sábado, 2 de abril de 2022

Daniel Maurício (Poética) 27

 

Humberto de Campos (Pele Curta)

Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranquila, dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.

As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.

Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.

A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.

- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.

- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.

Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.

- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.

- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.

- Que moléstia é essa?

- A minha? Eu sofro de pele curta.

- Pele curta? - estranhou o morador.

Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:

- Entre pra cá. A casa é sua.

E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.

Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.

- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?

- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...

- Você está roncando como um trovão. Que é isso?

- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.

O outro não compreendeu, e ele explicou:

- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!

E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXVIII

Aonde houver luz abundante
pode a vida brilhar mais,
mesmo sob um sol radiante
a sombra acaba jamais.
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Chuva, granizo ou tormenta,
tudo assusta e descontrola,
sempre apavora se venta
e arrebenta a ventarola.
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Como Jesus, em viagem,
partamos sempre, a caminho,
'nunca, porém, sem coragem
a espera de um trocadinho'.
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Deus, não pede que façamos,
na terra, estranha proeza,
porém, que lhe devolvamos,
as cores da natureza.
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Frente à dor não te acovardes
longas noites, lutarás,
sorverás no fim das tardes
as moléculas de paz.
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Não deixes que a dor invada
a alma, deixando-a ferida,
o tudo, com dor é nada
e o pouco, sem ela é vida.
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Não te iludas, brasileiro!
com teu clima sedutor...
pois, não é no mundo inteiro,
que em janeiro faz calor.
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No arquipélago dos sonhos
ninguém permaneça ilhado,
supere, mesmo enfadonhos,
os ventos e o mar singrado.
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No clamor usa o talento,
ouve e dize com voz lhana*,
que tens à chama do alento
a luz que a vida engalana*.
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No esquife um corpo jazia
sob o pranto alguém orava,
era um sonho que partia...
...e o outro, partido, ficava.
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No lugar que a fome impera,
com furor e sem piedade,
brote o trigo sobre a terra
e espalhe o pão da bondade.
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O atleta, quase perfeito,
leva o jogo além-paredes,
mata a bola contra o peito
fazendo-a chegar às redes.
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O cigarro identifica
o adepto do tabagismo,
seu consumo danifica
o bolso, além do organismo.
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O homem nasce dependente,
se liberta à adolescência,
na velhice, novamente,
entra em nova dependência.
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Pode haver alguém que siga
a vida à sombra da farra
e em detrimento à formiga
prefira o tom da cigarra.
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Procede com convicção
sempre de maneira tal
que possas tornar a ação
uma norma universal.
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Quanto mais irado o ser
menos brilho tem o olhar,
fazendo na ira, crescer,
a nuvem que o faz cegar.
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Quem só se prende ao dinheiro
e a uns fragmentos deste chão,
pode acabar prisioneiro
na clausura de um caixão.
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Saudades não têm tamanho,
mas causam devastações,
são recordações de antanho
machucando as emoções.
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Se além-morte há vida nova
o esquife não tem mostrado,
nem a ciência comprova
o que a fé tem revelado.
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Se frustraste as tentativas
pra vencer teus desafios,
busca outras alternativas,
não fiques a ver navios!
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Se uma pedra a vida oprime,
deixando a alma estraçalhada,
não chore, nem desanime,
ela faz parte da estrada.
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Sob as longevas videiras
com fartura e exuberância,
desfilam as vindimeiras*
sorvendo aromas da infância.
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Sopra o vento, ficam rastros,
nos ramos ou na poeira,
no pináculo dos mastros
pela dança da Bandeira.
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Toda a guerra, no seu bojo,
jorra sangue de sobejo,
mancha de revolta e nojo
o quadro anil do desejo.
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* VOCABULÁRIO DO BLOG
Lhana = franca, sincera.
Engalana = embeleza, enfeita.
Vindimeiras = cestos que se levam as uvas na vindima (
engloba o período entre a colheita das uvas e o inicio da produção do vinho).

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Mia Couto ( Francolino e Lucinha)

Sentada na varanda, Dona Lucinha acerta agulha e pano, em infinita costura. Há tantos anos que redige tais bordados que ela já nem sabe o que está criando. O gato é testemunha daquele inartefato, enroscado em falso ponto de interrogação. Afinal, o tempo é quem nos vai alinhavando. Demasiado tarde: a vida coloca o dedal no dedo onde o amor já fez a ferida.

Recuado na sombra da varanda, o marido, Francolino Vicente, se balança na cadeira, espapançudo* ante um idoso jornal. É uma publicação remota, dos tempos em que ele, realmente, lia jornais. Ele prefere assim, entre bafo e desabafo:

— Só leio jornal desses tempos em que apenas havia boas notícias.

O copo está vazio, mas ele, de quando em quando, o leva aos lábios e faz estalar um gozo. Francolino é como a aranha que encontra alimento sem procurar comida. Sua teia é ali, nos invisíveis fios da varanda. O tempo, para ele, se indefine:

— Hoje é terça-feira em ponto.

O homem sabe os segredos do mundo: o rio, verdadeiro, não mexe. Flui, deixado e desleixado. Quem faz mover suas águas são os rabos dos peixes, inumeráveis leques que nunca pausam. Como nós. Deixemo-nos quietos como pedras e o tempo não anda.

Francolino pousa, com vasta cerimônia, o pregueado jornal:

— Lucinha?

— Diga, marido.

— Você gosta de mim?

Ela abana a cabeça, negativamente. Responde sempre assim, despalavrada, subterfugidía. Voltando a desfranzir o jornal, ele relança a atenção na leitura, enquanto diz:

— Há-de gostar.

Desde que juntaram suas vidas é sempre assim. Todos os dias a cena se repete, incluindo o gato que, com a amealhada preguiça, já nem espreguiça. Tem sido assim desde que Francolino a raptou de uma companhia de dançarinas que passara pela cidadezinha. Aconteceu há quarenta anos. Perante juízos ele, na hora, se defendeu:

— Ser roubada é um destino para mulher afortunada. Ainda calha bem que fui eu quem deu andamento a esse rapto.

Que a dançarina correspondesse àquela paixão isso o imperturbava. O sal é que faz o maduro da manga verde. Assim, o amor havia de chegar. Que ela tivesse sido arrancada de uma paixão, a dança, isso nem comichava a consciência de Francolino.

Foram somando filhos, perdendo tempos. Nunca ela lhe entregou ternura, nem adocicou palavra. Sempre distante, desacontecida. Sentada nos degraus da tarde, ela bordava como se remendasse a sua existência.

— Lucinha?

— Diga.

— Você me gosta?

— Já sabe que não.

E logo o homem garantia: ela haveria de gostar. No enquanto, o tempo ia visitando aquela varanda, deitando por ali mais poente que manhãs.

— Estamos envelhecendo — dizia Francolino. — Estamos para aqui nos carcaçando. Sabe como é que a gente nota que estamos a envelhecer?

— Deixe-me bordar em sossego.

— Sabemos que estamos velhos porque nos começam a nascer ossos e mais ossinhos. Nunca reparou, Lucinha?

— Leia o seu jornal, homem.

O homem prossegue: é isso a velhice, como se o corpo se preparasse para caixa, todo ele gradeado a ossos, inorgânico. Francolino não pretende dizer nada. Simplesmente quer desviar Lucinha a favor de sua atenção. Mas a mulher continua toda nos lavores. Tudo em redor são insignificâncias. Principalmente, ele, o sentadiço marido. Aquele desprezo seria vingança da sua condição de roubada? Soubesse se e não haveria estória.

— Lucinha? Você...

— Não.

Até que, certa semana, ele deixou de proceder à sacramental pergunta. No início, Dona Lucinha nem notou diferença. Bordava seu longo tecido, a costura e as mãos dela já tornadas simbióticas, amparadas no entretecer recíproco. Aos poucos, porém, aquele silêncio do homem lhe foi roendo o coração. Já não dava nem ponto nem nó. Até que ela se extroverteu:

— Francolino?

— Sim...

— Já não fala comigo?

Ele sacudiu a cabeça, embrenhado na leitura de nenhuma página. Seus olhos se adesivaram no jornal, parecia que ele estudava modo de escapar entre as letrinhas, dissolvido em pontos e vírgulas.

A esposa, com os tempos, se foi acrescentando de impaciências. Até que, certa tarde, ela renovou a pergunta. Sua voz se estica em corda de angústia:

— Já não me pergunta nada, Francolino?

Francolino nem tuge nem ruge. Então, ela se levanta e lhe entrega o pano que se desenrola em infinitas desvoltas. O tecido se enrosca no colo do homem e, aos poucos, vai ocultando o jornal. Por desatenção de suas mãos ou por demasia de peso as páginas se rasgam, abrindo se um abismo como se ao próprio tempo faltasse o chão. Se vê, então, que aquilo que ela vem bordando, desde há anos, é um repetido e sucessivo vestido de dança, adornado de mil folhos e plissados. Parecia dessas roupas que só servem para despir.

Francolino olhou o suspiro dos panos sobre o chão. E lembrou como, em tempos, a vira no palco estreando luzes, vestida só com a nudez dela. Memória desembrulhada, bordado tombado, jornal rasgado: o velho suspende um gemido, quase uma lágrima.

Visse ele quanto uma vida inteira pode tombar assim num desembrulho. A voz em riachinho:

— Que lindo esse vestido, Lucinha!

Debruçando se sobre a cadeira do marido, Lucinha beija lhe longamente a testa. Tão longamente que ele adormece, se afundando no rio do tempo, mais denso que a própria vida.
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* Espapançudo = Não encontrei sinônimo para esta palavra, mas pelo texto creio que seria como “pança arriada”.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Como Escrever uma Análise Crítica - Parte 1


Uma análise crítica serve para avaliar a qualidade de um artigo acadêmico ou outro tipo de trabalho. Você precisa fazer uma análise sobre um artigo, um livro, um filme ou um quadro? Comece com uma leitura crítica para identificar e compreender os argumentos do autor e reunir os elementos necessários para formar a sua opinião. Estude o texto com mais atenção e monte a análise. Por fim, redija o trabalho usando a estrutura correta.

Fazendo uma leitura crítica

1. Leia o texto com atenção e faça as anotações.


Estude todo o material que você separou para a análise. Destaque, sublinhe e faça comentários sobre as partes importantes. Marque as palavras, os conceitos e qualquer informação que você não tenha entendido bem.

Talvez você tenha que reler o texto, principalmente se ele for muito denso ou complexo. Enquanto você faz a leitura, defina o que é importante, útil, inovador, relevante, controverso e válido.

2. Reconheça as teses do autor.

Pergunte a si mesmo: quais são as ideias que ele defende ou ataca? Marque ou sublinhe o trecho que caracteriza a tese principal. Geralmente, ela aparece no primeiro ou no segundo parágrafo do texto e consiste em uma única frase que resume o argumento principal.

É mais fácil encontrar uma tese em um artigo acadêmico do que em uma obra de arte, como um filme ou um quadro.

Você está analisando um filme de ficção ou que retrata os fatos reais sem o rigor histórico? Identifique os temas mais importantes do enredo. Caso seja uma pintura, procure entender o que as cores e as formas dizem.

3. Durante a leitura, escreva as ideias principais do autor.

Sublinhe ou destaque os tópicos frasais e os trechos que pareçam ser mais significativos, por exemplo: as explicações ou as evidências fornecidas ao longo do texto que corroborem o ponto de vista adotado. Essas partes do texto são muito importantes porque permitem analisar a estrutura.

Quais são os tópicos frasais de cada parágrafo e seção do artigo acadêmico que você está lendo?

Quais são as cenas e as imagens que reforçam a mensagem principal do filme ou do quadro?

4. Faça um resumo com as suas próprias palavras.

Para consolidar o entendimento do que você acabou de ler, escreva uma pequena síntese.
Diga em um parágrafo quais são o tema e o argumento principal do texto.

Caso seja um filme, faça uma sinopse do filme em um ou dois parágrafos ou descreva o livro, por exemplo.
_______________________
continua…

Fonte:
wikihow

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Varal de Trovas n. 554

 

Filemon Martins (A Lenda do Ipupiara)

A lenda do monstro marinho conhecido como Ipupiara ou ainda Hypupiara, percorreu o mundo no século XVI. Habitava as profundezas das águas e assombrava, inicialmente, os indígenas do litoral brasileiro, passando depois a atormentar pescadores e marinheiros.

Há relatos sobre esse monstro horripilante e asqueroso do cronista português, Pero de Magalhães Gandavo, na Vila de São Vicente, SP, a primeira Vila do Brasil, dessa forma: "sendo já alta a noite, acertou de sair fora de casa uma índia escrava do capitão e lançando os olhos a uma várzea pegada ao mar, viu andar nela um monstro, movendo-se com passos e meneios desusados, e dando alguns urros tão feios que lhe parecia uma visão diabólica... andava ali uma coisa tão feia, que não podia ser senão o demônio. Chamado o capitão Baltasar Ferreira que, ao ver o monstro, enfrentou-o e o abateu a golpes de espada".

O cronista português descreveu o monstro como tendo "quinze palmos de cumprido e era semeado de cabelos pelo corpo e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes".

O jesuíta Fernão Cardim e o padre José de Anchieta fizeram referência a esses monstros e, segundo eles, o Ipupiara, era um ser "bestial, faminto, repugnante, de ferocidade primitiva e brutal". Anchieta escreveu: "Também há outro (demônio), nos rios, aos quais chamam Ipupiara, isto é, moradores da água, os quais igualmente matam os índios". Arrola o Ipupiara como uma das figuras do Demônio que afligiam os índios, ao lado do Curupira e do Boitatá.

A lenda do Ipupiara é tão forte e viva em São Vicente, que construíram um monumento em sua homenagem na Praça 22 de janeiro. Quando morei em Itanhaém, tive oportunidade de conhecer a estátua e a Praia da Biquinha, onde dizem os moradores houve a última aparição do ser monstruoso em dezembro de 1975, quando um jovem surfista de 17 anos afirmou ter sido atacado por um monstro numa noite quente de verão ao se refrescar no mar na praia da Biquinha. Essa estátua, infelizmente, pegou fogo e foi destruída em 2016. A obra, de autoria de Daniel Gonzalez, artista plástico falecido em setembro de 2011, foi inaugurada em 22 de janeiro de 1999. Filho do ator Serafim Gonzalez, o escultor é autor de outras obras de destaque na Baixada Santista, como a do Praiamar Shopping e O Surfista, no José Menino. Mencione-se também que o ator Serafim Gonzalez era escultor e autor do monumento Mulheres de Areia, em Itanhaém.

O sociólogo Gilberto Freyre, em sua obra Assombrações do Recife Velho, Rio de Janeiro, (2000) escreveu sobre a lenda; "Mais danados que todos, os hipupiaras eram homens marinhos que espalhavam o terror pelas praias. Os hipupiaras não comiam da pessoa que pegavam a carne toda, mas apenas uma parte ou outra. O bastante, entretanto, para deixar a vítima um mulambo. Comiam-lhe os olhos, narizes, e pontas dos dedos dos pés e mãos, e as genitálias. O resto deixavam que apodrecesse pelas praias".

Sérgio Buarque de Holanda também escreveu: "A fantástica ipupiara, com seu jeito particular de matar os homens, que é beijá-los e abraçá-los fortemente até fazê-los em pedaços, ficando ela inteira, e como os sente mortos, põe-se a chorar (sem que isso a impeça de devorar-lhes as partes do corpo que julga mais delicadas)”.

No caso de São Vicente, hoje, admite-se que é provável que tenha sido um grande leão-marinho, animal pouco conhecido e assustador para os caiçaras que habitavam o litoral paulista.

Um fato curioso, contudo, me intriga; nasci numa cidade do interior da Bahia, que se chamava inicialmente Campos Belos (1842), Fundão de Brotas (1865), Fortaleza de São João (1906), Jordão de Brotas (1911), Vanique (1935) e a partir de 1936, Ipupiara, com o Decreto-lei estadual n° 141, de 1943, confirmado depois pelo Decreto estadual n" 12.978, de 1944. Nasci, portanto, na cidade de Ipupiara, região da Chapada Diamantina. Quando aqui aportei, tomei conhecimento da fascinante lenda que correu o mundo.

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 5 =

ACEITAÇÃO


É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas,
nem as formas do mar, nem tu.
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
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ALVA

Deixei meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.
Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de cores da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo…
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DESAMPARO

Digo-te que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?
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EPIGRAMA N. 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
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EPIGRAMA N. 3

Mutilados jardins e primaveras abolidas
abriram seus miraculosos ramos
no cristal em que pousa a minha mão.

(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-se tempos, formas, cores, vidas...

Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos
só da incerteza da ressurreição.
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GARGALHADA

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas…

Escuta bem:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heroica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.
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ORFANDADE

A menina de preto ficou morando atrás do tempo,
sentada no banco, debaixo da árvore,
recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
murmurou: «A MAMÃE MORREU».

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme
com as três palavras que ficaram por ali.

Fonte:
Cecília Meireles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

A. A. de Assis (Coragem de Publicar)

“Expor-se na vitrina é bonito, desde que você esteja consciente de que a qualquer momento pode levar uma estilingada”... O escritor e ex-deputado Antonio Facci costumava citar essa frase ao lembrar que escrever para o público é um ato de coragem. Ter ideias próprias sobre o mundo, as pessoas e os acontecimentos é importante e ótimo, porém relativamente fácil. Difícil é assumir o risco de expressar abertamente essas ideias.

Falando ou escrevendo, num discurso, numa palestra, numa entrevista, num romance, num poema, num artigo para jornal ou revista, o autor tanto pode ser aplaudido quanto pode ser alvo de crítica ou de contestação.

Decerto haverá ouvintes e leitores que receberão costumeiramente com simpatia as suas publicações. Mas haverá também quem, por algum motivo, justo ou não, tenderá a achar defeitos nas suas falas ou nos seus escritos. A vida é assim, e é bom que assim seja, visto que assim você tomará mais cuidado no que expuser ao público.

Facci sabia das coisas. Durante os oito anos em que foi presidente da Academia de Letras de Maringá, chamou repetidas vezes a atenção dos colegas para as responsabilidades de quem sonha ser escritor: “Vocação você tem, competência para escrever já demonstrou que também tem; todavia o que de fato lhe dá o direito de se apresentar como escritor é a coragem de mostrar publicamente aquilo que escreve”.

Numa cidade como a nossa há centenas de pessoas capazes de compor um texto certinho, com as palavras grafadas corretamente, as frases bem concatenadas, concordância impecável etc. e tal. Tais pessoas, por certo, hão de ter também muito conteúdo útil a ser compartilhado. Então o que falta para que divulguem suas ideias e experiências?

Antigamente, a não ser que o autor pagasse do próprio bolso para imprimir um livro, havia a necessidade de encontrar uma editora que aceitasse lançar escritores desconhecidos. Ou achar um diretor de jornal ou revista que acolhesse artigos ou crônicas de novatos. Porém hoje ninguém depende de ninguém para mostrar ao público o que produz. A internet está aí para isso, e é praticamente de graça. Basta você redigir o texto e postar no facebook. Se for um romance, um álbum de poemas, uma coletânea de contos, até mesmo um tratado, pode montar em forma de e-book e mandar ver.

Daí que, de agora em diante, para ser escritor, bastam duas condições: escrever a obra e criar coragem para mostrá-la ao público, sujeitando-se a pelo menos quatro possíveis reações: 1. aplauso; 2. aceitação com reparos; 3. contestação; ou 4. indiferença. Seja lá qual for o resultado, vale a pena publicar.

Ou seja: se você tem o que dizer e sabe como fazê-lo, bote pra fora o seu recado.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 31-3-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 31 de março de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 03

 

Sammis Reachers (Nildo, a lição de Jaú e o balde de cal)

Amigos, o Nildo, anos depois, já como motorista da empresa Pendotiba, certa vez foi obrigado a pegar um veículo 'normal' (grande) na garagem, para fazer linha, lá pelas 07h00 da matina. Acontece que Nildo, desde que iniciara ao volante, trabalhara sempre em micro-ônibus, pelo que estava desacostumado de rodar em ônibus grandes. Mas, vida que segue.

Indo nosso querido Nildo em direção ao ponto final, para começar a fazer linha, na altura da rotatória do bairro Baldeador, nosso amigo, desacostumado com carroções, raspou o pneu no meio-fio.

Naquela época os pneus dos veículos da Pendotiba, assim como de algumas outras empresas, eram pintados com algo em torno de cinco ou seis bolinhas brancas na lateral:    para cada bolinha  daquela que    aparecesse raspada, o motorista era obrigado a pagar uma quantia em dinheiro!

Sentindo a raspada, Nildo parou o veículo e desceu para avaliar o 'prejuízo'. A raspada fora à vera: quatro bolinhas haviam desaparecido! E ele ainda nem começara a fazer linha, a apanhar passageiros...

Mas, ali próximo havia um galpão da CLIN, a companhia de limpeza e conservação urbana de Niterói. Por uma incrível sorte, Nildo observou um funcionário da CLIN munido de uma lata de cal e pintando os meios-fios, alguns metros adiante. Nosso amigo imediatamente lembrou-se da lição do velho Jaú, o "liquid-paper", e não se fez de rogado: apanhando no lixo uma pequena garrafa plástica de 6OO ml de Coca-Cola, foi até o gari, pediu um pouco de cal, e em seguida, voltando para o carro, apanhou em sua bolsa um chumaço de papel higiênico.

Após limpar o borrado do pneu, com o papel encharcado de cal, o bom Nildo pintou novamente as quatro bolinhas faltantes, e ficaram redondinhas, perfeitas as meninas! Tão certinhas que Nildo rodou o resto do dia e ninguém percebeu sua obra de arte...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poemas Escolhidos) – III

ACENO


No aceno do adeus a dor
De quem fica e de quem vai.
Medo, dúvida, pavor,
Que o retorno desse amor
Não se dará nunca mais.

No aceno do adeus, tristeza,
O nó seco na garganta,
A certeza da incerteza
De uma dúvida que é tanta
Que veio, assim, de repente,
Numa breve despedida
De ternura quase santa!
= = = = = = = = = = = = =

ALFORRIA

Rompi o elo que me atava a vida,
Dei alforria à falsa liberdade,
Curei a chaga cruel e dolorida,
Joguei no lixo o resto da saudade.

Deixei meus sonhos ao sabor do vento
Vagando solto pelo mundo afora,
Livrei do peito todos os momentos
Que eu guardava comigo até agora.

Livre do laço, então, lanço-me ao léu,
Busco o abrigo que queria tanto,
Não quero mais provar do amargo fel!

Liberto, assim, de todas as correntes,
E já despido do pesado manto,
Busco outro amor sempre seguindo em frente...
= = = = = = = = = = = = =

ALVORADA

O sol renasce trazendo a alvorada,
A vida pulsa novamente em mim,
Desperta em bando toda a passarada,
Sinto a fragrância doce do jasmim.
 
O orvalho chora o fim da madrugada,
Cobre de gotas todo o meu jardim,
A buganvília, toda engalanada,
Veste seus ramos com a cor de carmim.

O galo canta alegre no poleiro,
No velho aceiro rompe uma boiada,
E o povoado acorda por inteiro.

E eu feliz, junto da minha amada,
Aproveitando o fim da madrugada,
Numa forragem dentro do celeiro.
= = = = = = = = = = = = =

AMIGO

Deixe-me ser seu amigo
Sem exigir recompensa.
Ser seu norte, seu abrigo,
Amigo de fé e de crença.

Deixe-me ser o amigo
Que sabe estender a mão
Dividindo o pão de trigo
No momento do perdão.

Deixe-me ser seu amigo,
Aquele irmão camarada,
Ser o guia que conduz
Seus passos pelas estradas.

Deixe-me ser seu amigo,
O amigo verdadeiro,
Doando-me por inteiro
De forma terna e completa,
Deixe-me ser seu amigo,
Com a Alma de Poeta...

Deixe-me ser…
= = = = = = = = = = = = =

A PATA DO PATO

Um pato tem duas patas,
Quatro patas, dois patinhos.
Um cãozinho tem quatro patas,
Oito patas, dois cãezinhos.

A pata do pato é chata,
Do cãozinho é redondinha.

Um pato tem duas patas,
quatro patas, dois patinhos.

Aluísio de Azevedo (Heranças)


Duro o sobrecenho, a cara franzida e má, trabalhava ele sombriamente à sua secretária, importunado pelo rumor de duas vozes, uma de homem e outra de mulher, que altercavam na sala próxima, num arrastado crescendo de rixa habitual.

- Diabo! resmungou, coçando a cabeça. Já lá estão os dois a brigar! Não me deixam fazer nada!...

O ruído aumentou. Cruzaram-se injúrias mais fortes; ouviram-se punhadas e pontapés nos móveis.

- Que inferno!

E o rapaz arremessou a pena e correu à porta da sala, exclamando desabridamente:

- Então, meu pai! Não tenciona acabar com isso?!

- Pois não vês que é tua mãe que me provoca?! – berrou o outro apoplético de raiva. - Vem ouvir só o que ela me está dizendo, esta peste!

- Ora tenha juízo!...

- Malandro!

- Ouviste?!

- Não faça caso!...

- Especulador!

- É demais!

- Deixe-a lá!...

- Bêbado! Covarde!

- Covarde?! Pois vou dar-te o pano de amostra da minha covardia, víbora assanhada!

E o homem atirou-se em fúria, de mãos prontas para fechar a mulher dentro das garras. Mas o filho, de um salto, susteve-lhe a carreira e apresou-o energicamente pelo vigoroso dorso, empurrando-o para o quarto onde trabalhava e cuja porta obstruiu com o corpo.

- Deixa-me, ou te arrependerás! – bradou o pai, ameaçando-o com o punho cerrado.

- Acalme-se! O senhor já está em idade de ter juízo! Arre!

- Tento na língua! Olha que ainda sou homem para amassar vocês dois numa só pasta!

O filho não fez caso da nova ameaça, deu com ímpeto uma volta à maçaneta da porta e disse ao outro em tom seco:

- O senhor está hoje num dos seus dias, e eu preciso trabalhar, sabe? O melhor é pôr-se ao fresco! Vá dar um giro pela estrada. A lua já nasceu e os caminhos estão secos até à estação...

- Não vou! Ninguém aqui nesta casa tem o direito de mandar-me sair!

- Decerto, mas é melhor que se afaste... No fim de contas sou seu filho e pesa-me ter de faltar-lhe ao respeito para defender minha mãe.

- Chega a tempo esse escrúpulo... Não há que ver!...

- Não puxe palavras! Sinto-me pouco disposto a discutir e tenho muito que fazer!

- Pois não me provocasses! Não te fosses meter onde não eras chamado!

- Não o provoquei, ora esta! Meti-me na sua contenda com minha mãe, para lhe não deixar que batesse nela. Não seria a primeira vez. Sei até onde vai a força do seu gênio!

- Meu gênio! E podes tu falar dele?... Acaso tens tu melhor gênio do que eu?... Não me terás dado porventura as mais belas provas da tua brutalidade e da tua insolência?... Sempre te conheci feroz! Ainda bem pequeno, em um ímpeto de raiva uma vez que no açude te quis constranger a nadar comigo, mordeste-me o braço como um cão! Conservo até hoje no corpo o sinal dos teus dentes! olha!

E, em um só tempo, o homem arregaçou até os bíceps as mangas do braço esquerdo, e estendeu-o ereto e nu defronte dos olhos do filho.

Este abaixou a cabeça com tristeza, sem desfranzir o sobrecenho...

- É exato... disse, saí aos meus... Juro-lhe porém que sempre me arrependo das minhas violências, mal as cometo... E se ainda há pouco não interviesse na sua disputa com minha mãe, o senhor tê-la-ia espancado...

- E o que tinhas a ver com isso? Antes dela ser tua mãe, já era minha mulher! Tu lhe deves respeito, mas eu tenho o direito de ser respeitado por ela!

- Bom! Acabou-se! Vá dar um passeio; vá que isso lhe fará bem...

- Não acabou tal! Quiseste arrematar a contenda, pois agora é aguentar com ela! Se assim não fosse, escusava eu de estar aqui a trocar palavras contigo; já sabes que posso passar perfeitamente sem te ouvir a voz...

- Mas afinal, onde quer o senhor chegar?

- Quero despejar os meus ressentimentos contra tua mãe e contra ti!

O rapaz sacudiu a cabeça com impaciência, e soprou forte todo o ar dos pulmões, cerrando mais as sobrancelhas.

O outro prosseguiu resfolegando a miúdo:

- Ela, aos teus olhos, será tudo quanto quiseres; para mim é e sempre foi um demônio! Uma fúria infernal! Uma serpente venenosa!

- Lembro-lhe de novo que sua mulher é minha mãe...

- Sei, e é por isso justamente que não a conheces. Não podes ver nela a verdadeira criatura que nela existe! Todas as mulheres são, para os seus competentes filhos, uns anjos impecáveis; mas se aquele diabo te dissesse uma só parte do que a mim me repete a cada instante, na febre do rancor e da maldade, terias a cabeça em fogo como a minha me escalda neste momento!

- Basta! Não quero saber disso!

- Hás de saber! Não aceito imposições!

- Peço-lhe então que se cale, ou se retire.

- Pedes-me? Com que direito? Acaso esperas tu que eu atenda aos teus pedidos? Só pedidos de amigos se tomam em consideração e tu nunca foste meu amigo!

- Se nunca fui seu amigo a culpa não é minha. O amor filial é sempre uma consequência do amor dos pais. Não nasce com o filho, é preciso formá-lo. Sei que amo minha mãe...

- Tal mãe, tal filho! Ela declara que me detesta; ele declara que nunca me amou...

- E o senhor?... amou-me algum dia?... No entanto o seu amor de pai devia ter nascido comigo, que sou seu filho. Eu tinha o direito, ao apear-me na vida, de encontrar o seu amor já de pé, à minha espera ao lado dos gemidos de minha mãe parturiente; e foi só o amor materno que me recebeu, e só ele me vigilou o berço. Carícias de pai não me recorda havê-las recebido na idade em que se forma o amor no coração das crianças. Saí dos alugados braços de uma ama para o venal desterro de um internato de segunda ordem, onde bem raras vezes o senhor foi visitar-me. Nesse tempo, confesso-lhe, menos me lembrava das suas feições que das de outros pais que lá iam frequentemente visitar os filhos mais felizes do que eu, nem sei, com franqueza! Até como não cheguei a esquecê-las de todo! Do internato segui logo a trabalhar para um país estranho, onde suas cartas foram tão raras quanto foram as suas visitas ao colégio. Volto à minha terra, entro de novo nesta casa, sou friamente acolhido pelo senhor e, pouco depois, recebo ordem sua para tomar por esposa uma rapariga, que eu mal conhecia; recuso. O senhor insiste. Resisto a pé firme; o senhor opõe-me com empenho uma série de razões pecuniárias, que em nada alteram o meu propósito; e então o senhor ameaça-me, como se eu fora uma criança ou um imbecil, e lança-me à cara todas as brutalidades que lhe vêm à boca; eu pela primeira vez, fico conhecendo o homem que é meu pai: começo a detestá-lo e uma vez por todas, perco-lhe o respeito: insulto-o! Desde esse infeliz momento, toda a indiferença que o senhor tinha por mim transformou-se em ódio, ódio legitimo e mortal. E, de então até hoje, o senhor, apesar dos meus esforços em ser bom filho para minha mãe, não procura disfarçar sequer a profunda aversão que eu lhe inspiro! Não é esta a verdade?

- Sim, é! Eu te odeio, porque o teu proceder para comigo, negando-te a aceitar a esposa, cujo dote vinha salvar tua família da miséria, foi indigno e cruel, em vista da franqueza com que te falei e das súplicas que te fiz!

- Indigno?

- Foi mais: foi degradante, porque foi uma extorsão, foi um roubo!

- Oh!

- Sim, um roubo! Posso prová-lo!

- Não! Não há razões que justifiquem a exigência de tal sacrifício nem há homem de bom senso que se preste a casar pelas conveniências pecuniárias do pai!

- Ah! Eu fui um deles! Como tu, saí do colégio para aprender a ganhar a vida longe de minha terra; ao voltar a esta casa meu pai apontou-me, como te apontei, a mulher com quem devia eu casar. Recalcitrei, como tu recalcitraste; mas o pobre homem trouxe-me para este quarto, que era então o seu gabinete de trabalho, fechou-se comigo e, chorando abriu-me o coração e contou-me a sua vida; disse-me que seu casamento tinha já sido feito em idênticas circunstâncias para salvar meu avô de uma vergonhosa ruína, e pintou-me nua e crua, tal qual como fiz contigo, a sua tristíssima posição. Ele, coitado, tinha aqui em casa uma órfã rica e feia, de quem era tutor, e de cujo dote lançara mão; a maioridade dela estava a bater à porta; ia chegar o momento da prestação de contas e meu pai não tinha com quê. A sua última esperança era o meu casamento com a pupila, essa detestável criatura que foi depois tua mãe. Pois bem! Eu, aliás apaixonado por outra mulher, de quem até hoje nunca mais me esqueci; eu não tive ânimo como tu tiveste, miserável, de abandonar meu pai ao desespero e ao opróbrio que o esperavam e sacrifiquei-me por ele. Era o meu dever de filho - cumpri-o. Meu filho, por sua vez, não fez o mesmo a meu favor - lesou-me! É um ladrão!

- Cale-se, por amor de Deus! – exclamou o rapaz, sentindo que a cólera, dentro dele a custo reprimida, ameaçava rebentar.

- Não me calarei! Hás de me ouvir!

- Oh! Cale-se! Cale-se! Não me queira fazer mais desgraçado do que sou! Cale-se, ou não responderei por mim!

- Ameaças-me?! – bramiu o pai. – Não te tenho medo!

O rapaz cerrou os punhos, rilhando os dentes. Tremiam-lhe os músculos da face, tal era o esforço que fazia para conter-se.

E os dois olharam-se, em mudo e ofegante desafio. Pai e filho mediram-se com o mesmo ódio, com a mesma irascibilidade hereditária, com a mesma loucura consanguínea.

Uma palavra mais só uma palavra, bastaria para os lançar um contra o outro.

Mas a porta da sala abriu-se de roldão, e a mãe acudiu, correndo para o filho, a cujo pescoço se agarrou com ímpeto.

- Meu filho, não lhe batas! Não lhe batas. – implorou a mísera.

- Não lhe tocarei! Obrigado, minha mãe Ele, porém, que saia já da minha presença! Não o posso ver!

- Lembra-te de que ele é teu pai ...

- Seu pai, nunca! – vociferou o outro. – Não é possível que este monstro seja meu filho!

E, espumando de raiva, dirigiu-se à mulher, com o punho fechado e o braço estendido, quase a tocar-lhe no rosto:

- Esse bandido é teu sangue, é só teu sangue! Semelhante traficante nunca poderia ter procedido de mim! Concebeste-o de qualquer cigano ou de qualquer vaqueiro errante!

- Ah! – gemeu a mulher em um grito de dor e de revolta, levando ao coração ambas as mãos como se o tiveram apunhalado.

- Rua! - berrou o pai. – Sai já daqui de minha casa! Rua, miserável!

E atirou-se sobre o filho, para o lançar fora.

Ouviu-se então um bramido de fera assanhada. O rapaz, com um movimento rápido, empolgara-o pela cintura, gritando-lhe feroz:

- Tu é que sairás, infame! Vou despenhar-te pela escada!

E travou-se a luta, irracional e bárbara. Pai e filho eram ambos possantes e destemidos. O rapaz cingia o outro pelos rins e, aos arrancos, procurava arrojá-lo para o corredor. Mas o adversário resistia, e os dois estreitaram-se com mais gana, feitos em um só, em uma só mole ofegante e furiosa, que rodava aos trancos pela casa, levando aos trambolhões o que topava, despedaçando móveis e vidraças, esfregando-se pelas paredes, a rodar sempre fundidos em um infernal abraço de ódio, filho de ódio, de ódio do mesmo sangue.

Afinal fraquejou o mais velho, caindo de joelhos. E o outro, de pé, começou a arrastá-lo penosamente para o lado da escada.

- Hás de sair! Hás de sair!

O arrastado forcejava para resistir ainda, escorando-se no chão com os pés, com as pernas e com os cotovelos; mas, polegada a polegada, ia cedendo. Arfavam como dois touros.

- Larga-me! Larga-me!

- Hás de sair! Hás de sair!

E aproximavam-se do patamar. Já parte do caminho estava vencida. Não tardaria o primeiro degrau. O mais velho, porém, a certa altura do corredor, fez um supremo esforço para erguer a cabeça e, pondo as mãos, suplicou de joelhos, quase sem fôlego:

- Para aqui por amor de Deus ! Não me leves mais adiante!... Foi até aqui, neste lugar justamente, que eu, nestas mesmas condições, uma noite como esta... arrastei teu avô como me estás arrastando agora!... Não me leves além do que eu o levei!... Não seria justo!... Vingaste-o!... Estamos quites!

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) Clichê e escrita criativa

Clichê é uma construção utilizada à exaustão em determinada cultura, como o desenho do coração ou do cupido. Exatamente por essa repetição, ela é uma construção desgastada, descartável.

Quando se fala de textos criativos, devemos fugir do clichê como se foge de uma praga, pois é a antítese da criatividade; quanto mais um texto for repleto de clichês, menos impactante ele será. E o clichê é mesmo como uma praga que está em nossas frases (“Abriu com chave de ouro”), em nossas metáforas (“coração partido”), em nossas cenas, em nossos personagens, em nosso desfecho.

O problema do clichê é que ele não acrescenta ao leitor. Basta lembrarmos de uma novela da Globo, uma dessas quaisquer, repleta de clichês. Ela pode até nos distrair por algumas horas, mas a esquecemos quase completamente tão logo desligamos a TV (e aquelas que permanecem em nossa memória, como Irmãos Coragem, Pecado Capital, Vale Tudo, é porque souberam inovar e não ficaram apenas repetindo-se em clichês).

Claro que o conceito de clichê varia de acordo com o público para o qual se escreve, pois a experiência de leitura é fundamental para determinar onde começa o clichê. Lembro que nas minhas primeiras oficinas literárias eu ficava muito ansioso com esse conceito, pois tudo o que eu escrevia parecia clichê. Só com o tempo fui perceber que minha experiência de leitura era infinitamente menor que a do professor, então meu primeiro passo foi buscar ler mais e prestar mais a atenção nas minhas leituras.

Também é importante perceber que o clichê por vezes tem sua utilidade, ainda mais se bem dosado. Os textos de entretenimento, por exemplo, se valem muito do clichê, facilitando a compreensão e o acompanhamento pelo leitor.

O clichê também pode ser útil para a comédia, em que situações corriqueiras podem ser levadas ao extremo e provocar riso. Este uso, porém, deve ser intencional e consciente, pois o escritor assumirá também os riscos inerentes ao clichê.

Confira os seis tipos de clichês mais comuns da literatura:

1) Clichê na estrutura narrativa


Nada pior do que uma história que mal começa e nós sabemos como vai terminar. É aquela história de que o mordomo sempre é o culpado ou de que a mocinha pobre sempre vai acabar ficando com o galã rico e solitário na novela das seis.

Quando se escreve com o objetivo de emocionar o leitor, surpreendê-lo, é muito importante fugir dos clichês narrativos, já tão desgastados pelo uso. E tenha cuidado redobrado com o final clichê: dá vontade de chorar quando um ótimo conto de suspense no final o narrador revela que tudo aquilo não passava de um sonho…

2) Clichê no início do texto


Começar um texto é extremamente difícil, e talvez por isso haja alguns começos repetidos à exaustão. O personagem acordar é um dos maiores clichês, especialmente se for cedo e ele for acordado por um despertador. Outro clichê é começar pelo clima: "era uma noite escura e fria"... Lembre-se: o leitor começa a ler seu texto porque você o divulgou bem e tem um bom título, mas ele não continua a ler se o começo for ruim.

3) Metáforas e construções clichês


Aqui estão os clichês mais engraçados e repetidos. "Coração partido", por exemplo. A metáfora até é bonita e razoavelmente precisa, mas de tanto ser usada tornou-se um belo exemplo de clichê. Assim também expressões como "chorou copiosamente", "azul da cor do mar", "linda de morrer"...

4) Cenas clichês

Há algumas cenas que já se tornaram clichês nas narrativas contemporâneas. A maior delas é fumar depois do sexo. Ou o personagem chorar (embora o choro seja importante, não precisa ter alguém chorando em todas as histórias do mundo!). Outra cena que se repete muito é o personagem olhar para alguma fotografia e lembrar de algo. Ou o personagem ir até a janela. Parece que quando o autor não sabe o que fazer com o personagem, leva-o para a janela…

Claro que é nossa experiência de leitura que irá determinar o que soa mais ou menos clichê para nós. Procure, porém, evitar o óbvio, especialmente o péssimo hábito que hoje muitos autores têm de repetir fórmulas consagradas no cinema blockbuster ou nas novelas de televisão.

5) Clichês nos diálogos

O diálogo precisa ser suficiente e necessário para se justificar, então nada de diálogos do tipo "Oi", "Oi", "Tudo bem?", "Tudo", "Calor hoje, né?", "É". O narrador só deve abrir espaço para as personagens quando a fala delas for essencial. A não ser, é claro, que esses clichês ditos pelas personagens sejam importantes para a narrativa, demonstrem, por exemplo, a insegurança dos dois.

6) Clichês na pontuação

Há dois sinais que são muito importantes, mas não devem ser usados com exagero sob pena de descambarem para o clichê. Trata-se da exclamação e das reticências. A rigor, quase todas as frases em literatura têm algo além do que está escrito, então não precisa terminar todas as frases com três pontinhos! Quanto à exclamação, que acabei de usar, guarde-o para momentos em que a personagem realmente esteja dando ênfase, e não a cada frase afirmativa, pois isso faz com que perca a força quando utilizado.
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trecho do livro Escrita Criativa para Iniciantes, de Marcelo Spalding
Escrita Criativa para iniciantes é um livro para autores e leitores, amantes de literatura, cinema, quadrinhos, teatro. Com capítulos sobre qualidades e defeitos do texto criativo, figuras de linguagem, narrativa e universo ficcional, tempo e espaço, personagens, diálogos e construção de cenas, é um livro didático e completo para aqueles que são ou se sentem como iniciantes.

Capítulos extras:
• Dicas para publicar um livro
• Literatura Digital
• Escrita Criativa na sala de aula

quarta-feira, 30 de março de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 21

 

Nilto Maciel (Obituário)

Quando o primeiro caderno se completou, Cleto desistiu do segundo. Não ia mais anotar os nomes dos falecidos e as respectivas datas de morte. Tudo começou quando o pai morreu. Comprou um caderno grande e deu-lhe o título de “Falecidos”. Quase todo dia anotava um nome: parente, amigo, conhecido, político, ator, cantor, escritor, jogador de futebol. Se lia ou ouvia notícia de falecimento, corria ao caderno e anotava: fulano de tal e a data.

De vez em quando passava algumas horas a rememorar os seus mortos. Mulher, quem era Anacoluto dos Anzóis Pereira? Ana se irritava com a mania de Cleto: – Sei lá, homem.

Deve ser algum gramático sem pé nem cabeça. Outras vezes se lembrava de algum parente esquecido ou pessoa famosa. Já teria morrido? Consultava o caderno e não encontrava o nome.

Mulher, Maria ainda está viva? Ana só faltava chorar: – De que Maria falava o marido?

– Mulher, por onde anda aquela cantora carioca que regravou uma música de Noel Rosa? – não lembrava o nome e por pouco não ficava doido de tanto escavar a memória dele e de Ana.
         
Decidiu: não ia mais anotar os nomes dos mortos. Comprou outro caderno e deu-lhe o título “A falecerem”. Passou um dia a copiar nomes de parentes, amigos e pessoas famosas.

– Mulher, como se chama aquela sua prima que se casou com o Jorge caminhoneiro? Ana, quem é o presidente dos Estados Unidos?

– Não esqueça de escrever o seu nome, Cleto. Não escreveu, irritado, jogou o caderno na gaveta e se pôs a ler o jornal: “Previsão do tempo: Amanhã chove em todo o litoral”.

Não choveu, mas Ana concluiu o primeiro caderno com o nome do marido.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Baú de Trovas XLV


Não entrego os sonhos meus
às montanhas da incerteza,
eu seguro a mão de Deus
e as escalo com firmeza.
ADELIR MACHADO
São Gonçao/RJ, 1928 - 2003, Niterói/RJ

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Minha paixão era tanta,
tamanho era o meu respeito,
que eu te elegi como santa
no altar sagrado do peito!
ANTONIO COLAVITE FILHO
Santos – SP

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Partiste. Em meu amargor,
vem a Tristeza e ressalta:
só se entende o que é o amor
no instante em que ele nos falta!
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

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Insiste um pranto tristonho
sobre o meu rosto em rolar...
Deve ser por algum sonho
que eu me esqueci de chorar!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora – MG

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Filho, a montanha da vida,
escala devagarinho,
que há muita flor escondida
entre as pedras do caminho!
CAROLINA RAMOS
Santos – SP

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Sem avistar horizontes,
no vale do meu desgosto,
meus olhos são duas fontes,
regando o chão do meu rosto.
DIVENEI BOSELI
São Paulo – SP

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O pranto que ninguém viu
e em mim só ficou guardado,
foi o que mais me feriu
por não ter sido chorado…
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo – Portugal

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Esta gota de umidade
sobre a rosa, no arrebol,
é a lágrima da saudade
que a lua enviou ao sol!
DOMITILLA BORGES BELTRAME
São Paulo – SP

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Manhã... O sol vem nascendo...
E na montanha orvalhada,
vejo os seus raios varrendo
os restos da madrugada!...
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Nova Friburgo – RJ

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Velha ponte do caminho
nossa história é parecida:
- Suportamos de mansinho
tantas pisadas na vida!
ERCY M. MARQUES DE FARIA
Bauru – SP

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Rei dos astros, lá no espaço,
o sol ocupa seu trono,
abre o tempo, joga o laço,
mostra que o dia tem dono.
FLÁVIO R. STEFANI
Porto Alegre – RS

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Com o cimo da montanha,
muita gente é parecida:
quanto mais altura ganha,
mais se isola nesta vida.
ILDEFONSO DE PAULA
Amparo – SP

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A minha Mãe natureza.
que nada deixa faltar,
me faz saber, com certeza
que vale a pena sonhar...
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul – RS

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À fonte expus minha dor
e ela me disse, a chorar:
- A tua sede é de amor
e essa eu não posso matar!...
JOSÉ MARIA M. DE ARAÚJO
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ    

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Rosto belo ganha palmas,
mas reflitam neste fato:
nunca a beleza das almas
apareceu em retrato!
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora – MG

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No relento, ao abandono,
dorme o menino de rua,
tendo por guarda do sono
os olhos tristes da lua...
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba – SP

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Meu semblante tão marcado
não condiz com a minha idade;
foi o meu pranto calado
que o envelheceu... de saudade!
MARIA LÚCIA DALOCE
Bandeirantes – PR

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Para dar vida ao riacho,
a fonte, espelho da mata,
quebra-se e cai, serra abaixo,
desfeita em cacos de prata.
ORLANDO BRITO
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

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Manhã de sol!  E na praça,
as lindas flores singelas
se curvam, cheias de graça,
quando tu passas por ela!
P. DE PETRUS
São Paulo/SP, 1920-1999
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Quanta beleza irradia
um sorriso verdadeiro
onde, com luz e magia,
os olhos riem primeiro!
RENATA PACCOLA
São Paulo - SP

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Na aurora, à luz do arrebol,
quando o céu mais cores ganha,
Deus ergue a hóstia do Sol
por sobre o altar da montanha!
SÉRGIO BERNARDO
Nova Friburgo – RJ
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Se a esperança não me falta
nos meus momentos da vida,
subo à montanha mais alta
sem lhe sentir a subida...
SILVINA ANTUNES LEAL
Santos – SP

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Sagrado pano que agito
entre aplausos e protestos,
a Verdade é mais um grito
que ensurdece os desonestos.
THALMA TAVARES
São Simão – SP

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Erra, quem passa e proclama:
"Eis um antro do pecado"!
Pode o amor, em meio à lama,
nascer mais puro e sagrado.
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo - SP

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Esta lágrima que insiste
e me aniquila a vontade
parece uma fonte triste
molhando a minha saudade...
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba – PR

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Feliz, a minha alma anota
esta imagem que desfio,
provém de pujante grota:
a Trova - um eterno rio.
WAGNER MARQUES LOPES
Pedro Leopoldo – MG

Ernani Buchmann (A Morte de Tia Matilde)

O telefone toca de madrugada, dou um alô sonolento. Ouço a voz desconhecida a ordenar:

— Olha, Tia Matilde morreu agora há pouco. Vai ser velada aqui em casa, o enterro é às cinco, no Santa Cândida. Avisa teu pessoal.

Desligou. Já tomado pela impossibilidade de voltar a dormir, tento fazer funcionar a memória. Quem seria o dono da voz? Alguém autoritário, sem dúvida. Um militar. Seria um dos tios de meu pai, o coronel? Não, o linguajar não denotava alguém que tivesse passado pela academia militar. Faltava polimento no manejar do vernáculo. Havia erros de concordância, de tempo verbal. Não, não seria o tio coronel.

Imaginei um dos filhos da Tia Matilde, o Nenê. Tinha sido dono de autoescola, quem sabe o estilo mandão não passasse de deformação profissional. Comandar alunos e instrutores deve ser tarefa a exigir pulso, firmeza no tratar.

A voz é que não combinava. Primo Nenê sempre primou pela polidez no trato, jamais deixou de perguntar pela saúde de papai e mamãe. Também não seria.

Aquele cunhado, talvez. O caçador de onças, das quais jamais alguém havia visto os respectivos couros, mas que existiam nas histórias do homem. Não fosse pela inexistência do sotaque gauchesco-italiano, típico da região sudoeste do Paraná, bem poderia ser. Mas não tendo eu ouvido nenhum bah!, nenhum tchê, descartei o mentiroso.

E na impossibilidade de sabê-lo, pus-me a analisar a tarefa a que a voz me impunha: avisa teu pessoal. Supus ser meu dever chamar a família, exigir que se compusesse a mesa, decretando, afinal:

— Tia Matilde morreu.

A forma talvez devesse ser suavizada, eu poderia anunciar ter o gato subido ao telhado:

— Tia Matilde não tem passado bem. Coisas da idade, como sabem.

Restaria convocar os parentes, os tais da cota particular, o meu pessoal. Mamãe, os filhos, a namorada do mais velho, os primos do lado paterno. Mas considerando a solenidade em torno da mesa de jantar exigir preparação, melhor não perdermos tempo.

Instalei-me ao telefone, já com o dia nascendo:

— Mãe? Olha, Tia Matilde morreu.

Houve silêncio constrangedor do outro lado.

— Ouviu, mãe?

— Que Tia Matilde, meu filho?

— A tia do pai, claro.

— Ela chamava-se Martina, não Matilde. Faleceu há três anos.

Despedi-me, envergonhado. E agora, o que dizer à voz? Preciso encontrar boa desculpa para o caso dela ligar esta madrugada, reclamando da ausência do meu pessoal. Estou analisando a possibilidade de não atender ao telefone. Ou atender com voz de falsete, alegando ser o mordomo, pronto a oferecer minhas razões, ainda que pouco verossímeis: súbita dor de barriga, viagem de urgência para o interior, síndrome de urticária em velórios.

A verdade é que seria menos difícil se a família tivesse uma Tia Matilde, ora se NÃO.
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Ernani Buchmann nasceu em Joinville, em 1948 e mudou com a família para Recife e Rio de Janeiro até estabelecer-se em Curitiba. Iniciou os estudos em advocacia na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e formou-se na Universidade Federal do Paraná. No Rio de Janeiro, iniciou a carreira de publicitário e em Curitiba, a de jornalista, trabalhando como repórter da Rádio Clube Paranaense, assim como cronista de jornais e revistas nas empresas Correio de Notícias, Folha de Londrina, Panorama, Quem, Atenção, Paraná & Cia., Ideias e Gazeta do Povo. Também atuou como produtor e comentarista em emissoras de rádio e TV, principalmente em programas esportivos.

Na vida pública, exerceu cargos na Fundação Cultural de Curitiba, na Fundação Teatro Guaíra e no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, além de vice-presidente da Associação Comercial do Paraná e membro do Instituto dos Advogados do Paraná, entre outras instituições. Foi presidente do Paraná Clube no biênio 1996/98.

Foi professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de outras instituições de ensino e co-roteirista do longa-metragem Heróis da Liberdade, filme baseado em seu livro homônimo, e roteirista dos filmes "Sumiços Delirantes" e "Sobre Touros e Homens".

Em colaboração com Túlio Vargas e Valério Hoerner Júnior, foi responsável pela edição do volume biográfico dos membros da Academia Paranaense de Letras. Seus textos literários foram publicados em revistas como O Pasquim, "Raposa", "Nicolau", "Rascunho", "Cornélio" e no "Jornal de Humor" e Diário do Paraná, entre outros.

Em 2005 foi eleito para Academia Paranaense de Letras.

Autor dos seguintes livros:
Cidades e Chuteiras (1987), O Livro do Truco (1996), Heróis da Liberdade (1999), Quando o Futebol Andava de Trem (2002), Onde me Doem os Ossos (2003), O Ponta Perna de Pau (2005), A Camisa de Ouro (2006), O Caçador de Moscas (2007), O Bogart Curitibano (2008).

Fontes:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.
Wikipedia

terça-feira, 29 de março de 2022

Versejando 106

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 50


Gosto da palavra, da vírgula, do ponto, da exclamação, do ponto e vírgula, dos dois pontos, do travessão, das aspas, da interrogação, dos parênteses, gosto das reticências.

São entes peregrinos que fazem o nosso dia a dia em tantas circunstâncias, boas ou más, leves ou fortes, alegres ou tristes.

Tantas variáveis, cada um exercendo seu papel de modulador, de regulador, mostrando quando devemos parar, quando podemos pensar e escrever em continuidade . . .

Fazendo parte das convenções da escrita, a pontuação é recurso que usamos para a entonação, a pausa, a explicação, para mais clareza e coerência dos textos, evitando dúvidas e ambiguidades, facilitando as leituras e compreensão dos escritos.

Gosto deste universo. Somos seres com muito convívio, estreiteza, familiaridade.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Otto Lara Rezende (Vestibular do pai)


Entrou ventando fúria por todos os poros. Calma, por favor. Sente-se, tome um copo d’água e respire fundo. Tinha ido deixar os meninos lá onde Judas perdeu as botas. Os dois, o rapaz e a moça. Endereços diferentes. Complicam tudo neste país. Num curral, o rebanho das exatas. No outro, o das humanas. Ou sabe lá como se chamam agora. Dois vestibulandos. Depois que inventaram esse teste vocacional, ninguém sabe mais o que quer.

O que quer ser quando crescer. Só que já cresceram, os madraços. Ele está atrasado de pelo menos dois anos. Ela, de um e tanto. Você sabe (sim, eu sei) quanto se empenha na educação desses meninos. Podia ter mandado de táxi, ou chamado o chofer. Depois de uma semana dura, fez questão de se encarregar de tudo. Acordou antes do sol. Supervisionou o desjejum. Só faltou estudar linha por linha, algarismo por algarismo. Uma barbada.

E assim chegou ao primeiro ponto. Esse vestibular é uma vergonha. No meu tempo, nem exame de admissão ao ginásio era tão fácil. E a gente fazia antes dos 11 anos de idade. Olhe aqui as perguntas de história do Brasil. Cinco opções. O mais rematado cretino, cego, surdo, mudo e já defunto, acerta na mosca. Veja o que chamam de matemática. O caixeiro da padaria é um Einstein, sem essa maquininha de esvaziar cabeça. Pois bem. Os dois se viram no maior aperto.

Foi um custo conter na poltrona o pai furibundo. Jurei que o filho não é nenhum débil mental. Vai ver que passa. E acaba um bom administrador de empresa. Aí toca o negócio da família. Então por que o cretino cismou de ser músico? Se ao menos tivesse talento! A menina é uma tonta. Ainda bem que saiu de moda a tal de psicologia. Olhar vago, fala em informática. E toda sua filosofia consiste na obsessão da dieta. Sabe o que queria fazer? Adiar a prova por causa do horóscopo. Do horóscopo!

Mais calmo, aceitou o drink e me perguntou pelo verbo “haver” na forma impessoal. Ainda ontem, ouvi um deputado dizer que “houveram” várias versões. Hoje ouvi por duas vezes “a” moral da equipe. Controle remoto na mão, clique, e na tela a bruta crase ? de sexta “à” domingo. Assim vai o mundo, meu caro. Eu sou uma besta diante de um computador. Mas ele não se conforma. Esqueceram o esforço pessoal, brada. Ninguém se aplica. A propósito, onde foi o vestibular do Machado de Assis?

Fonte:
Jornal Folha de São Paulo. São Paulo: 25 nov. 1992.

Mário Quintana em Prosa e Verso – 20 –


OLHO AS MINHAS MÃOS


Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras!
Só apanho, porém, com elas, esse alimento
impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai
secretando o pensamento
como tecem as teias as aranhas.

A que mundo pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...

Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar…

Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação! Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos?
Quem faz - em mim - esta interrogação?
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O VELHO DO ESPELHO

Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...

Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai - que já morreu!

Como pode ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
"o que fizeste de mim?!"
Eu, Pai ?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga...
Que importa? Eu sou, ainda.
Aquele mesmo menino teimoso de sempre

E os teus planos enfim lá se foram por terra
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra! -
Vi sorrir, nesses cansados olhos,
um orgulho triste…
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POEMA

O grilo procura
no escuro
o mais puro diamante perdido.

O grilo
com as suas frágeis britadeiras de vidro
perfura as implacáveis solidões noturnas.

E se o que tanto buscas só existe
em tua límpida loucura
- que importa? -
isso
exatamente isso
é o teu diamante mais puro!
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POEMA OLHANDO UM MURO

Do escuro do meu quarto
imóvel como um felino, espio
a lagartixa imóvel sobre o muro: mal sabe ela
da sua presença ornamental, daquele
verde
intenso
na lividez mortal
da pedra. Ah, nem sei eu também o
que procuro, há tanto...
nesta minha eterna espreita!
Pertenço acaso à raça dos mutantes?
Ou sou, talvez
- em meio às espantosas aparências
de algum mundo estranho
um espião que houvesse esquecido o
seu código, a sua sigla, tudo...
menos a gravidade da sua missão!
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PRESENÇA
Para Lara de Lemos

É preciso que a saudade desenhe tuas
linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas,
levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...

É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...

Mas é preciso, também, que seja
como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.

É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto - em mim - a presença
misteriosa da vida...

Mas quando surges és tão outra e
múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!

Fonte:
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Globo & Instituto Estadual do Livro, 1976.