Estranhou o prefeito, ao ler a folha oficial, naquela manhã, que o seu diretor de Instrução Pública tivesse designado um inspetor escolar para reger uma escola elementar em Campo Grande.
Estranhou e não era possível que tal não se desse, mas quis atribuir o fato a
injunções políticas. Em Campo Grande, no castelo feudal do Caroba, cercado de cemitérios povoados, reside o poderoso senador Rapadura, prócer do P. R. C. e dono da cidade e arredores.
Ele mesmo, prefeito, tinha que lhe obedecer as ordens; e, certamente, o seu diretor da Instrução Pública designou um inspetor escolar para reger uma escola de a-b-c em obediência a pedidos do poderoso perturbador da paz dos campos santos.
Mas, por que seria que Rapadura queria em Campo Grande um sábio inspetor escolar? Vaidade de habitante do lugarejo, que o desejava ver assim honrado e exaltado?
Não era possível. O profanador dos túmulos, o desinquietador do sono dos defuntos, não tinha nenhum amor pelo lugar que habitava. Não pedira para ele nenhum melhoramento, e isto há vinte anos. Como é, então, que tinha tido esse assomo de vaidade? Era inexplicável. Ah... Era isto. O senador era conhecido pelas suas poucas letras e tinha mesmo dificuldades em ler os jornais, de modo que, ao crescer-lhe a idade, teve o capricho de aperfeiçoar a sua instrução primária.
Há trelas na velhice que bem parecem de menino. Os extremos tocam-se. Sendo assim, não era decente que um senador, um legislador, fosse recapitular o quanto diz a aritmética de Trajano, sob os olhos de uma moça. O discípulo exigia um professor mais respeitável e graduado. Estava explicado o ato do seu diretor.
O prefeito almoçou, tomou o automóvel que o esperava no portão e partiu
célere para o palácio da prefeitura. Quando chegou a seu gabinete, que a muito custo pôde alcançar, o seu mesureiro secretário adiantou-se e antes de mais nada foi dizendo:
— Doutor, o novo diretor da instrução quer provocar uma revolução.
— Como?
— Com a tal nomeação de um inspetor escolar para professor elementar em Campo Grande.
— Revolução?
— Sim. Vossa Excelência não viu como as moças estão aí nos corredores amotinadas? Elas se dizem lesadas e os outros inspetores estão magoados e as atiçam contra Vossa Excelência.
O prefeito pensou e disse:
— Vá chamar-me o doutor Café.
O secretário foi em pessoa e em breve o diretor voltava, tendo atravessado as antessalas entre alas de professoras, adjuntas, estagiárias, normalistas, quase debaixo de vaia.
O prefeito perguntou-lhe logo com o sobrecenho carregado:
— Doutor Café, como é que o senhor nomeia para uma escola elementar um inspetor escolar?
— Que tem isso?
— E o regulamento?
— Vossa Excelência sabe perfeitamente que sou médico, entendo de patologia e algumas outras coisas mais...
— O Abel Parente já me havia dito.
— ... de instrução pública do município, pois, nada entendo.
— Como?
— Disse isto a Vossa Excelência no meu discurso de posse, não se lembra? Veio até nos jornais. Disse bem claro: “não entendo de instrução pública no Distrito Federal”.
— É verdade. - continuei.
Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Conto publicado originalmente em 1915.
Disponível em Domínio Público
Nenhum comentário:
Postar um comentário