quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Coelho Neto (O talismã)

Em escusa e sórdida viela, tremedal (brejo) nauseante entre arruinados casebres, na baiúca mais acaçapada e tão velha que os muros fendidos abriam-se em largas brechas por onde, ao cair da noite, saiam, aos trissos, revoadas de morcegos, em companhia de escaveirada bruxa, vivia velho mouro; tido por feiticeiro por ser muito sabido em curas e profundamente versado na ciência dos augúrios.

Os seus filtros operavam como se fossem o próprio elixir da vida, cuja fórmula os alquimistas procuravam.

Enfermo à cuja cabeceira se sentasse, ainda que houvesse sido desenganado por todos os físicos da cidade, logo readquiria o espírito e sarava. Horóscopo que tirasse consultando os astros cumpria-se com a precisão com que o sol faz o seu curso no céu.

Era tão celebrado o poder do homem mágico que os cristãos, sempre acirrados contra os marrados da sua laia, gente aleivosa e má, aparceirada com o demônio, indigna do ar e da luz, temiam-no e respeitavam-no e os fidalgos de maior entono (majestade), depois do toque de correr, quando as ruas escuras ficavam a discrição dos volteiros (desordeiros) temidos, cuidadosamente embuçados, renteando os muros eriçados de ervas, onde piavam corujas lúgubres, iam pela viela em passos ligeiros e, com o punho da espada, batiam rijamente à porta do muro desaparecendo de repelão nas trevas do corredor.

Uns, dados a amores, iam buscar amavios (elixires); outros, achacados (enfermos), iam a remédios. Ainda os havia crentes que confiavam nos grandes livros cabalísticos nos quais o mouro decifrava presságios sempre venturosos: anúncios de riquezas e honrarias, vitórias em expedições, sorte em amores, tal fosse o consultante: namorado, ambicioso ou cavaleiro.

Um dia correu a cidade a notícia de uma grande e maravilhosa descoberta do mouro — que ele conseguira compor, com o prestígio de um signo, um talismã de ventura. Quem o possuísse, teria o que desejasse.

Senhor de terras, deixava a sua lavoura medrar com abundância, multiplicar-se o armentio, reenxamearem-se as colmeias abandonadas, reviçarem os vageiros (terras estéreis). Fontes, desde muito estancadas, borbotoariam aos golfões; árvores sem ceira brotariam de novo.

Pastores descobririam minas, mesteirais (obreiros) achariam tesouros, guerreiros teriam os melhores despojos, enfermos ficariam sãos e só com uma volta de canto e um trêmulo nos alaúdes os namorados veriam aparecer na adufa (parte externa da janela) o rosto amado, logo ouviriam ranger de quícios (dobradiças)e um braço branco, estendendo-se na sombra, recebe-los-ia à porta guiando-os através de corredores silentes à câmara tão ardentemente desejada.

Com tal notícia foi imenso o alvoroço entre os homens e todos afluíram à baiuca do mouro e as escancelas de veludo, as bolsas de couro despejavam moedas na banca do descobridor do talismã da ventura.

A viela, dantes sossegada e deserta, mais silenciosa que almocóvar (cemitério judeu) maldito, onde nem aves cantam, encheu-se de gente; fidalgos e vilões, burgueses e campônios, todos aldrabando à porta do mouro, desaparecendo, com pressa ansiosa, na sombra fria do corredor.

A todos o homem mágico, em cujos lábios pairava irônico sorriso, entregando o talismã da ventura, repetia as mesmas palavras:

— Tendes na mão a chave de toda a fortuna e tudo obtereis, dentro em um ano, se não cederdes à curiosidade. No breve que vos entrego encerrei misterioso segredo. Tive a sua revelação em uma noite de Agosto, à hora em que nos vales e nos desfiladeiros os espíritos bailam à luz funérea do luar.

“Para que se realize o prodígio é necessário que conserveis o breve tal como lhe entrego, sem vos preocupardes com o que nele existe. Se tal cumprirdes vereis mudar-se a vossa sorte. Tereis na riquezas maiores, todos os amores; não haverá bravura que prevaleça contra vós e ainda que as pestes assolem a terra, dizimando os seus habitantes, passareis refratários a todo o mal, sem que o próprio Anjo sinistro possa alcançar-vos com o seu flagelo.

“Onde os outros virem arca e arro (lama) descobrireis ouro e gemas. A sorte está em vossas mãos. Se abrirdes, porém, o breve, o talismã imediatamente perderá toda a virtude. Assim, é preciso que observeis a condição do mistério. Se tal fizerdes, voltai dentro de um ano à casa do vosso servo, que muito se alegrará em ver-vos, ouvindo da vossa boca a confirmação do que lhe foi dito pelo gênio quando lhe comunicou os sete arcanos do talismã que levais.”

Foram-se os vários homens contentes, jurando que nunca procurariam ver o que havia nas suas nôminas, tanto, porém, que deixaram a viela, logo, em todos, começou a curiosidade a pruir: “Que será? Sete arcanos!” E apalpavam, cheiravam, viravam, reviravam entre os dedos o breve de couro. “Que haveria ali dentro?”

Alguns afirmavam haver sentido estranho, deliciosíssimo perfume; outros garantiam ter percebido movimentos, como de animal. “É uma pedra, talvez da lua”; dizia este. “É uma esquírola (fragmento) de osso”; asseverava aquele. Um: — “É frio, mais frio que a neve”. Outro: —“Abrasa que nem fogo vivo”. E discutindo, com as mais desencontradas opiniões, lá iam.

Sós, na baiuca: o mouro e a bruxa, puseram-se a contar as moedas. Ao fim, disse a mulher, que conhecia o segredo do talismã:

— Que pensas fazer agora? É prudente que, quanto antes, passemos a lugar seguro, porque os homens, ao fim do tempo, vendo que nada obtêm do talismã, darão pelo embuste e... ai! de nós.

Mas o mouro, que era atilado, ajuntando, uma a uma, as moedas luzentes, retorquiu com serenidade:

— E esperas que voltem? Bem mostras que não conheces a alma humana. Nem um só aqui tomará, porque a condição que impus será a minha garantia. Dei o prazo de um ano e estou em afirmar que, antes da noite, todos os breves estarão abertos, expondo os seixos que encerram. Satisfeita a curiosidade, ficarão os homens arrependidos, mas será tarde e cumprir-se-á o que eu disse: o talismã perderá a sua virtude. Descansa — nem um só tornará.

O homem, por curiosidade, desceria ao fundo do inferno, se lhe descobrisse o caminho, ainda que todo ele fosse assoalhado de pez (piche) ardente. Não te dê cuidado o amanhã.

Efetivamente o prazo escoou sem que um só dos possuidores do talismã aparecesse.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.

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