sábado, 13 de maio de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 6)

 

A. A. de Assis (Lira dos novent’anos)

Dia desses aconteceu comigo um fato meio impactante: completei noventa anos. Isso mesmo: noventa anos. Na dúvida, fui conferir na certidão de nascimento: noventa sim, irreversivelmente.     

Antigamente eu brincava dizendo que só os velhos chegavam a tão esticada idade. Agora penso diferente: penso que somente quem já fez noventa pode ser chamado de velho. E aí o choque: acabo de ser promovido a velho. Preciso então me encaixar nesse novo status.

Dá certa angústia imaginar alguém se referindo a mim como ancião, vetusto, antigo, provecto, longevo, gasto, anacrônico, obsoleto, arcaico, usado. Também me encabula um pouco ser carimbado como idoso. Mas me chamarem de velho não me incomoda não. De velhinho, melhor ainda: acho simpático – uma forma de carinho. Logo acabarei me enquadrando: vista cansada, ouvido preguiçoso, dorzinha aqui, dorzinha ali, bengala na mão, essas coisas típicas. 

Manuel Bandeira, quando completou meio século, fez um livro de poemas chamado “Lira dos cinquent’anos”. Como não tenho mais fôlego para fazer um novo livro, faço esta croniquinha chamada “Lira dos novent’anos”. Só pra registrar o evento. 

Afinal, noventar é hoje algo bastante comum. Está acontecendo com muita gente da minha geração. Gente que conheci de calças curtas. Gente que foi da minha turma no Grupo Escolar Barão de Macaúbas, no Ginásio Fidelense, no Liceu de Campos, no curso de Letras da UEM. Gente das primeiras safras de pioneiros e pioneiras de Maringá. 

Há vantagens em já ter feito noventa voltas em torno do Sol. A primeira é ter bisnetos; a segunda é ter muita história pra contar a eles e a quem mais eventualmente se interessar.       

Posso dizer, por exemplo, que viajei de carro de boi, de trem maria-fumaça, de Ford 29 (pé-de-bode), de avião teco-teco e DC-3; falei por telefone de manivela; ouvi gramofone e vitrola; rezei em latim nas missas; me emocionei ouvindo Francisco Alves, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo,  Nélson Gonçalves, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Ângela Maria; vi filmes do Carlitos e do Gordo e o Magro em preto e branco; vi na TV o primeiro pouso do homem na Lua; tive constipado, coqueluche, catapora; tomei biotônico Fontoura, emulsão de Scott, guaraína... 

Acompanhei pelo rádio as notícias da Segunda Guerra Mundial; chorei quando o Brasil perdeu para o Uruguai a Copa de 1950; conheci Getúlio Vargas, Gaspar Dutra, Juscelino, Jânio Quadros; conheci também o primeiro prefeito de Maringá, Inocente Villava Júnior; entrevistei Dom Jaime uma semana após sua chegada à nossa diocese; dancei bolero no Aero Clube e no Grêmio dos Comerciários; tomei sorvete na Oriental e bebi cuba-libre no Bar Colúmbia do prefeito Américo; assisti à posse do primeiro reitor da UEM, Cal Garcia; escrevi para os primeiros jornais e revistas da cidade: A Hora, A Tribuna, O Jornal, Folha do Norte, Maringá Ilustrada, NP...  

Xiiiiii... vou parar por aqui, antes que me perguntem se joguei bola de gude com Olavo Bilac.

Muitísssimo obrigado à minha querida família, aos queridos amigos e amigas, a todas as pessoas que me ajudaram a chegar até aqui. Com especial carinho, beijo-lhes as mãos. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-4-2023)

Fonte:
Texto obtido no facebook do autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIV


MARCA NOSTALGIA...
 
MOTE:
Tudo se foi da lembrança...
e do nosso antigo enredo
nem mais a marca da aliança
se acha gravada em meu dedo.
Humberto Del Maestro
Serra/ES

GLOSA:
Tudo se foi da lembrança...
Nosso amor chegou ao fim,
não restou nem a esperança
que eu tinha dentro de mim!
 
Do nosso amor com carinho,
e do nosso antigo enredo
nada restou no caminho
além da mágoa e do medo!
 
Sigo só, em  minha andança,
sem nada a me acompanhar,
nem mais a marca da aliança
quis comigo continuar!
 
Eu vivo sem alegria,
sofrendo, sempre, em segredo...
A marca da nostalgia
se acha gravada em meu dedo.
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MINHA FORTUNA
 
MOTE:
Eu tenho mais que ninguém,
fortuna de bens diversos:
– No bolso nenhum vintém...
– No sonho, milhões de versos...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:
Eu tenho mais que ninguém,
as minhas preciosidades
e o interior delas contém,
muito de amor e saudades!
 
Acumulo nesta vida
fortuna de bens diversos:
o beijo da despedida
e estrelas dos universos!
 
Sou rico e feliz, porém
de riqueza diferente:
- No bolso nenhum vintém,
mas o coração contente!
 
Costumo viver meu dia
lembrando amores dispersos,
e guardo, com alegria,
no sonho, milhões de versos!
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SOU TEU  MOMENTO...
 
MOTE:
Meu maior contentamento
é quando amorosa dizes,
que eu sou o melhor momento
dos teus momentos felizes!
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
Meu maior contentamento
é quando escuto tua voz
num eterno juramento,
que fazes amor...por nós!...
 
Esse momento sublime
é quando amorosa dizes
que o meu amor te redime,
que ameniza  tuas crises.
 
É doce o encantamento,
quando falas com fervor
que eu sou o melhor momento
dos teus instantes de amor!
 
Eu gosto de ser amado!
Gosto de plantar raízes
e ser o rei, no reinado
dos teus momentos felizes!
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SEM HUMILHAR...
 
MOTE:
Nas lutas do seu viver
guarde o troféu merecido...
Virtude é saber vencer
sem humilhar o vencido!
José Valdez de Castro Moura
Pindamonhangaba/SP

GLOSA:
Nas lutas do seu viver
problemas não faltarão,
mas você precisa ver,
com os olhos do coração!
 
Sempre que for vencedor,
guarde o troféu merecido...
guarde-o com ternura e amor,
que jamais será esquecido!
 
Sempre há um novo renascer,
quando termina uma luta.
Virtude é saber vencer
com honra, qualquer disputa!
 
Mais valor tem a vitória,
e ficará comovido,
se usufruir sua glória
sem humilhar o vencido!
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CAMINHOS...
 
MOTE: (Quadra)
Partir, ó alma, que dizes?
colher as horas, em suma...
mas os caminhos do outono
vão dar em parte nenhuma!
Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

GLOSA:
Partir, ó alma, que dizes?
Sigamos rumo às estrelas,
não é bom criar raízes,
pois nos impedem de vê-las!
 
Não basta, eis a verdade,
colher as horas, em suma...
para ter felicidade,
desfrutemos uma a uma!
 
O tempo traz abandono,
deixa cinza o nosso dia
mas os caminhos do outono
trazem ainda alegria!
 
Sofremos ao ver chegar
o inverno cheio de bruma,
pois seus caminhos vão dar...
vão dar em parte nenhuma!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

George Abrão (Reminiscências)

Hoje eu me peguei a recordar dos bons momentos da minha vida, porque dos maus já me olvidei, já os enterrei bem fundo nos recônditos da minha memória.

As primeiras lembranças que me vieram foram as da convivência com os meus pais e com os meus irmãos. Como fomos felizes em nossa modesta vida, como nos divertíamos com o pouco que tínhamos. Hoje, nossos filhos e netos têm de um tudo, só não têm a liberdade que tivemos: nadar no rio, colher frutas no campo do Cerrado, jogar futebol no campinho de terra, subir nas árvores, pescar nos riachos, brincar na rua, andar descalços, bater os pés no cinema, enfim, viver de verdade!

O cheiro dos pães que minha mãe fazia, quando a assar no forno de tijolos; os doces de frutas e as bolachinhas caseiras; o milho-verde assado no brasido do fogão de lenha; o bolo de fubá feito na chapa, em panela de ferro; a comida especial aos domingos e dias festivos; os doces das festinhas de aniversários (ah! o cajuzinho!); o doce de gila que minha avó fazia (eu o chamava de doce de vidro); as balas de ovos e as cocadinhas de mel que eu comprava na loja do Sr. Otto Hoffmann; os sorvetes do Bar Maracanã ou do Bar do Mansur; as frutas que comíamos nos pés, sem agrotóxicos; a água do Chafariz, salobra, mas refrescante; as laranjas gigantes, produzidas na Chácara do Saraiva, nas quais fazíamos uma cavidade, preenchíamos com açúcar e púnhamos sobre a chapa do fogão para assar e formar um delicioso doce; o perfume das uvaias do mato que se sentia a grande distância; e tantas coisas mais que eram privilégios da época.

E quando parece que tudo se perdeu nas brumas da memória, eis que, nos meus sonhos ou nos meus devaneios, para a minha felicidade, tudo volta e como se fosse agora, sinto os aromas, os sabores, as sensações, as alegrias do meu tempo de criança e sinto-me criança, como se esse tempo não houvesse passado.

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) 01

 

Guerra Junqueiro (Um nome inscrito no céu)

Era uma vez um pobre mendigo, que bateu à porta de uma humilde cabana a pedir esmola, para poder continuar a sua viagem. Mas não vendo, nem ouvindo ninguém, abriu a porta de mansinho e entrou no casebre; viu então uma pobre velhinha muito doente, que lhe disse:

- Ai! Não te posso dar nada, porque nada tenho.

E foi-se embora o mendigo, voltando dali a instantes, a bater à mesma porta.

- Pelo amor de Deus! – gritou a velhinha - já te disse que não tenho nada que te dar.

- Foi por isso que eu voltei. – disse em voz baixa o mendigo.

E, aproximando-se da velha carinhosamente, tirou do bolso, pondo-os em cima da mesa, muitos bocados de pão e algumas moedas de dez réis, que lhe tinham dado depois de ter estado com a velha a primeira vez.

- Aqui te fica isto, santinha - disse-lhe ele afetuosamente, indo-se embora sem que a pobre mulher tivesse tempo de lhe agradecer.

Não sabemos qual era o nome do mendigo; mas os anjos escrevê-lo-ão no Paraíso, e mais tarde nós o viremos a saber

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Guerra Junqueiro. Contos para a Infância. Publicado originalmente em 1877.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LIV

QUANDO JÁ NADA NOS RESTA 
 
Quando já nada nos resta
É que o mudo sol é bom. 
O silêncio da floresta
É de muitos sons sem som.

Basta a brisa pra sorriso.
Entardecer é quem esquece. 
Dá nas folhas o impreciso, 
E mais que o ramo estremece. 

Ter tido esperança fala
Como quem conta a cantar. 
Quando a floresta se cala 
Fica a floresta a falar.
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Que suave é o ar! Como parece
Que tudo é bom na vida que há!
Assim meu coração pudesse
Sentir essa certeza já.

Mas não; ou seja a selva escura
Ou seja um Dante mais diverso,
A alma é literatura
E tudo acaba em nada e verso
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Rala cai chuva. O ar não é escuro. A hora
Inclina-se na haste; e depois volta.
Que bem a fantasia se me solta!
Com que vestígios me descobre agora!

Tédio dos interstícios, onde mora
A fazer de lagarto. - O muro escolta
A minha eterna angústia de revolta
E esse muro sou eu e o que em mim chora.

Não digas mais, pois te ignorei cativo...
Teus olhos lembram o que querem ser,
Murmúrio de águas sobre a praia, e o esquivo
Langor do poente que me faz esquecer.

Que real que és! Mas eu, que vejo e vivo,
Perco-te, e o som do mar faz-te perder.
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RELÓGIO, MORRE
  
Quem vende a verdade, e a que esquina? 
Quem dá a hortelã com que temperá-la? 
Quem traz para casa a menina 
E arruma as jarras da sala? 

Quem interroga os baluartes 
E conhece o nome dos navios? 
Dividi o meu estudo inteiro em partes 
E os títulos dos capítulos são vazios... 

Meu pobre conhecimento ligeiro, 
Andas buscando o estandarte eloquente 
Da filarmônica de um Barreiro 
Para que não há barco nem gente. 

Tapeçarias de parte nenhuma 
Quadros virados contra a parede ... 
Ninguém conhece, ninguém arruma 
Ninguém dá nem pede. 

Ó coração epitélico e macio, 
Colcha de crochê do anseio morto, 
Grande prolixidade do navio 
Que existe só para nunca chegar ao porto.
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Renego, lápis partido,
Tudo quanto desejei.
E nem sonhei ser servido
Para onde nunca irei.

Pajem metido em farrapos
Da glória que outros tiveram,
Poderei amar os trapos
Por ser tudo que me deram.

E irei, príncipe mendigo,
Colher, com a boa gente,
Entre o ondular do trigo
A papoula inteligente.
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Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.

Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.
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Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.
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Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,

Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,

Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.
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Se eu pudesse não ter o ser que tenho
Seria feliz aqui...
Que grande sonho
Ser quem não sabe quem é e sorri!

Mas eu sou estranho
Se em sonho me vi
Tal qual no tamanho
O que nunca vi...

Fonte:
Disponível em Domínio Público.

Jaqueline Machado (Tempos muito difíceis)

 Ora, eis o que quero: fatos. Ensinem a esses meninos e meninas apenas os fatos. Nada além dos fatos. Da vida, precisamos somente dos fatos. Não plantam nada mais. Erradique todo resto. As mentes dos animais racionais só podem ser formadas com base nos fatos. 

É assim, com essa repetição da palavra “fatos” que se inicia "Tempos difíceis",  um livro satírico publicado no período da revolução industrial, por Charles Dickens. Trata-se de uma crítica à filosofia utilitarista, baseada em fatos, capitalismo e positivismo, defendida pelos britânicos Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Filosofia essa adotada pela Inglaterra, que era, nesse período, o maior império do mundo, e através de sua influência, exportava essa ideia a outros países. 

A história se passa na cidade fictícia de Coketown.

Um dos personagens centrais é o senhor Thomas Gradgrind, dono de uma escola que aplica essa ideia utilitarista nas aulas. Ele era pai de cinco filhos, mas na história só aparecem os dois mais velhos: a Luiza e o Tom. Tanto seus filhos quanto os demais alunos só aprendiam as disciplinas consideradas úteis, lógicas e necessárias para que, futuramente, se tornassem trabalhadores lucrativos e racionais, podendo assim contribuir com a felicidade do maior número de pessoas. Pois o lema do utilitarismo era "a máxima felicidade para o maior número de pessoas". O que importava era a maioria, mesmo que isso custasse o sacrifício da minoria. Toda solução era dada de forma racional, fria e numérica. Se um precisasse morrer para dois viverem melhor, então assim era feito. 

Nessa escola, as brincadeiras, a contação de histórias e a fantasia, eram consideradas desnecessárias e perigosas na formação de crianças. Tanto, que Cecília, uma menina abandonada por pais circenses é adotada pelo senhor Thomas, e tem por ele a sua educação reiniciada segundo a sua filosofia de vida.

O tempo passou, os filhos cresceram. O senhor Gradgrid tornou-se um sujeito mais flexível em seus ideais. Já a filha Luiza, torna-se uma mulher rígida, mantendo em si, a visão de mundo segundo o que aprendeu quando criança. Tomas, digamos assim... Não tinha muita firmeza de caráter. 

Cecília não perdeu seus sonhos de infância. Mas apesar de tudo, ao seu modo, eles tentavam se entender em seus próprios desentendimentos.

O clássico, "Tempos difíceis" mantém sua atualidade. Em meio à crise capitalista que assola parte do mundo com números crescentes de desempregados e cortes de gastos dos Estados - e, consequentemente, de empobrecimento da população. 

O narrador é muito satírico ao descrever as personagens, pois parece considerar que pessoas não são como máquinas capazes de viver somente de cálculos, fazendo tudo de modo lucrativo. A razão unicamente baseada em fatos desumaniza, já que para estar vivo, é preciso sentir, e para uma nação evoluir é preciso, às vezes, errar os cálculos matemáticos do que parece ser o certo. Ou seja, o utilitarismo impede que pessoas sejam, de fato, pessoas. Portanto, o desejo de proporcionar felicidade à base de uma racionalidade fleumática, sugerido pelos filósofos  Jeremy Bentham e John Stuart Mill, não existe. E é favorável apenas a um seleto número de irracionais perdidos de si. 

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça X

Também não era das piores esta cabecinha. Este tal dono da loja já tinha sido caixeiro de três. Era examinado na ordem e ricaço. Ninguém sabe o que é comprar água nos barris e vendê-la aos copos: é um maná. Este meu amigo então pegava em tudo o que era ganhuça (
ganho), já se sabe, licitamente, e sabia bem do negócio. Açúcar, nunca o comprou senão àqueles que o furtavam, bem entendido, mais em conta. Valha-me Deus, a gente não há de ser tola! Fazia café de alfarroba torrada que ninguém o conhecia. Antes era gabado pelo coberto, sem fazerem a descoberta. Tinha uma casa na qual lhe vendia uma criada velha o chá já fervido, mas ainda muito capaz. E não lhe tirava o suco (como diz certo Autor) sete vezes. O mais que chegava era a cinco, e ainda o vendia depois para tirar nódoas.

Fazia cevadinha e misturava-lhe farinha de favas que fazia muito boa união, além de lhe dar o gosto. O chocolate era a melhor coisa que ele tinha. Botava-lhe graxa de forma que era gordo e substancial. Tinha uma receita de fazer pão-de-ló sem ovos. Que muita gente que jejuava, (desta pouco escrupulosa), tomava a sua xícara de chocolate e o seu pão-de-ló e ficava jejuando.

Fazia um licorzinho de amora que era uma suspensão! Então e jeito para acarinhar fregueses! A isso ninguém lhe chegava. Vendia logo pela manhã os seus dois tantos de aguardente. Daí entravam os almoços que era um nunca acabar. Havia muitos que nunca almoçavam em casa. Era-lhes mais fácil, quando tinham só um tostão, deixarem toda a família em jejum, que assaz com um tostão de pão matariam a fome, só por virem para o botequim conversar e tomar o seu café com a sua torrada. O que é o costume! O ponche, à noite, era o chafariz d'El-Rei com todas as suas bicas. Não havia mãos a medir. E então que gritaria! Ah, senhor Manuel, mais forte! Outro acolá. Menos aguardente. Outro dali. Bote-lhe capilé. Venham bolos. Venha licor. Oh rapaz, paga-te... Era um temporal desfeito e uma parte iam sem pagar, outros mandavam assentar. E o malditinho do negócio era tão seguro que sempre se ganhava. Então que histórias se não contavam ali! Que novidades! Que mentiras! Que desaforos! Era um gosto.

Ia ali um que tinha namorado todas as moças daquele bairro. Sabia-lhes os nomes, as idades, os teres, os pais, as faltas, os acréscimos. Que guapo rapaz para fazer um mapa da Índia! E andava por ali perdido! Também havia outro que era muito esperto. Não lhe escapava lenço. já por fim dava vontade de rir ver todo o mundo a queixar-se e a assoar-se à mão porque havia alguns que em lhe furtando o primeiro ficavam logo nesse estado. E outro que inculcava onde havia partidas com Senhoras que davam o seu chá, cantavam modinhas e faziam as suas rifas! E outro que secava a gente para lhe assinarem uma obra que ele queria imprimir, intitulada Arte de sacar dinheiro. Que julgo seria obra muito perfeita porque ele tinha muito jeito. Ainda pilhou alguns. Mandou-a imprimir em Salamanca, por ser mais barata a impressão e estava-lhe tirando as chapas um Albardeiro. Há de ser bonita obra depois de acabada. Queira Deus que fique bem encadernada. Também ia lá um que ensinava a dançar e tinha botado grandes discípulos. Um macaco que dançava na corda, ele é que o tinha aperfeiçoado. Fazia décimas com os pés e andava compondo a segunda parte da fofa por pontos (já tinha três na cara de uma navalhada que lhe deu um discípulo que era muito seu amigo e uma boa alma) e tudo com os pés. O dono da casa aprendia a fazer peloticas  (bolinhas de prestidigitação) e já estava muito adiantado. Raras vezes perdia quando jogava e sabia fazer tombar os dados para onde queria, sem os chumbar. Eu digo o modo, que pode ser que sirva para algum miserável não cair. Quando queria que mostrassem menores metia os maiores debaixo de água, isto é, só metade do dado. E quando queria que servissem, tirava-os, limpando-os muito bem. E enquanto o osso conservava a umidade, que sempre era a sua meia hora, tombavam para ali. E ainda que os queixosos os partissem, nada achavam. Sabia fazer muitas coisas destas. Tinha um anel com seu espelho em lugar de retrato, virava-o para a palma da mão e com um baralhinho de cartas a jogar a lasca, vendo todas as que estavam por baixo, nem um cavalo de cortesias o fazia melhor numa praça. Mas, enfim, tudo isto lhe tinha custado dinheiro para o saber e todos devem ter prendas em que se fiar se lhes suceder uma desgraça. Era verdadeiramente um refinado brejeiro sem mistura alguma. Ali não havia joio nem ervilhaça, era trigo de Prioste. Tinha começado por garoto, era garoto e havia de acabar em garoto. Com bem o digamos. Também não era escrupuloso. Se lhe levassem uma lâmpada a vender, sendo barata, não perguntava de que Igreja era. Tinha trinta anos, tinha-se confessado vinte vezes e vinte vezes tinha estado no segredo por bagatelas. Mas Padre e Ministro nunca tinham ouvido da sua boca senão um não senhor. Podem supor que tal era a bestinha! Pobre não entrava na sua loja que não levasse esmola, nem também rico que não saísse pobre.

Ali havia toda a qualidade de isca e de anzol, de forma que ultimamente já era homem de bem, já tinha dinheiro, e ninguém perguntava como ele o tinha adquirido. E nisto acho eu razão. Cada um adquire-o como pode ou lhe deixam, uns com mais, outros com menos trabalho. Já tinha quatro botes seus e estava para pôr uma taberna. Aos Domingos pedia para a caridade e fazia-a muita gente. Também tinha duas seges de aluguel e quando eu me retirei da sua cabeça, andava para pôr uma loja de barbeiro para vender barbas pelo grosso, isto é, fazenda atacada.

À loja ia ali um Procurador de causas, homem já velho, de cabelo seu espigado. Tratava-lhe de uma demanda de interesse. Levava horas e horas a conversar com ele. Eram tão amigos. Um dia de anos foi o tal lá jantar. Já se sabe, muito comer, muito beber. Depois de jantar foram ambos para a cama, dormir a sesta. Logo reconheci o tal Procurador, que era o mesmo em cuja cabeça minha mãe me tinha parido. Os mesmos animais têm amor à Pátria. Eu não me pude vencer. O gosto de tornar aos lares onde tinha visto a primeira luz e chuchado o primeiro sangue, me meteu cobiça de passar àquela cabeça a que servirá a Carapuça XI.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Vanice Zimmerman (Tela de Versos) 16

 
Fonte dos versos e imagem de fundo: Facebook da autora

Sílvio Romero (Folclore do Pernambuco: O matuto João)

Havia um homem de nome Manoel, casou-se com uma mulher chamada Maria e tiveram um filho que se chamou João. Os pais, por serem muito pobres, não lhe ensinaram a ler; porém João era muito ativo. Um dia saiu de casa com uma cachorrinha que sua avó lhe tinha dado e foi passear. No caminho soube que no Reino das três princesas havia grande festa e um casamento, dentro de quinze dias, com uma das filhas do rei, se decifrasse uma adivinhação. Já muitos homens tinham morrido na forca por não poderem decifrar a adivinhação.

João, chamado o amarelo, voltou para casa e disse ao pai que ia pelo mundo afora ganhar a sua vida. O pai consentiu e a mãe lhe preparou um pão muito grande e envenenado e arrumou-o na trouxa. João partiu com a sua cachorrinha. Não sabendo bem os caminhos, perdeu-se nas montanhas, e, depois de andar muito errado, deu n'uma campina já de noite. Aí dormiu. No dia seguinte passou ele um rio, que tinha tido uma grande enchente e onde viu um cavalo morto, e os urubus já lhe estavam dando cabo. Como havia correnteza, ás aguas puxavam o cavalo rio abaixo. João reparou naquilo e seguiu seu caminho.

O sol já pendia quando ele sentou-se debaixo de um pé de arvore para comer o seu pão, e nisto deu-lhe o coração aviso que não comesse sem experimentar em sua cachorrinha. Logo que ele deu o pão à cachorrinha, ela expirou. Muito sentido com isto, ele pegou-a nos ombros, e os urubus começaram a atrapalha-lo. Para ver-se livre, ele enterrou a cachorra, mas os urubus a desenterraram, a comeram e morreram. 

João pegou nos urubus e pôs nas costas e seguiu. Chegou a uma estalagem, e, não vendo ninguém, entrou pela porta adentro. Lá no fundo avistou sete homens todos armados de espingardas. Estavam sem comer há três dias e logo que viram o João avançaram para ele e lhe tomaram os urubus. João largou-se à toda pressa e deixou-se atrás; mas vendo que o não seguiam voltou e achou-os todos mortos. Escolheu das sete espingardas a melhor e largou-se. 

Chegando adiante, encontrou uma grande campina; já morto de fome e sede, sentou-se debaixo de um arvoredo. Nisto voa do capim grosso uma ynhambu-apé [perdiz]. O tiro errou e foi dar numa rolinha que estava entre as folhas. João apanhou a rola e a depenou; mas não achou com que fizesse fogo para assa-la. Tinha ali uma santa-cruz e tirou dela uma lasca e fez fogo, assou a rola e comeu; mas tinha muita sede e, não achando água, pegou um cavalo, que andava ali pastando, montou nele e pôs-se a correr até o cavalo ficar bem suado — a ponto de correr o suor e ele aparar e beber. 

Seguiu sua viagem e passou num campo e viu uma cova onde havia uma caveira; falou-lhe e notou que a caveira também lhe falava. Mais adiante encontrou um burro amarrado debaixo de uma árvore a cavar com os pés e conheceu que o burro cavava uma botija de dinheiro. Seguiu e foi ter ao palácio do rei e levar a sua adivinhação à princesa, certo de que ela não acertaria. 

Apresentou-se o João e disse que era pretendente à mão da princesa, pois ela era incapaz de decifrar a sua adivinhação. Riram-se muito dele. «Ora! disseram, quando outros homens sábios não saíram-se bem, tu que és um pobre matuto e amarelo é que hás de casar com a filha do rei!» 

O matuto insistiu e foi falar ao rei. O rei lhe disse: «Sabes tu a quanto te arriscas?» João respondeu que a tudo estava disposto. Chamada a princesa e muito confiada em si e debicando o rapaz, manda-lhe que proponha a sua adivinhação. O matuto assim falou:

“Saí de casa com massa e pita;
A massa matou a pita,
A pita matou três,
Os três mataram sete,
Dos sete escolhi a melhor:
Atirei no que vi
E matei o que não vi,
Com madeira santa
Assei e comi;
Bebi água sem ser dos céus,
Vi o morto carregando os vivos,
Os mortos conversando os vivos;
O que o homem não sabe,
Sabia o jumento:
Ouça tudo isto para seu tormento.”

A princesa mandou repetir, e não foi capaz de decifrar. E casou com o João.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.  
Sílvio Romero. Contos Populares do Brazil.  Rio de Janeiro: 1894.

Doralice Gomes da Rosa (Canteiro de Trovas)


Abrindo as portas da vida,
a juventude é o centro...
E a velhice, intrometida,
vai entrando porta a dentro...
= = = = = = = = = 

A lua entrou em recesso
por ciúme e por vaidade
quando as luzes do progresso
deram mais brilho à cidade.
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A noite, sem teus abraços,
minha saudade se agranda...
Parece-me ouvir teus passos
no silêncio da varanda...
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A saudade me fez triste
por uma lembrança antiga...
Diz a ele que me viste,
porém nada mais lhe diga...
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A vida passa depressa,
igual a um rio que corre:
para o que nasce - começa.
Termina - para o que morre.
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Cai a chuva, e com malícia,
num jeito todo atrevido,
vai moldando com perícia
teu corpo sob o vestido.
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Das sobras do teu carinho
fiz os meus versos tristonhos,
embriagada no vinho
da cantina dos meus sonhos.
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Deixei caminhos risonhos,
dos grilhões cortei os laços,
cruzei a ponte dos sonhos
e fui morar em teus braços.
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De que nos vale a riqueza
e uma vida de esplendor,
quando nos falta a grandeza
de um mundo com mais amor.
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Enquanto o rio chora as mágoas
pelas cheias impolutas,
o sarandeio das águas
acarinha as pedras brutas.
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Estas rugas no meu rosto
que o tempo deixou sem ver,
são rabiscos de um sol posto
desenhando o entardecer.
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Este amor que nós vivemos
se eterniza a cada hora.
tanto que nós esquecemos
que existe um mundo lá fora...
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Eu quis falar de ternura,
quis abrir meu coração,
quando vi tanta amargura
nos olhos do meu irmão.
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Me chamastes de caipira?
Não me confunda, índio vago*:
– Sou gaúcha que suspira
pelas belezas do pago!...
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* Índio vago = Denominação dada ao antigo gaúcho, em sentido depreciativo, andarengo, pessoa que viaja muito, que não tem ocupação séria e vive à custa dos outros.
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Minha morada é singela,
com riquezas não me iludo:
há tanto amor dentro dela
e uma paz que me dá tudo.
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Montei meu pingo* e num “upa”
parti, deixando meu povo,
levando em minha garupa
a aurora de um sonho novo.
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Pingo = cavalo, no linguajar gaúcho.
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Murchavam, por falta d’água,
as flores do campo santo...
Desafoguei minhas mágoas
e reguei-as com meu pranto!
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Não quero saber de intriga,
pois cheguei à conclusão:
É melhor viver sem briga,
do que brigar sem razão.
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Na solidão do meu rancho,
nossa rede, que ironia,
ainda presa no gancho,
embala a noite vazia.
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Na vida qualquer riqueza
perde sempre seu valor
quando nos falta a beleza
de um mundo com mais amor.
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No delírio da cachaça,
me sinto dono do mundo:
bebo no bico, na taça,
e até num copo sem fundo...
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No jardim da mocidade
plantei amor, plantei flores,
colhi carinho e amizade
e a rosa dos trovadores.
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No lugar do meu ranchinho,
desprovido de artifício,
o progresso abriu caminho
a um majestoso edifício!...
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No meu peito, ódio não medra,
não há lugar pra revolta,
se alguém jogar-me uma pedra,
recebe flores de volta.
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No picadeiro da vida
sou um palhaço tristonho
chorando a ilusão perdida
desse amor que foi um sonho.
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O sol e a lua se amaram,
às escondidas, ao léu.
Tempos depois despontaram
milhões de estrelas no céu.
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O tempo, em louca voragem,
já varreu tudo o que quis.
Só não levou-me a coragem
de ser bom e ser feliz.
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Pra chegar no meu ranchinho,
não precisa desafio:
basta seguir o caminho
que desemboca no rio.
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Por uma batalha inglória
não despreze a fé cristã.
Terás sempre uma vitória
ao viver outro amanhã.
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Progresso! Onde estão meus campos?
Só vejo asfaltos, imóveis...
Em lugar dos pirilampos
brilham faróis de automóveis.
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Quem cultiva a valentia,
e vive a fazer maldade,
cuidado que a ventania
faz frente à tempestade.
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Quem levar o beijo a sério,
e analisar com carinho:
– Num adulto ele é mistério...
– Na criança dá sapinho...
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Quem visitar meu rincão,
vai ver só que maravilha:
– A gloriosa tradição
desta terra farroupilha.
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Queria ter a existência
passageira de uma flor:
-Morrer na doce inocência.
com todo o seu esplendor!
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Se eu morrer ainda nova,
partirei com alegria:
lá no céu vou fazer trova
pra Deus e a Virgem Maria...
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Se nos causa grande dor,
nesta vida, amar alguém,
é melhor sofrer de amor
que chorar sem ter ninguém.
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Sinto em cada trova escrita.
que a saudade amarelou,
a lembrança mais bonita
que a tua ausência deixou...
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Sonhei, em loucos desejos,
ser um beija-flor colosso,
fechando um colar de beijos
na curva do teu pescoço.
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Teu amor é uma jangada
que aportou, com muito jeito,
e agora vive ancorada
nas amarras do meu peito...
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Teus olhos trazem mensagem
de luz, de amor, de carinho...
São dois fachos de coragem
brilhando no meu caminho.
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Todas manhãs, na ramagem
das madressilvas em flor
escuto a doce mensagem
de um sabiá trovador!
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Todo conselho é pequeno,
se, na canha afoga o tédio.
Chega um, diz que é veneno,
vem outro, diz que é remédio...
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Vejo em tudo encantamento,
vejo no espinho uma flor.
Até no choro do vento
ouço mensagens de amor.
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Fonte:
Enviado pelo editor (Milton S. Souza)
UBT Porto Alegre/RS.Terra e Céu XXVII. Doralice Gomes da Rosa e Conrado da Rosa. (Coleção Terra e Céu). Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.