Vinha com o táxi, cabendo ao motorista o encargo único de me conduzir, nada sabendo sobre o doente, o caso, a ocorrência. Apenas o nome e o endereço do cidadão, pessoa ilustre e conhecida na praça. Chegando à residência, nela ingressei firme e forte, dono da verdade, da ciência e de tudo. No quarto e na cama do casal, um menino de quatro anos choramingava suas dores para a plateia de sete adultos e três menores. É proverbial a solidariedade dos sírios, nos infortúnios da saúde. Não faltavam, pois, parentes e amigos, todo um clã, irmanado na mesma preocupação, unidos no mesmo lamento, sofrido no mesmo pranto.

À minha presença, o guri aumentou o choro no timbre e na intensidade. Esclareceram-me, então, que havia caído da mesa e machucado o braço. Após algum empenho consegui por fim acalmá-lo, pondo-o dócil e amigo em minhas mãos. O exame cuidadoso não revelou, nos sinais específicos, qualquer indício de fratura ou luxação. Tratei, pois, de serenar o ambiente, explicando a benignidade de uma simples contusão, sem gravidade e sem importância, coisa banal, de recuperação espontânea em poucas horas. A confirmar minhas palavras, o moleque, já refeito do médico e do susto, ensaiava alguns sorrisos para o auditório a esta altura tranquilizado.

Aprontava-me em instantes para sair, certo da missão encerrada e bem cumprida, quando uma voz retumbou autoritária pelos quatro cantos da sala: - "Mas então, doutor, o Sr. não vai fazer nada?". Era uma senhora gorda, idosa e bem disposta, avó materna do moleque.

- Minha Senhora, como eu disse...

- Olha, doutor, bom para isso é esfregação de azeite quente. Vamos acudir a criança.

E enquanto me aturdia na surpresa e na indecisão, a devotada criatura dirigiu-se resolutamente à cozinha, de lá trazendo, rápida e triunfante, uma detestável xícara de azeite morno.

Para não me alterar na inconveniência e na descortesia, mergulhei corajosamente os dedos no unguento repulsivo, passando a lambuzar com ele o braço do garoto.

A cena durou uns cinco minutos, o mínimo necessário para o contentamento de todos e a aprovação geral da casa. Preço caro em troca da imagem preservada, a simpatia conquistada, a lição apreendida.

Lavei as mãos para me livrar da gordura incômoda, ouvindo do pai agradecido a firase irrecorrível que haveria de me acompanhar trabalhos afora: “Por enquanto muito obrigado, depois nós acertamos". Amavelmente fui me despedindo, um por um, entrevendo na clareza dos semblantes as evidências de que deixava o campo são e salvo.

Da esclarecida senhora mereci um confortável abraço, que beijo não se dava a esmo no passado. As aparências, resguardei-as como devia. A verdade, entretanto, é que, naquela casa e naquela noite, deixava no braço inocente daquele guri moreno uma parte das minhas ilusões, outro tanto do meu orgulho, das minhas convicções e um pedaço de mim mesmo. Muitas e muitas vezes depois, ao longo da clínica interiorana, a experiência me levaria ao melhor convívio com tais maneiras, admitindo-as em nome de uma cultura autenticamente nossa, criada e embalada no mundo simplório de nossos avós.

Mas o primeiro confronto foi por demais impiedoso para que dele facilmente me esquecesse.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Nenhum comentário: