sábado, 26 de agosto de 2023

Maria Amália Vaz de Carvalho (Duas faces de uma medalha)

Ela tinha já feito vinte e cinco anos, ele contava apenas vinte e dois. Era uma criança triste e ambiciosa. Sonhava com o impossível, e nesse sonho criava forças heroicas para todas as lutas da realidade.

Margarida distinguira-o no meio de todos os homens ricos, elegantes, nobres ou poderosos, que a rodeavam e aclamavam rainha.

Na fronte dele, já cavada por duas linhas profundas, lia o que não lera ainda nos outros — o pensamento e a energia.

Sabia, porém, que seu pai, o banqueiro milionário, só a daria com prazer a quem trouxesse mais lustre ou mais dinheiro à sua casa, e tímida, melancólica, sem disposições para as lutas da vida, repugnava-lhe tudo que fosse combate ou resistência.

Tinha ficado doente desde pequenina, era um organismo nervoso e delicado, cheio de caprichos inconscientes, mais artístico do que reflexivo.

Gostava de música, de flores, de versos, das coisas belas e harmoniosas, tinha um vago desdém silencioso por tudo quanto via ser o enlevo e a preocupação exclusiva dos seus.

O dinheiro! Sempre o dinheiro!

Ninguém falava em torno dela senão em dinheiro, e no entanto ela, que vivia num voluptuoso ninho de princesa de conto de fadas, tinha pelo dinheiro em si o mais soberano desdém.

Salvava-a isto da vulgaridade que mais ou menos contamina as mulheres ricas.

Margarida no inverno vivia em Lisboa. Tinha então a vida fútil e ociosa de todas as rainhas da alta vida.

Ia muito a S. Carlos, recebia numa certa noite da semana, presidia aos jantares dados por seu pai, ia passar muitas noites fora, fazia compras, corria as modistas acompanhada sempre por miss Brown, uma inglesa correta cor de açafrão, que seu pai descobrira felizmente numa das suas viagens a Londres.

No meio desta vida artificial tão vazia e tão fatigante ao mesmo tempo, que lugar havia para que ela pensasse, sentisse, desejasse alguma coisa para fora do círculo estreito que a encerrava?

Margarida deixava-se viver.

Um dia, porém, num baile, apresentaram-lhe Eduardo de C., e depois de meia hora de conversação sentiu por ele o que não sentira ainda por nenhum outro. Ficaram conhecidos.

Ele na sombra, de longe, já se vê; ela lá em cima na plena irradiação da sua graça, da sua formosura, da sua opulência, de todo o seu esplendor.

Cumprimentavam-se com uns toques de familiaridade, e num ou noutro baile destes em que vai toda a gente, a boa e a má, tinham-se apertado a mão mutuamente, e tinham trocado algumas frases afetuosas.

No verão, o pai de Margarida, que tinha propriedades em vários pontos de Portugal, consultava a filha para que lhe indicasse a quinta em que mais gostaria de passar as calmas do estio.

Pouco tempo depois do encontro com Eduardo, Margarida, disse a seu pai, que a consultava como de costume:

— Este ano vamos para o Minho, sim? Sinto-me tão fraca, tão doente! O ar do Minho há de por força fazer-me bem.

É verdade que nas vésperas, num baile, Eduardo dissera-lhe, aproximando-se dela:

— Peço licença para apresentar a v. ex.a. as minhas despedidas. Alcancei uma colocação em Viana do Castelo, e parto para ali um dia destes.

— Viana! – pensou Margarida enquanto dois raios de alegria se acendiam nas suas pupilas de um azul sombrio.

— É em Viana a nossa quinta.

Partiram.

Na província a intimidade estabelece-se forçadamente entre pessoas que não pertencem às mesmas camadas sociais. Para se admitir um sujeito em qualquer sala de província exige-se simplesmente que tenha uma educação limpa, e que possua alguma prenda de sociedade.

Em Viana, na sala do grande banqueiro tão altivo e tão inacessível, reuniam-se não só os fidalgos mais primorosos das cercanias, como também os humildes funcionários do Estado, que por aquelas regiões se achavam acomodados.

Margarida, com o seu porte de soberana, o seu sorriso altivo e distraído, a graça ondeante da sua gentil figura, recebia a todos com a mesma benévola indiferença. Todos a contemplavam fascinados e quase medrosos. Ninguém se atrevia a dirigir-lhe finezas banais: de tal modo o olhar dela sabia tornar-se glacial, logo que adivinhava a pretensão de um namorado na amabilidade um tanto desastrada de algum dos seus convivas provincianos.

— Não há aqui um empregado chamado Eduardo de C.? – perguntava um dia na sala, a elegante filha do banqueiro.

— Há. Um rapaz muito estudioso, muito concentrado, que desenha muito bem. - acudiu espevitadamente dali uma menina que fazia as delícias das soirées de Viana, pela sua voz de falsete sempre pronta a torturar os ouvidos do próximo. – Conhece-o?

— Foi-me apresentado este inverno em Lisboa. - respondeu Margarida.

E acrescentou mentalmente: — Quem me dera que ele aqui aparecesse! Como me distrairia de tudo isto que me cerca.

Isto era uma dúzia de cavalheiros da província acompanhados das suas respectivas esposas ou irmãs, tudo gente preocupada dos interesses mais mesquinhos, das pequenas intrigas mais pueris, falando, gesticulando, dançando, tocando, cantando, murmurando e constituindo a única diversão das noites de Margarida.

Não sabemos de que planejava a gentil lisboeta, sabemos que algumas noites depois desta, Eduardo de C. era apresentado por um fidalgote, aspirante e literato, na sala do banqueiro.

Desde esse dia ele e Margarida formaram em comum uma espécie de refúgio contra a frívola banalidade daquelas noites.

Eduardo desenhava com muito chiste caricaturas e graciosos croquis, que Margarida guardava contentíssima; ela cantava com a sua voz meiga e flexível algumas simples melodias alemãs, ou tocava as músicas dos velhos mestres clássicos, tão queridos de Eduardo.

Falavam a respeito de tudo com a liberdade de pessoas que se entendem e apreciam. Discutiam literatura, música e versos. Às vezes, ambos falavam do futuro.

— Que tem intenção de fazer? – perguntava Margarida.

— Ora! Não sei bem. Com certeza hei de fazer alguma coisa. Ando a criar forças para a luta. Há de ser tenaz, há de ser terrível, bem sei, mas eu hei de vencer!

— Quer que lhe dê um talismã para entrar no fogo?

Ele envolveu-a em um olhar ardente; depois, baixando a vista, respondeu quase com violência:

— Não brinque comigo. Olhe, que me faz muito mal.

Margarida sabia que era amada. Também ela sentia por ele o que nunca sentira, mas não tinha coragem para resistir às ordens de seu pai.

Por esse tempo andava ele a arranjar o casamento da filha com o conde de V., um moço que tinha nas veias o sangue dos reis godos, e na cabeça a mais crassa estupidez de que há memória desde o tempo dos ditos.

Margarida sabia ou suspeitava do caso, mas deixava-se ir numa indolência, á mercê dos acontecimentos da sua vida.

Ao pé de Eduardo sentia-se bem, e quando ele a fixava com o seu belo olhar de ambicioso e de pensador, Margarida esquecia-se de tudo que não fosse a delícia de ser preferida por aquele homem.

Numa noite em que os hóspedes habituais estavam na sala, e em que junto da mesa redonda do serão Eduardo e Margarida liam esquecidos de tudo que os cercava, felizes, despreocupados como os dois amantes do florentino, ouviu-se o rodar de uma carruagem que parava à porta do palácio.

O banqueiro levantou-se rapidamente da banca do voltarete e saiu da sala relanceando para a filha um olhar enviesado.

Margarida, sem saber porque, fez-se pálida como uma morta.

— Ó, meu amigo, — exclamou num ímpeto ardente, irresistível, que não soube conter — chegou o fim da nossa felicidade!

Eduardo olhou para ela desvairado.

— Que diz? Que é isso? A que se refere?

Neste momento entrava na sala o pai de Margarida dando a direita ao último herdeiro de nobres avoengos.

— O sr. conde de V... – pronunciou com o orgulho humilde dos burgueses ambiciosos de honrarias sociais, apresentando o recém-chegado a toda a companhia.

Margarida acolheu-o com um sorriso gelado. Conhecia-o, sabia que o pai queria pôr-lhe sobre a cabeça loura e altiva uma coroa de condessa, e sentiu que dentro da alma lhe estalava uma corda que nunca mais tornaria a vibrar!

Dali a seis meses todos os jornais anunciavam na seção do high-life o casamento da filha do banqueiro opulento com o neto dos heróis medievais.

Os noticiaristas fundavam as mais ardentes esperanças neste consórcio que aliava o sangue nobilíssimo e a fortuna colossal, e contavam com grandes minudências as pompas daquela festa principesca, os presentes riquíssimos que a noiva recebera, a toalete desta, a alegria dos numerosos convidados, etc., etc.

O que ninguém sabia é que esse casamento despedaçara duas vidas!

No fim de dez anos o conde de V... dera cabo do dote da mulher, e da vida do sogro, que morreu amaldiçoando-o.

Continuava, porém, a vida à grandes festas, que tinha começado no dia seguinte ao seu noivado, e já havia quem calculasse muito pela rama por quanto tempo podia durar ainda a desenfreada orgia daquela existência de Marialva estúpido.

Na casa da condessa o luxo não se modificara com as aproximações da pobreza. No olhar dela divisava-se uma profunda e desdenhosa indiferença da vida. Nem o amor maternal conseguira salva-la do desespero.

Ligada a um homem que desprezava do íntimo da alma, entristecida para sempre por uma destas recordações que lavram dia a dia, e que por fim se apossam de uma existência inteira, Margarida procurava esquecer-se de si, aturdir-se no turbilhão das festas mundanas.

Os filhinhos estavam entregues ao cuidado daquela pobre miss Brown que ao ver o abandono dos pobres anjos, inocentes das culpas de seus pais, se dedicara por eles com a abnegação profunda de que só é capaz uma inglesa feia!

Margarida passeava de carruagem, ia ao teatro, ao paço, aos bailes, às festas de beneficência, vendia nos bazares de caridade elegante, fazia e recebia visitas, e de vez em quando, se no meio deste turbilhão avistava o marido, media-o de alto a baixo com um olhar de profundo e inconcebível tédio!

Eduardo durante estes dez anos também sofrera grandes modificações na sua vida. Lutara como um homem, e soubera vencer a mediocridade do seu nascimento e da sua posição.

No instante em que aquela que ele um dia amara como a noiva estremecida da sua alma, sentia vagamente afundar-se no sorvedouro negro da miséria, ele recusara altivamente uma pasta de ministro e uma noiva brasileira, possuidora de duzentos contos fortes, isto depois de uma sessão legislativa, em que a sua palavra viva, nervosa, eloquente, colorida e artística havia deslumbrado o país.

— Não me vendo por dinheiro, nem pelas honras mentirosas com que os tolos lançam poeira à cara uns dos outros - respondera a quem o interrogava, espantado acerca destas duas recusas.

Alguém, que me contou este vulgar episódio da vida moderna, mostrou-me o fragmento de uma carta que Margarida escreveu doze anos depois de casada a uma sócia das suas antigas alegrias.

«É a ti que prefiro escrever. Conheceste-me solteira, feliz, ídolo de um pai, que, ai de mim! se perdeu e me perdeu pela vaidade. Hás de ter dó de mim. Tenho dois filhos e preciso ganhar honestamente o pão que eles hão de comer! Pressinto o teu espanto, as tuas interrogações, os brados aflitivos da tua surpresa! Não me perguntes nada.

«Pergunta-o se quiseres, a essa Lisboa, que assistiu ao louco esfacelar de uma fortuna enorme, com o sorriso banal e adulador que ela tem para todos os perdulários.

«Sabes a educação que recebi. Creio que seria uma mestra capaz de cumprir com a minha árdua missão.

«Em nome dos teus louros pequeninos, tão fartos de gulodices e de beijos, arranja-me algum meio de ganhar um pedaço de pão para os meus filhos.»

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Dava lições!

A brilhante Condessa de V..., a filha adorada de um dos homens mais ricos de Lisboa, a rainha dos salões luxuosos, a estrela mais fulgurante do alto mundo, dava lições para sustentar os dois filhos que lhe restavam, únicos vestígios de um passado de pomposas mentiras.

O infortúnio nobremente suportado transfigurara aquele rosto desdenhoso e soberbo de garrida mundana. Deixara de ser rainha e levantara-se mártir!

Levantava-se de manhã muito cedo, bebia às pressas uma xícara de café, que a sua fiel Miss Brown, companheira dos triunfo e das desventuras lhe preparava por suas próprias mãos, e saia, modestamente vestida de preto, a cumprir a sua improba tarefa. Só voltava para casa de noite.

Divulgara-se rapidamente a notícia daquela excepcional desventura, e muita gente, que vira com desprazer a prodigalidade da caprichosa condessa, compadecia-se agora, sem pensamento reservado, daquela digna e santa expiação.

Margarida tinha muitas discípulas.

Fazia pena vê-la, muito delgada, quase diáfana, com os olhos pisados, as faces coradas pelo cansaço e pela febre, e um sorriso triste resignado, humilde, naqueles lábios que tinham sabido trejeitar com tão altivo desdém.

Era sempre a mesma alma sem energia.

Não esperava coisa nenhuma da terra senão a morte, levando a consciência de ter expiado os erros do seu orgulho. Cumpria uma penitência, não encetava uma luta heroica de que esperasse sair vencedora.

Numa tarde do mês de janeiro, chuvosa, úmida e fria, Margarida subia a muito custo a calçada de S. Bento, em Lisboa, onde morava uma das suas discípulas. A rua, viscosa e lamacenta, inspirava-lhe aquela repugnância patrícia, que a infeliz ainda não soubera vencer. A atmosfera plúmbea e carregada dava-lhe ao coração uma dose de invencível tristeza. Sentia-se predisposta para as recordações cruciantes para as inúteis flutuações de um sonho que se extinguira. Compreendia com angústia que lhe faltava coragem para levar a cabo o doloroso dever que a si própria impusera.

Oh! Ela bem sabia que a sua alma não era da têmpera das que lutam e se sacrificam!...

Nisto uma carruagem elegante descia a calçada ao passo de dois formosos cavalos ingleses. Margarida, vendo a alguns passos o correio agaloado, percebeu que era um ministro e, sem querer, movida por um impulso súbito, levantou os olhos e fitou-os no homem que ia dentro.

O que ela sentiu não se explica. O ministro era Eduardo de C. Os olhos dos dois encontraram-se. Margarida quis saborear a voluptuosa tortura de ver nesses olhos o brilho de um satânico orgulho, de um triunfo sinistro e mau. Não viu!

Eduardo teve tempo de inunda-la em um destes olhares doces, untuosos, cheios de misericórdia, de doçura, de perdão; em um destes olhares que só podem comparar-se ao olhar do Cristo redimindo a Madalena!

Só de longe a tinha visto de vez em quando nas salas do alto mundo: nunca lhe falara então; não quis humilha-la falando-lhe agora!

Ela sentiu que se lhe despedaçara no peito alguma coisa indispensável à vida.
Apertou em torno do corpo friorento e emagrecido as pregas do seu pobre xale preto, abaixou a cabeça instintivamente, como se fizesse pender para a terra um peso estranho, e continuou a subir devagarinho, arrimando-se à parede, aquela eterna calçada, cheia de água e de lama.

Caia uma chuva fria e miúda que lhe encharcava o fato.

Um mês depois, da casa pequenina de Margarida saia um enterro asseado e modesto. Era o enterro dela.

Miss Brown explicava que a pobre senhora voltara uma noite muito constipada das lições, que teimara em sair ainda no dia seguinte, mas que tivera de recolher-se à cama, onde penou pouco menos de um mês.

O enterro de Margarida levava por acompanhamento único uma carruagem sem brasão. Nessa carruagem ia Eduardo de C.

Margarida, antes de morrer, escrevera-lhe uma carta cujas súplicas dolorosas iam apagadas pelas lágrimas.

Os dois órfãos de Margarida estão agora a educar-se em um dos melhores colégios de Lisboa, e todas as despesas da sua educação são pagas por um protetor invisível e misterioso.

Há quem dê a essa Providencia ignota o nome simpático e hoje glorioso e querido de Eduardo de C.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman

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