sábado, 8 de setembro de 2012

Clevane Pessoa (O Anjo, a Rosa, o Beija-flor)

                       Um dia, a rosa mais olorosa do jardim, sempre cuidada por um pequeno ser de luz- amante de sua beleza inefável, mãos pacientes e cuidadosas, a afofar e regar a Terra, arrancar ervas daninhas e afastar as formigas, mesmo sujando-as ou ferindo os dedinhos leves-recebeu a visita fremente de um beija-flor. Este, tão pequeno quanto o outro, mas dono das asas que ele não possuía e um bico que podia extrair o nectar precioso, encantou a pequena rosa orvalhada...

                      O anjinho luminoso, observando toda a perfeição daquilo, o encantamento do beija-flor batendo as asas centenas de vezes a equilibrar-se no ar, a cumprir um ciclo vital, um equilíbrio necessário na Natureza, resolveu ir embora, para não sofrer mais... Para sempre. Doía-lhe muito porque outro cuidava de sua flor, agora. Mas apenas quem ama verdadeiramente é realmente capaz de renunciar... Afastou-se de vez,-e então, abriu-se nele um par de asas luminosas, por ele desconhecidas, mas presentes desde que nascera para amar- e foi então que, travestido em um colibri de arco-íris nas asinhas vibráteis, ele pôde reaproximar-se da rosa que o reconheceu, no momento exato em que ela fenecia, pois tinha a vida efêmera, arrependida de não ter conseguido reconhecer a tempo toda a dedicação de quem cuidara de si desde que abrira as pétalas pela primeira vez...Agora era muito tarde...O que precisa ser feito em amor, não deve ser adiado, nunca...É preciso ser ousado para viver plenamente o momento amoroso...E então, a flor se foi...

                     O anjinho beija-flor,porém, por representar Eros, tinha o dom da eternidade e foi assim que ele descobriu outras rosas, outras flores e seguiu através dos séculos a cultuar o AMOR...

Fonte:
Clevane Pessoa de Araújo Lopes/Brasil,no e-book "Pequenas Histórias em Atos"-Ensaio Poético da AVBL,organizado por Maria Inês Simões

Carlos Drummond de Andrade (Resíduo)

 De tudo ficou um pouco
 Do meu medo. Do teu asco.
 Dos gritos gagos. Da rosa
 ficou um pouco

 Ficou um pouco de luz
 captada no chapéu.
 Nos olhos do rufião
 de ternura ficou um pouco
 (muito pouco).

 Pouco ficou deste pó
 de que teu branco sapato
 se cobriu. Ficaram poucas
 roupas, poucos véus rotos
 pouco, pouco, muito pouco.

 Mas de tudo fica um pouco.
 Da ponte bombardeada,
 de duas folhas de grama,
 do maço
 - vazio - de cigarros, ficou um pouco.

 Pois de tudo fica um pouco.
 Fica um pouco de teu queixo
 no queixo de tua filha.
 De teu áspero silêncio
 um pouco ficou, um pouco
 nos muros zangados,
 nas folhas, mudas, que sobem.

 Ficou um pouco de tudo
 no pires de porcelana,
 dragão partido, flor branca,
 ficou um pouco
 de ruga na vossa testa,
 retrato.

 Se de tudo fica um pouco,
 mas por que não ficaria
 um pouco de mim? no trem
 que leva ao norte, no barco,
 nos anúncios de jornal,
 um pouco de mim em Londres,
 um pouco de mim algures?
 na consoante?
 no poço?

 Um pouco fica oscilando
 na embocadura dos rios
 e os peixes não o evitam,
 um pouco: não está nos livros.

 De tudo fica um pouco.
 Não muito: de uma torneira
 pinga esta gota absurda,
 meio sal e meio álcool,
 salta esta perna de rã,
 este vidro de relógio
 partido em mil esperanças,
 este pescoço de cisne,
 este segredo infantil...
 De tudo ficou um pouco:
 de mim; de ti; de Abelardo.
 Cabelo na minha manga,
 de tudo ficou um pouco;
 vento nas orelhas minhas,
 simplório arroto, gemido
 de víscera inconformada,
 e minúsculos artefatos:
 campânula, alvéolo, cápsula
 de revólver... de aspirina.
 De tudo ficou um pouco.

 E de tudo fica um pouco.
 Oh abre os vidros de loção
 e abafa
 o insuportável mau cheiro da memória.

 Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
 e sob as ondas ritmadas
 e sob as nuvens e os ventos
 e sob as pontes e sob os túneis
 e sob as labaredas e sob o sarcasmo
 e sob a gosma e sob o vômito
 e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
 e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
 e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
 e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
 e sob os gonzos da família e da classe,
 fica sempre um pouco de tudo.
 Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo, em Nova Reunião vol.1

Wagner Marques Lopes/MG (As Multifaces da Saudade)

Sol poente, tela de Tarsila do Amaral
A saudade é tão ladina
que se retrata a valer:
em mil imagens me ensina
a recordar o viver.

Seja de andrajos vestida
ou trajada de princesa,
saudade é sempre garrida,
um encanto, uma surpresa!...

A saudade pequenina
tem certo preciosismo:
é casinha na colina –
lá morar o quanto cismo.

A saudade é, em verdade,
ação do mar, por que não?
Rolam seixos de saudade
nas praias do coração.

Moroso... De quando em quando,
ele passa... Mal avança...
Saudade – um trem transportando
todo o peso da lembrança.

Minha família seguia
buscando terras além...
A saudade, hoje em dia,
é viajora de trem.

Contadora de meus casos
dos bons tempos que vivi!...
Saudade não marca prazos
para me ver por aqui.

Saudade é clarão, lampejo
de um paraíso distante –
quem dera eu tivesse o ensejo
de vivê-lo, a todo instante.

Fim de tarde... Um sol mortiço
a cair lá no poente...
Saudade – não mais que isso –
tênue luz dentro da gente.

Trovadores e poetas
são seus admiradores:
a saudade – atriz completa,
em seus papéis vencedores.

Ao escrever estes versos,
uma tristeza me invade:
com retratos tão diversos,
eu começo a ter saudade...

Fonte:
O Autor

Cecília Meireles (Inscrição)

 Sou entre flor e nuvem,
 estrela e mar.
 Por que havemos de ser unicamente humanos,
 limitados em chorar?
 Não encontro caminhos
 fáceis de andar
 Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
 que não sabem de água e de ar
 E por isso levito.
 É bom deixar
 um pouco de ternura e encanto indiferente
 de herança,em cada lugar.
 Rastro de flor e estrela,
 nuvem e mar.
 Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:
 a sombra é que vai devagar.

P. Preto (As Lembranças dos Velhos Carnavais)

Carnaval de Rua, em 1954, na Cinelândia
Este espaço despretensioso das quintas-feiras é lido, aqui em Jahu, entre outros, pelo ilustre mestre Sebastião Antonio da Silva Neto, o conhecido Professor Sebá, profundo conhecedor da língua portuguesa. Em São Paulo, pelo Otacílio Gomes, filho do autor da bem elaborada letra do hino “Asas do Jahu”. Também na capital, meus textos são lidos pelo maestro Julio Medaglia, uma autoridade em música clássica, sob cuja batuta estiveram grandes orquestras, inclusive a Sinfônica do Estado de São Paulo.

O carnaval – ou o que resta dele – está aí, batendo em nossas portas, anunciando o seu fim quase melancólico, pelo menos em muitas cidades que não o exploram como atração turística. Aqui ele já foi bem cultivado. Aos poucos – como em outras localidades – foi se apagando. Os bailes rarearam em razão da falta de público, o afastamento progressivo das famílias, custo das bandas e orquestras, que, com os anos, deixaram de existir, além de outros detalhes que influíram nas decisões dos diretores de clubes. Sinal dos tempos e mudanças de costumes trazidos pela modernidade.

Só os mais velhos conseguem lembrar-se dos antigos “corsos”, ou seja, aqueles desfiles de carros pelas ruas centrais, que aconteceram entre as décadas de 40 e 60, com pessoas nas carroçarias de caminhotes, caminhões ou até sentadas nos para lamas, distribuindo confetes, serpentinas, além das trocas de jatos dos lança-perfumes. Claro, tudo isso apenas para os poucos possuidores de veículos. Nós, os moleques do início dos anos 50, moradores da rua Humaitá, pegávamos carona na Chevrolet verde da família Santana Galvão e fazíamos a festa. O povo permanecia em pé, nas calçadas, parecendo divertir-se com tudo aquilo. Não existiam exageros. Tá bem, de vez em quando algum adulto saia da linha. Mas, afinal de contas, era carnaval. E as histórias rapidamente corriam a cidade. Aos poucos, tudo foi acabando. E nem poderia ser diferente. Depois, era só ir confessar com o Padre Serra e receber as cinzas na quarta-feira e tudo voltava à normalidade.

Os quatro bailes noturnos eram assunto desde o início do ano. Esperados por muitos, evidentemente, pelas oportunidades que ofereciam, começando pelas fantasias de havaianas, que possibilitavam visões paradisíacas. Tomemos um exemplo, já em pleno 1968, com os ventos da modernidade varrendo os tradicionalismos para baixo do tapete. O Aeroclube prometia “Uma Noite no Inferno”, com cadência da Orquestra Continental que, dividida em duas, também seria a responsável pela animação no Grêmio Paulista, com a sua “Noite das Brasas”. O Caiçara Clube também abria seus amplos salões, contando com os tradicionais acordes da Orquestra Capelozza. Era uma espécie de canto do cisne do carnaval nos clubes. Eles ainda permaneceriam por quase duas décadas, alegrando os foliões. O que aconteceu? Isso talvez não importe agora. Os jovens de hoje tem outras visões e opiniões. Talvez aqueles repertórios tradicionais de marchinhas e sambas não lhes digam nada.

Em 1974, Momo ainda mantinha seu reinado. O carnaval de rua havia se tornado grandioso, com as disputas entre as escolas de samba Faixa Branca, Ponte Preta e Acadêmicos do Samba, além dos carros alegóricos bolados por um gênio chamado Francisco Canhos. Maria Claudete Tiete, candidata do Grêmio Paulista conquistava o título de rainha, enquanto o clube promovia uma noite especial, com a presença do cantor Djalma Pires, além da cadência do conjunto Original Som, trazido da cidade de São José do Rio Preto. No Aeroclube, o pessoal da Capelozza mantinha um ritmo imbatível, aquele que a tornou inesquecível para várias gerações. A Sociedade Recreativa José do Patrocínio, instalada bem ao lado da Praça Siqueira Campos, onde hoje funciona uma loja, contava com a arte do jauense Nadinho, uma autoridade em música e que, com sua partida, deixou uma eterna saudade.

Em breve Momo reinará. Lá do fundo dos corações virão “as lembranças dos velhos carnavais...”

Fonte:
União Brasileira de Escritores
http://www.ube.org.br/espaco-do-autor-detalhe.asp?ID=1249

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 662)


Uma Trova de Ademar 
A bebida é uma desgraça,
nem mesmo o céu me socorre;
pois quando eu bebo cachaça
meu santo fica de porre.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Montei pensão com mobília
e preguei anúncio ao muro:
(Para Moças de Família!)
Quase quebrei; eu te juro!
–Nemésio Prata/CE–

Uma Trova Potiguar 


Bateu na porta da frente
e correu para a de trás.
Desta forma inteligente,
pegou dez “sócios” ou mais!
–Francisco Macedo/RN–

Uma Trova Premiada 


1994  -  Bandeirantes/PR
Tema  -  DOUTOR  -  M/H.


Quando a sogra sente dor,
o genro, bem “solidário”,
nunca lhe traz o doutor,
traz sempre o veterinário!
–Neide Rocha Portugal/PR–

...E Suas Trovas Ficaram 


Casa em março Ester Macedo (É minha Prima...Risossss)
e em julho é mãe... Ora, o alarde!
O filho não veio cedo,
o esposo é que veio tarde...
–Belmiro Braga/MG–

U m a P o e s i a 


Se o pobre bebe cachaça
Cospe no pé do balcão,
Vai atrás de confusão
Malquerença e arruaça;
Bicado mija na praça
Faz aquela choradeira,
Vomita a comida inteira
E a sua mulher protesta:
Quem tem dinheiro faz festa,
Quem não tem, só faz besteira!...
–Hélio Crisanto/RN–

Soneto do Dia 

CEGO DE AMOR.
–Edmar Japiassú Maia/RJ–


Um olho é vesgo e o outro esbugalhado.
O nariz mais parece um pimentão.
Uma verruga solitária, ao lado,
enfeita a grande boca de alçapão!

A gengiva, num tom arroxeado,
exibe, com orgulho um só dentão.
No buraco do ouvido, mal lavado,
em se plantando nasce até feijão!

O volumoso colo bem moreno,
carrega um seio enorme e outro pequeno,
fato que obriga andar meio “empenada”...

Parece ter na pança amolecida,
aquilo de que atrás é desprovida,
mas... como é linda a minha namorada!

Elias José (Um Pássaro em Pânico)

 Era sempre aquele pânico antes da luz do dia se anunciar. Muita gente falava em solidão noturna, outras a sofriam de madrugada. Uma amiga (no tempo em que ela tinha amigos) até lhe dizia que a dela chegava sempre às sextas-feiras. Antes do dia, intervalo entre a madrugada e a manhãzinha, é que ela ia sentindo sufocar-se, uma vontade imensa de ter alguém para ouvir o ronco ou trocar algumas frases sonolentas. Sozinha no mundo e não adiantava fechar os olhos, não dormiria mais.

Não adiantava contar as tábuas do forro, tentar reconstituir o hábito antigo. Não havia tábuas, só a laje, o lustre e a lâmpada. Inútil inventar cantos de galos ou pássaros, coisas de manhãs distantes. No passado, ela ouviu sempre estórias de medos ou mitos, mas não chegou a sentir-se envolvida em nenhuma das duas coisas. Talvez um medo, muito forte, fosse preferível ao pânico real, tocável, que estava ali em seu corpo, nas carnes, na alma. Nenhum deus a quem pudesse pedir socorro, nenhum mito ou herói em quem acreditar.

Sabia que havia chegado a tal estado de depuração que os sonhos eram analisados e estava podada qualquer possibilidade de se iludir. Não alimentava mistérios, mas não sabia também arrancar aquele peso por dentro. As interrogações se intrometiam sem ela perceber. Havia um telefone e vários números que poderiam servir de socorro. Não discaria nenhum número, enfrentaria o cotidiano peso de amanhecer solitária num leito de casal. Em outros tempos, inventaria fugas, drogas, bebida, fumo.

Agora, conhecia todos os perigos do abismo e não estava mais perdida em nenhum abraço, em sonho nenhum. Era preciso inventar um mundo real, onde só ela coubesse, sem intromissões. Não naufragaria mais, tentando salvar os outros ou salvar-se. As pessoas devem aprender o valor de serem sós. Até acreditavam que havia aprendido, mas naquela hora do dia, só ela sabia da dor, das serpentes picando o corpo, das mãos pedindo abrigo como as aspas suspensas no ar. Do banheiro vinha aquele cheiro forte do desinfetante de eucalipto e era vida que a brisa trazia ao quarto.

Não seria mais interessante abrir todos os sentidos e buscar companhia na vida e não nas pessoas. O cheiro era nítido, provocante, ia além do olfato. A empregada poderia fazer limpeza no banheiro todas as tardes e, assim, teria o cheiro bom todas as manhãs. Era melhor mudar as coisas de seus lugares, encher o quarto de quadros, capas de discos, colagens, coisas que atingissem mais fundo que a visão.

Mas não seriam formas diferentes de cultuar pessoas, mitos, deuses? Na falta da música antiga que os pássaros traziam, num tempo em que havia pássaros e árvores e a casa, poderia ligar o toca-fitas. Não, a música pioraria tudo. A música sempre traz fantasmas, com seus vultos estranhos e pouco nítidos. Música não alivia ninguém, música excita, provoca, mexe por dentro, destrói fingindo que está construindo. Um livro, quem sabe um bom livro de poemas? De poemas, nunca! Os poetas nos destroem mais que a música.

Todos os versos trazem cargas sintéticas e poderosas de amargura e necessidades de integração. Não queria saber de nada que lembrasse integração. Não sabia por que, mas, naquela hora, estava lembrando-se de quando atendeu à porta e era a moça que havia lido o anúncio e procurava o emprego.

A moça mal conseguia articular uma frase, uma grande qualidade, bem dentro das exigências do anúncio: moça que não durma no emprego, alfabetizada, que seja discreta e fale pouco. Com o tempo, começou a querer soltar a língua e houve toda aquela repreensão: nada de conversas, de intimidades, pagava para que não entrassem em sua vida, não queria saber de estórias e problemas, detestava a mania que as domésticas tinham de querer se envolver nas estórias dos patrões e, ao mesmo tempo, fazendo com que eles também se sentissem envolvidos nas vidinhas delas.

Agora, o que doía era o silêncio pleno, o apenas: “bom-dia, posso servir o almoço?, posso servir o jantar?, até amanhã, às ordens, patroa, sempre às ordens, obrigada”.

As horas que passava no apartamento, fora do serviço, eram de paz, apenas quebradas pelo ruído da enceradeira, do liquidificador ou barulho que vinha da rua. Era bom sentir-se assim, ter um lugar onde não precisasse conversar tanto como no trabalho. O bom seria nem trabalhar, para não ter que tolerar aquelas conversas estranhas, que provocam náuseas. Triste não ter o direito de não ouvir coisas supérfluas.

As palavras deveriam custar dinheiro, ser bastante caras, assim não as gastariam com futilidades. Se cada pessoa procurasse ficar mais dentro dela mesma, sem esperar pelos sorrisos do vizinho, a vida seria mais densa. Era preciso selecionar cada frase, economizar os sorrisos, só dizer um elogio ou fazer um carinho quando houvesse uma necessidade interior muito intensa. Não suportava os sorrisos e falas fáceis das colegas de trabalho. Elas conseguiram esgotar a linguagem e vivem dizendo, mostrando, sem conseguir comunicação. E como possuíam rótulos para classificá-la! Era a fera, a orgulhosa, a perfeita, a feita de pedra, a insensível, a fria, a calculista. Por dentro, só ela sabia o peso e o preço de se fazer assim. Seria mais fácil fingir e ser também usada por todos.

Ela sabia, por experiência, como era duro não se pertencer, sorrir para todos, satisfazer os chefes, dar presentinhos nos aniversários de todas as colegas, ser sociável até que chegue a um ponto que nem o estômago perceba mais. Era preferível sentir a náusea, reagir. Afinal, não tinha o menor sentido aquele tempo em que suas mãos, quentes e ávidas, percorriam aqueles corpos todos, procurando neles facilidades econômicas ou posições não merecidas.

E naquele tempo, tudo lhe mostrava a verdade, o lado torpe das transações. As coisas pesavam e não davam nenhum prazer. O único homem que amou, que tentou fazer dele coisa só dela, foi o que mais a humilhou, o que lhe jogou na cara o que não percebia, tão iludida estava. Sem perguntas, sem respostas, fechou-se, certa que só há compensação quando se cria um mundo só da gente, sem fantasia, sem planos, sabendo de cada atitude, dos outros e da gente.

Era interessante aceitar, vez por outra, um galanteio, sair com alguém para um jantar ou boate, sem envolvimentos maiores de pele ou alma. Era bom, pois dava uma certeza de que a beleza ainda existia e, se quisesse, provocaria sede e fome. Não seria água nem comida fácil. Sua carne de fêmea em idade de cios doía, apunhalava fundo. Era preciso usar o corpo sem atingir a essência e aquelas horas de aceitação eram horas de aprendizagem.

Ontem, a aprendizagem foi longa e a entrega quase se deu. Agora, com a manhã se anunciando, a solidão doía muito, provocava um desejo estranho no corpo, uma vontade de gritar, pedir socorro. Agora, não queria apenas alguém deitado ao lado, roncando ou ouvindo palavras sonolentas. Queria amanhecer nos braços de um homem, braços fortes, ombros em que ela pudesse arranhar com a fúria acumulada em tantas manhãs de mentiras e vazios.

Mordeu os próprios braços, sentiu na boca um gosto quente de água e sal. Era apenas um corpo quente e inútil, estátua sem vida, uma serpente sem veneno, carregada de ternura. Não adiantava fantasiar um mundo lógico, seria o mesmo engano, uma fuga com infiltrações invisíveis que acabariam por estourar mais doloridamente. Entre aquelas duras horas de insônia e a noite, haveria muito tempo para estudar uma maneira de conceder ao corpo alguma saída para a satisfação.

Amanheceu por completo. Levantou-se, o café estava pronto e, sem sentir, chamou a moça para sentar-se com ela, fazer companhia. Ela sentiu que não era um pedido, era quase uma ordem e sentou-se.Dois minutos depois, olhava surpresa para a moça e teve vontade de mandá-la para o serviço. Mas os olhos, assustados e inutilmente olhando para a cafeteira, fizeram com que ela retomasse o fio dos acontecimentos. Teve ódio de estar cedendo.

Mas não podia negar que a empregada, mesmo calada, dava-lhe ma: 0"> Mas não podia negar que a empregada, mesmo calada, dava-lhe mais segurança, uma pequena certeza interior de que as coisas não estavam totalmente perdidas. Sem querer, sentiu muita ternura pela moça e, pela primeira vez, tentou examiná-la melhor.

Descobriu um rostinho infantil e sofrido, dois olhos inexplicavelmente medrosos, alguém que estava tomando café, mas que deixava claro que preferia estar muito distante dali, dela. Quis puxar assunto, perguntar a idade, saber alguma coisa daquela criatura que vivia naquela mesma casa há quase um ano. O orgulho foi maior.

Apressou-se, tomou o copo de leite, não tocou no pão, na manteiga, na geléia, apenas mais uma xícara de café e saiu da mesa, fingindo estar atrás de um fósforo.

Mais uma vez, ficou com a empregada a impressão de estar trabalhando com uma biruta. Pela primeira vez saiu com a patroa a imagem da mocinha e a certeza de que estava lidando com gente e era preciso ter o máximo cuidado para não se queimar outra vez.

E o que doía mais é que se via como uma serpente, enquanto a moça parecia um pássaro em pânico, perplexo, assustado.

Fonte:
Elias José. Pássaro em Pânico. Editora Ática.

Manoel Cavalcante / RN (Quem sou Eu)

Nasci. Entre os gladiadores da ignorância, tive uma infância conturbada. Vi minha avó num caixão sem saber porque todos choravam, aprendi a andar de bicicleta e quando soltei as mãos do guidom pela primeira vez, talvez conheci minha primeira lição de liberdade. Conheci a bola, a única coisa que me fazia ter vontade de fugir de casa embora que eu tivesse outros motivos. Aos 6 anos, conheci o Futsal, e este, foi um mestre que me ensinou a perder, a ganhar, a me superar, a lidar com o desânimo e o excesso de confiança, enfim, mostrou-me as primeiras metáforas da vida. Fui crescendo, rabiscava versos por ouvir tantos nas noites enluaradas em que me aventurei com meus pais. Crescia precisando ser mais adulto do que os que me cercavam, vi guerra, vi estupidez, mas via meu pai, um Dalai Lama sem fama, um monge que sempre me ensinou tudo sem precisar dizer nada. Conheci os fluidos da adolescência, os impulsos puberais, conheci o amor, o amor que tanto me deu asas, que tanto me impulsionou, o amor que me fez sonhar. Aos 18 anos, tive que sair de casa com o sonho no bolso, mas não o meu, aquele que foi preciso sonhar, conheci o mundo, a humanidade desumana, a mudança de personalidade, mas aos 19, eu conheci a trova, a forma poética que me fez crescer e que me fez entender melhor a vida, talvez por ser uma síntese, um sumo, uma seiva. Hoje, aos 22, eu acumulo decepções e glórias, mas vejo tudo com se fosse tivesse os dedos de um cego nas retinas, sinto tudo como se eu tivesse sido traído, talvez pela vida, porém eu tenho um Deus interno, eu me chamo: Fé. Eu me chamo palhaço: o que mais tem motivos para chorar, mas o que mais ri.

Fonte:
Texto do autor obtido no Facebook

José Lucas de Barros (Vaqueiro)

Há registros em prosa e poesia,
Aqui pelo Nordeste brasileiro,
Mas ninguém descreveu, como devia,
A grandeza da saga do vaqueiro.

Quando um touro se torna barbatão,
Escondido na mata de espinheiro,
Não há nada que o enfrente no sertão,
A não ser a coragem do vaqueiro.

Cavaleiro de tanta valentia,
Esquecido por esses pés de serra,
Nosso herói nordestino merecia
Uma estátua de bronze em sua terra!

Fonte:
O Autor   

Fábula (A Gralha e a Ovelha)

Certo dia em que a Ovelha andava a pastar sossegadamente, pousou-lhe nas costas uma Gralha. Imediatamente a Gralha começou a pairar e a fazer barulho de tal maneira, que em pouco tempo a pobre Ovelha nem sabia onde tinha a cabeça.

 - Ó menina Gralha – pediu ela delicadamente – se pudesse calar-se ou fazer um bocadinho menos de barulho… Está a incomodar-me tanto…

 Em resposta, a Gralha pôs-se a tagarelar ainda mais alto e foi-se entretendo a debicar na lã da Ovelha, até lhe chegar à carne, que picou sem compaixão.

 - Menina Gralha – queixou-se a Ovelha – está a fazer-me doer!

 - Bem me rala isso…

 - Ah! se eu fosse um cão – lastimou-se a Ovelha – já não se atrevia a incomodar-me, porque eu podia tirar-lhe a vida.

 - Bem sei o que faço. Se fosses um cão não me divertia contigo. Mas és uma ovelha fraca e velha, que não faz mal a uma mosca…

 E continuou a gralhar às costas da Ovelha, e a brincar-lhe com a lã e com a carne, toda destemida, como certas pessoas, que são valentes com os fracos e humildes com os fortes.

Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poesia & Trova)

Engano
Antonio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis "Cidade Poema"


O tempo foi, já passou.
O Jogo foi encerrado,
O que nem foi, terminou,
Diluiu, perdeu a cor,
Foi paixão sem ser amor,
Um presente sem passado.
Foi verão sem maresia,
Um mar frio sem maré,
Foi canção sem melodia,
Foi carnaval sem folia,
Foi uma crença sem fé.
Foi monarquia sem rei,
Foi promessa sem verdade,
Foi um tribunal sem lei
Foi um brado que ecoou
Num peito sem liberdade.

Se um dia...
Diamantino Ferreira/RJ


- Se um dia me disseres... se o disseres!
“Amo-te! Apesar dos teus defeitos!”
Serás a maior, mais falsa das mulheres,
dentre outras tantas. Sem quaisquer conceitos!
Dirás apenas que ... ”Por que me queres,
pois nenhuma de nós pensa em “direitos”?
Eis que somos apenas teus talheres,
das tuas refeições e teus confeitos!
Tenho o direito de dizer: Sou tua!
Enquanto vives tu, vives na rua,
e te queres achar seres meu dono!
Que mãe eu tive – se algum dia a tive?
Não a conheço e se tampouco vive.
...A quem pertenço – enfim - neste abandono?

Trova

Ademar Macedo/RN


Com insônia... Apaixonado,
sinto-me feliz porque:
Passando a noite acordado
eu penso mais em você!...

Trova

Prof. Francisco Macedo

Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão...
A fé, tecida entre os trapos,
remendava a solidão!

Trova

Hermoclydes S. Franco/RJ


Sem preconceito ou pudor,
mas de emoções verdadeiras,
grandes momentos de amor
não delimitam fronteiras!…

Fonte:
Antonio M.A. Sardenberg

Mia Couto (Gaiola de Moscas)

Zuzé Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem por baixo da grande pahama se erguia sua banca. Quando a manhã já estava em cima, Zuzé Bisgate assentava os negócios. O que ele fazia? Alugava bisga, vendia o cuspo dele. A saliva de Zuzé tinha propriedades de lustrar sapatos.

-  É melhor que graxa, enquanto graxa nem há- .

Além disso, o preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saía a trezentos, incluindo o lustro. Maneira como ele procedia era seguinte: o cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do cliente sobre uma fogueirita. O pé ficava ali apanhando uns fumos para purificar dos insectos infecciosos. Zuzé Bisgate pegava no sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada cuspidela contava na conta. Passava o lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo. Raz+o do pano, motivo de esfregar com o cotovelo:

-  Dessa maneira a minha saliva me volta no corpo. É que este não é um cuspe qualquer, um produto industrioso desses. Não, isto é uma saliva bastantíssima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos foi um pequeno projecto de apoio ao sector informal. É que  Deus conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contactos lá em cima- .

Os clientes não se faziam enrugados. Às vezes até abichavam frente à banca dele. Fosse da saliva, fosse da conversa que ele lustrava. Verdade era que o negócio de Zuzé corria em bom caudal.

Quem não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. - _Não se pode beijar aquela boca engraxadora dele- , se lamentava. - _Prefiro beijar uma bota velha- , concluía.
- _Ou lamber uma caixa de graxa- .

Armantinha sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo, água fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu sonho se fabricava nos recônditos.

Avisaram o marido. Armantinha estava sonhando longe de mais. O homem respondeu em variações. - _Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois, minha boca cheira a coisa falecida. Quem se aflije com matéria morta? Só os da cidade. Nós, daqui, sabemos bem: é do podre que a terra se alimenta- .

Acontece que Zuzé Bisgate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões. Tudo servia de líquido, Zuzé destilava até pedra. De toda a substância se pode espremer um alcoolzinho, dizia. Mais e mais ele desleixava a caixa de cuspos e lustros. Até que os clientes reclamaram: a saliva de Zuzé está ganhando ácidos, aquilo é bom é para de entupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.

Até Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele lhe fez murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral. Pouco a pouco Zuzé perdeu toda a clientela e o negócio das salivas fechou.

Se decidiu então a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a máxima: a alma é o segredo de um negócio.  Alma, era isso que se necessitava. E assim ele imaginou um outro negócio. E agora quem o vê, nos actuais dias, constata a banca com sua nova aparência. E Zuzé mais seu novo posto. Seu labor é um quase nada, coisa para inglês não ver.

Ali, na fachada, arregaça as calças, com cuidado para não as desvincar. Sempre com desvelo de burocrata, desembrulha um volume retirado das entranhas de sua banca: uma gaiola forrada a rede fina. Dentro voam moscas. Pois é o que ele vende: moscardos. Matéria viva e mais que viva -- vital para o mortal cidadão. Pois, diz o Bisgate, cada um deve tratar as moscas que, depois de mortos, nos visitarão o túmulo.

- São os nossos últimos acompanhantes ...

A pessoa passa por ali, se debruça sobre o vendedor e escolhem as voadoras bastas, as mais coloridas que engalanarão o funeral:

-  Esta há-de ficar mesmo bem na sua cerimónia.

Ele convida o hesitante cliente a ir à banca ao lado, a banca da Dona Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.

-  Lavar as moscas?

- Sim, é lavagem a seco.

Armantinha cada vez mais se distancia daquela loucura. O marido se apronta é para grandes descansaços.

-  Ai nosso Senhor Jesus Cristo! Você, homem, você vende alguma coisa?

-  Faça as contas, mulher.

-  Que contas? Que contas se pode fazer sem números?

-- Ainda hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou à aldeia.

-  Qual que chegou?

-  Esse gajo que montou banca lá nas traseiras do bazar. Uma banca que até mete as graças, chama-se "Pinta-_Boca".

-  O homem se chama Pinta-_Boca?

-  Qual o homem! A banca se chama- .

Armantinha se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquidesfaz. Sua boca pedia pintura como a cabeça lhe requeria sonho. E, logo nessa manhã, ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se declina:

-  Sou Julbernardo, venho de lá, da cidade- .

Banca Pinta-_Boca. O nome faz jus. Na prateleira ele tem uma meia dúzia de bâtons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as brancas, vermelhudas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.

Armantinha, já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma coloradela.

-  Aqui, se paga em adiantado- .

Ela retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas à procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia cruzar os braços.

-  Está aqui seu dinheiro.

-  Não chega nem basta. Essa tabuleta do preço era na semana passada. Agora é 250 um lábio.

-  Um lábio?

-  Se for o de cima, o de baixo custa mais caro. Por causa que é maior.

-  Estou fracassada com você, Julbernardo. Vá, pinte o de cima, amanhã venho pintar o de baixo.

-  Está certo, eu vou pintar- .

Julbernardo pegou no bâton com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser vista. Metade do povoado vinha assistir às pinturas. A gente seguia caladinha, aquilo era cena à prova de fala. Julbernardo metia um avental, ordenava à cliente que sentasse no tronco cortado do canhoeiro.

Armantinha obedecia ao ritual. Sentada, ergueu o rosto. Fechou os olhos, compenentrada em si. O pintador limpou as mãos no avental. Se debruçou sobre a tela viva e fez rodar o bâton no ar antes de riscar a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha  deu largas ao sonho. O bâton acariciava o lábio e tornava seu corpo misteriosamente leve, como se naquele toque se anulasse todo o peso dela.

Sonhava Armantinha e o sonho dela se apoderava. Nesse devaneio o bâton se convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando húmidas ternuras. Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zuzé também lhe esvoaça na cabeça.

E eis que Armantinha abre os olhos e ali, bem à sua frente, o seu marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a gentalha rodopiando em volta. De repente, já um deles se apresenta de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na mão de Zuzé. Depois, num sacão, se separam os dois corpos. Estão ambos ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho dá dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se avizinha. Zuzé, vitorioso, aponta a mulher:

-  Vê? Vê as moscas que vendi a esse cabrão?-

Mas as moscas, em lugar de escolherem o tombado Julbernardo, circundam a cabeça de Zuzé. Alarmado, ele enxota-as. Em vão: já a moscardaria lhe pousa, vira e revira. Então, Zuzé Bisgate desce dos seus próprios joelhos e se derrama em pleno chão. O sangue se vê brotar de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral. Com mão corrige a mancha vermelha com que o bâton esmagado enchera o seu branco avental.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

Trovadorismo (Parte 3)

GÊNERO SATÍRICO

As cantigas satíricas (cantigas de escárnio e cantigas de maldizer) apresentam interesse sobretudo histórico, reunindo cantigas autóctones maliciosa da época. São verdadeiros documentos dos costumes e da vida social e política, principalmente da corte, trazendo até nós os mexericos e os vícios ocultos da fidalguia medieval portuguesa, sem a idealização da cantiga de amor.

Seu objetivo é a crítica social, com intuito humorístico, ridicularizando pessoas de forma sutil ou grosseira, denunciando os falsos valores morais vigentes e atingindo todas as classes sociais: senhores feudais, clérigos, povo e até eles próprios.

Seus principais temas são: a covardia dos cavaleiros, traições, as chacotas e deboches, escândalos das amas e tecedeiras, pederastia (homossexualismo) e pedofilia (relações sexuais com crianças), adultério e amores interesseiros e ilícitos, disputas políticas, mulheres feias.

Tanto nas cantigas de escárnio quanto nas de maldizer, pode ocorrer diálogo. Quando isso acontece, a cantiga é denominada tensão (ou tenção). Pode mostrar a conversa entre a mãe a moça, uma moça e uma amiga, a moça e a natureza, ou ainda, a discussão entre um trovador e um jogral, ambos tentando provar que são mais competentes em sua arte.

É verdade que seu valor poético é pequeno, mas seu aspecto documental torna imprescindível seu estudo. Ademais, são importantes uma vez que apresentam um considerável vocabulário, observando-se, muitas vezes o uso de trocadilhos; e fogem às normas rígidas das cantigas de amor oferecendo novos recursos poéticos.

 A diferenças entre as cantigas de escárnio e de maldizer é sutil.

CANTIGAS DE ESCÁRNIO

 Sátira social ou individual. Crítica indireta, sarcástica, zombeteira e de linguagem ambígua. Presença de menosprezo, desprezo e desdém. Não se nomeia a pessoa criticada, mas esta é facilmente reconhecível pelos demais elementos da sociedade.Uso da ironia, do equívoco e da sutileza, com intuito humorístico.

Veja exemplos de Cantigas de Escárnio

Rui Queimado morreu con amor
 en seus cantares par Sancta Maria
 por ua dona que gran bem queria
 e por se meter por mais trovador
 porque Ih'ela non quis [o] benfazer
 fez-s'el en seus cantares morrer
 mas ressurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez-el por ua sa senhor
 que quer gran bem e mais vos en diria;
 porque cuida que faz i maestria
 enos cantares que fêz a sabor
 de morrer i e desi d'ar viver;
 esto faz el que x'o pode fazer
 amar outr'omem per ren non [n] o faria

E non há já de sa morte pavor
 senon sa morte mais la temeria
 mas sabede ben per sa sabedoria
 que vivera dês quando morto fôr
 e faz-[s'] cantar morte prender,
 desi ar viver: vêde que poder
 que Ihi Deus deu, mas que non cuidaria

E se mi Deus a mim desse poder
 qual oi'el há pois morrer
 jamais morte nunca temeria.
(Pero Garcia Burgalés)

 De vós, senhor, quer'eu dizer verdade
 e nom ja sobr'[o] amor que vos ei:
 senhor, bem [moor] é vossa torpicidade
 de quantas outras eno mundo sei;
 assi de fea come de maldade
 nom vos vence oje senom filha dum rei
 [Eu] nom vos amo nem me perderei,
 u vos nom vir, por vós de soidade[...]
(Pero Larouco)

 Ai, dona fea, fostes-vos queixar
 que vos nunca louv[o] em meu cantar;
 mais ora quero fazer um cantar
 em que vos loarei toda via;
 e vedes como vos quero loar:
 dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi pardom,
 pois avedes [a]tam gram coraçom
 que vos eu loe, em esta razom
 vos quero ja loar toda via;
 e vedes qual sera a loaçom:
 dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
 em meu trobar, pero muito trobei;
 mais ora ja um bom cantrar farei,
 em que vos loarei toda via;
 e direi-vos como vos loarei:
 dona fea, velha e sandia!
(João Garcia de Ghilhade)

CANTIGAS DE MALDIZER

Sátira direta, maledicente, com linguagem objetiva e inequívoca. Neste tipo de cantiga é feita uma crítica pesada, com intenção de ofender e difamar, citando-se o nome da pessoa ridicularizada. Presença de agressividade e uso de termos vulgares, grosseiros e obscenos, inclusive palavrões. Há uma abordagem mais desabusada dos vícios sexuais atribuídos aos satirizados.

Veja exemplos de Cantigas de Maldizer

Rui Queimado morreu con amor
 en seus cantares par Sancta Maria
 por ua dona que gran bem queria
 e por se meter por mais trovador
 porque Ih'ela non quis [o] benfazer
 fez-s'el en seus cantares morrer
 mas ressurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez-el por ua sa senhor
 que quer gran bem e mais vos en diria;
 porque cuida que faz i maestria
 enos cantares que fêz a sabor
 de morrer i e desi d'ar viver;
 esto faz el que x'o pode fazer
 amar outr'omem per ren non [n] o faria

E non há já de sa morte pavor
 senon sa morte mais la temeria
 mas sabede ben per sa sabedoria
 que vivera dês quando morto fôr
 e faz-[s'] cantar morte prender,
 desi ar viver: vêde que poder
 que Ihi Deus deu, mas que non cuidaria

E se mi Deus a mim desse poder
 qual oi'el há pois morrer
 jamais morte nunca temeria.
(Pero Garcia Burgalés)

A PROSA TROVADORESCA

A prosa medieval tem caráter documental, retratando com mais detalhes o ambiente histórico-social desta época.

Há quatro gêneros em prosa do período medieval:

1)    Hagiografias:
relatos bibliográficos dos santos da Igreja, escritos em latim.

2)    Cronicões:
relatam, de forma romanceada, acontecimentos históricos/sociais do século XIV, através de anotações em seqüência cronológica.

3)    Livros de Linhagem ou Nobiliários:
árvores genealógicas das famílias nobres, elaboradas com o intuito de resolver problemas de heranças e de evitar "casamentos em pecado".

4)    Novelas de Cavalaria
 As novelas de cavalaria são narrativas ficcionais de acontecimentos históricos, originárias da prosificação de poemas épicos e das canções de gesta (guerra) francesas e inglesas. Refletiam, de modo geral, os ideais da nobreza feudal: o espírito cavalheiresco, a fidelidade, a coragem, o amor servil. Geralmente não apresentavam autoria e sua temática estava ligada às aventuras dos cavaleiros medievais, na luta entre o "bem" e o "mal" das Cruzadas, em defesa da Europa Ocidental contra sarracenos, eslavos, magiares e dinamarqueses, inimigos da cristandade. Os cavaleiros são castos, fiéis e dedicados, segundo os padrões da Igreja Católica, dispostos a qualquer sacrifício para defender a honra cristã, em contraposição ao cavaleiro da corte, geralmente sedutor e envolvido em amores ilícitos.

 As novelas eram tidas em alto apreço e foi muito grande a sua influência sobre os hábitos e os costumes da população da época.

 As novelas de cavalaria dividem-se em três ciclos e se classificam pelo tipo de herói que apresentam:

ciclo clássico: heróis "emprestados" da antigüidade greco-romana e da literatura clássica (Ulisses, Enéias ...); novelas que narram a guerra de Tróia, as aventuras de Alexandre, o grande.

ciclo carolíngio: versando sobre as aventuras de Carlos Magno e os Doze Pares de França.
Algumas dessas novelas foram trazidas para o Brasil no período da colonização, e seus heróis alimentam ainda hoje a literatura de cordel nordestina.

ciclo bretão ou arturiano: o mais fecundo de todos, com as histórias sobre o Reino de Camelot, o Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Três são as novelas remanescentes desse ciclo: José de Arimatéia, História de Merlim e A Demanda do Santo Graal.

 A Demanda do Santo Graal é a novela mais importante para a literatura portuguesa, reunindo dois elementos fundamentais da Idade Média quando coloca a Cavalaria a serviço da Religiosidade. Ela retrata as aventuras dos cavaleiros do Rei Artur em busca do cálice sagrado (Santo Graal), que conteria o sangue recolhido por José de Arimatéia, quando Cristo estava crucificado.

Com o advento do Humanismo, esses ciclos de novelas deram lugar a um novo ciclo - o dos Amadises - desvinculado dos ideais religiosos cristãos e com erotização das relações amorosas.

 A última novela de cavalaria data do século XVI, e, embora visasse à crítica do gênero e de seu conteúdo, que já se acreditavam esgotados, terminou por constituir-se na melhor e mais famosa de todas: D. Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com/historia/trovadorismo/index.shtml

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Nemésio Prata (Poetas de Quartel)

Casernas deviam ter
poetas de prontidão,
em serviço; pra trazer
aos quartéis sua missão!

Se, Poeta ou Trovador,
Literato ou Repentista,
Menestrel ou Cordelista,
Seja lá o que Você for,
Cante sempre com Amor!
Na paixão do teu cordel
Ao amor, darás quartel.
O fogo do teu repente
Alegra a vida da gente,
Do Soldado ao Coronel!

Falar no quartel inteiro,
Seguindo a tal hierarquia,
Pra não virar anarquia,
Vou chamar, como primeiro,
Nosso CABO CORNETEIRO.
Bom de toques e de verso,
No direto, e no reverso;
Cada nota sua, aponta,
Ser um Trovador, que conta,
As belezas do universo!

Literato e Repentista,
Encontramos o Sargento.
De poetas, é um rebento,
Fez-se grande Cordelista
Que vive dando entrevista!
Tecedor de belas trovas,
Sempre canta as boas novas,
Com beleza sem igual.
É trovador genial;
Disto já deu boas provas!

Nas fileiras do quartel,
O Cadete, já Tenente,
Anda com desejo ardente
De mostrar ser Menestrel,
Soltando versos ao léu!
No rutilo da palavra,
Os versos de boa lavra,
Adoçam seu coração;
E numa bela oração,
O sublime amor deslavra!

Passando tropa em revista,
Coberto de galardão,
O garboso Capitão
Mostra, também, ser artista,
Renomado Repentista.
A cantar, com todo ardor,
Seus versos, com destemor;
Na bandeira, desfraldada,
Fez, pra sua namorada,
Sublimes trovas de amor!

Nem menor e nem maior,
Bem no meio das “patentes”,
Trazendo seus bons repentes,
Encontramos, pra melhor,
Nosso brioso Major!
Neto de bom cordelista,
No conjunto é vocalista!
Canta sempre uma canção
Que marcou seu coração!
Viva o nosso Repentista!

Como todo militar,
Ele fica no comando,
Não sempre, de vez em quando,
No lugar do titular,
Se este não vem trabalhar!
É, o sub do Quartel,
Um “finório” Menestrel,
Que canta, com galhardia,
Os seus versos, todo dia:
O Tenente-Coronel!

Também grande Trovador,
Ele canta sempre o Amor!
Repentista renomado,
Prefere de ser chamado,
Simplesmente: Cantador!
É o nosso Coronel,
Comandante do Quartel!
No fogo do seu repente,
Incendeia toda gente;
Tem paixão pelo cordel!

Até mesmo o General,
Comandante da Brigada,
Ante a sua "namorada"
E companheira fanal,
Declara-lhe amor total.
Fazendo, tal Trovador,
Lindas poesias de amor,
No peito, marca a batida
Do coração, que na vida,
Pulsa forte, sedutor!

Quanto ao pequeno Recruta,
O “menor” na hierarquia,
Nos versos, é “autarquia”;
Mostrando ser um Batuta,
No Quartel, onde labuta!
Assim o Soldado Dimas,
Vai tecendo as obras primas,
Que até mesmo o “MARECHAL”
Das Patentes, “maioral”,
Não resiste às suas rimas!

Fontes:
Nemésio Prata - CE
Imagem = http://www.eb1-sta-vitoria.rcts.pt/aventura/historia.htm

Carlos Drummond de Andrade (Rola Mundo)

Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.

Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.

Vi o sapo saltando
uma altura de morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.

Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.

Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolver os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi: já não quero ver.

E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de vôo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas...
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.

Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo. In Nova Reunião, vol.1.

Alvaro de Campos (Poemas Sem Fronteiras)

SÍMBOLOS?
 Símbolos? Estou farto de símbolos...
 Mas dizem-me que tudo é símbolo.
 Todos me dizem nada.
 Quais símbolos? Sonhos. -
 Que o sol seja um símbolo, está bem...
 Que a lua seja um símbolo, está bem...
 Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
 E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
 Para o azul do céu?
 Mas quem repara na lua senão para achar
 Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
 Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
 Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
 Por uma diminuição instintiva,
 Porque o mar também é terra...
 Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
 Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
 Mas neste poente precoce e azulando-se
 O sol entre farrapos finos de nuvens,
 Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
 E o que fica da luz do dia
 Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
 Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
 Símbolos? Não quero símbolos...
 Queria - pobre figura de miséria e desamparo! -
 Que o namorado voltasse para a costureira.

SOU EU

 Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
 Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
 Arredores irregulares da minha emoção sincera,
 Sou eu aqui em mim, sou eu.

 Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
 Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
 Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

 E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
 Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
 De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
 Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

 E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
 Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
 De haver melhor em mim do que eu.

 Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
 Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
 De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
 De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
 De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

 Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
 Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
 De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
 A impressão de pão com manteiga e brinquedos
 De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
 De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
 Num ver chover com som lá fora
 E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

 Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
 O emissário sem carta nem credenciais,
 O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
 A quem tinem as campainhas da cabeça
 Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

 Sou eu mesmo, a charada sincopada
 Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

 Sou eu mesmo, que remédio! …

DOMINGO IREI

 Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros
 Contente da minha anonimidade.
 Domingo serei feliz — eles, eles...
 Domingo...
 Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
 Nenhum domingo. —
 Nunca domingo. —
 Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
 Assim passa a vida,
 Sutil para quem sente,
 Mais ou menos para quem pensa:
 Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
 Não no nosso domingo,
 Não no meu domingo,
 Não no domingo...
 Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...

 - O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona d'água,
 Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva.
 E a vasta humilhação de existir um amor taciturno -
 Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
 Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria -

 Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma
 A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.

 Meus versos são a minha impotência.
 O que não consigo, escrevo-o;
 E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.

 A costureira estúpida violada por sedução,
 O marçano rato preso sempre pelo rabo,
 O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
 - Não distingo, não louvo, não (...) -
 São todos bichos humanos , estupidamente sofrentes.

 Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
 Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
 E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.

 Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso -
 Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.

 Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
 Bebedeira da servilidade altruísta,
 Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo…

COMEÇA A HAVER MEIA-NOITE

 Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
 Por toda a parte das coisas sobrepostas,
 Os andares vários de acumulação da vida...
 Calaram o piano no terceiro andar...
 Não oiço já passos no segundo andar...
 No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

 Vai tudo dormir...

 Fico sozinho com o universo inteiro.
 Não quero ir à janela:
 Se eu olhar, que de estrelas!
 Que grandes silêncios maiores há no alto!
 Que céu anticitadino! -
 Antes, recluso,
 Num desejo de não ser recluso,
 Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
 Um automóvel - demasiado rápido! -
 Os duplos passos em conversa falam-me...
 O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

 Vai tudo dormir...

 Só eu velo, sonolentamente escutando,
 Esperando
 Qualquer coisa antes que durma
 Qualquer coisa.

CONTUDO

 Contudo, contudo,
 Também houve gládios e flâmulas de cores
 Na Primavera do que sonhei de mim.
 Também a esperança
 Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
 Também tive quem também me sorrisse.
 Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
 Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
 Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

 Caí pela escada abaixo subitamente,
 E até o som de cair era a gargalhada da queda.
 Cada degrau era a testemunha importuna e dura
 Do ridículo que fiz de mim.

 Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
 Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
 Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
 Sou imparcial como a neve.
 Nunca preferi o pobre ao rico,
 Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

 Vi sempre o mundo independentemente de mim.
 Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
 Mas isso era outro mundo.
 Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
 Acima de tudo o mundo externo!
 Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

TRAPO

 O dia deu em chuvoso.
 A manhã, contudo, esteve bastante azul.
 O dia deu em chuvoso.
 Desde manhã eu estava um pouco triste.

 Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
 Não sei: já ao acordar estava triste.
 O dia deu em chuvoso.
 Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
 Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
 Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
 Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
 Dêem-me o céu azul e o sol visível.
 Névoas, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.

 Hoje quero só sossego.
 Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
 Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
 Não exageremos!
 Tenho efetivamente sono, sem explicação.
 O dia deu em chuvoso.

 Carinhos? Afetos? São memórias...
 É preciso ser-se criança para os ter...
 Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
 O dia deu em chuvoso.

 Boca bonita da filha do caseiro,
 Polpa de fruta de um coração por comer...
 Quando foi isso? Não sei...
 No azul da manhã...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesia Completa de Álvaro de Campos. SP: Companhia das Letras, 2007.

Vereador José Antônio Marques Almeida (Discurso em Homenagem à Carolina Ramos)

A trovadora, poetisa e contista Carolina Ramos recebeu a Medalha de Honra ao Mérito Brás Cubas da Câmara Municipal de Santos, na Sala Princesa Isabel, em homenagem proposta pelo vereador José Antonio Marques Almeida, Jama.

A santista Carolina Ramos começou sua carreira nas artes literárias em 1961. Já conquistou quase 900 prêmios no Brasil e no exterior. Levou o nome de Santos para vários cantos culturais: para Portugal, quando recebeu o Prêmio de Poesia da Academia de Música e Belas-Artes de Setúbal, em 1965; ou para Barreira, também em Portugal, ao conquistar o primeiro lugar no Concurso de Contos da Casa de Cultura da Quimigal, em 1989.

Carolina Ramos foi presidente, por três gestões, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e também da União Brasileira de Trovadores (Seão Santos), integrou as diretorias da Academia Santista de Letras; da Academia Feminina de Ciências, Letras e Artes de Santos;   do Grupo Encontro de Poetas de Santos; da Academia Anapolina de Letras, da Casa Juvenal Galeno, de Fortaleza; da Academia Petropolitana de Letras; do Ateneu Angrense de Letras; da Academia Pindamonhangabense de Letras; da Academia Paulistana de História; da Ordem Nacional dos Bandeirantes e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Livros
Carolina Ramos publicou vários livros, entre eles: Sempre (Poesias), Cantigas Feitas de Sonho (Trovas), Espanha (Poema Épico), Trovas que Cantam por Mim (Trovas), Interlúdio (Contos), Um Amigo Especial (Conto).

Confira na íntegra o discurso Vereador José Antônio Marques Almeida:

“Poesia, sempre Poesia”. “O poeta é a mãe das artes...alô poetas: poesia! poesia poesia poesia poesia!”. “Os poemas são pássaros que chegam...não se sabe de onde e pousam...no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam vôo...como de um alçapão. Eles não têm pouso...nem porto...alimentam-se um instante em cada par de mãos...e partem”. “Em meio a um cristal de ecos. O poeta vai pela rua...Seus olhos verdes de éter...Abrem cavernas na lua.” “Possuis a graça como inspiração...Amas, divides, dás, vives contente, E a bondade que espalhas, não se sente, Tão natural é a tua compaixão”.

Para início desta nossa homenagem à uma trovadora, contista, poetisa, santista ilustre trouxemos algumas boas companhias. Torquato Neto. Mário Quintana. Vinícius de Moraes. Martins Fontes.

Como escrever para quem tem o dom da palavra? Como emocionar quem fala ao coração dos homens? Como encantar quem vive do encanto?

O seu processo literário pode ser motivado por apenas uma palavra, ou impulsionado por uma emoção, ou até mesmo pelo simples desejo de conversar consigo mesma. Nas palavras da nossa própria poetisa: “Lavar a alma, dividir com o papel uma dor, uma alegria, ou mesmo um simples sonho”. E todos somos “presenteados” com esse processo humano da nossa poetisa, que também foi professora e é artista plástica.

“Jamais chore o abandono
Da primavera que finda,
Pode haver frutos no outono
Que tu não provaste ainda”.


“Nas poesias, trovas e contos, minha própria alma é que passeia pelas linhas e entrelinhas”!, nos ensina a trovadora. E nos ensina mais: a viver, mesmo que derramando algumas lágrimas, sem abandonar os sonhos. Com um coração gigante a nossa homenageada de hoje vai além dos nossos mares.

Conquista outras terras, outros corações. Fica fácil entender porque ela mereceu tantos títulos, homenagens e prêmios no Brasil, Portugal e Angola, como o Prêmio Rui Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores de São Paulo. Prêmios que conquistaram os corações de cariocas, mineiros, paranaenses, gaúchos, cearenses, pernambucanos, matogrossenses e muitos mais. São mais de 900 prêmios literários recebidos!

”A grande, a maior vitória
Que até hoje consegui,
Foi remover da memória
As batalhas que perdi”.


A vitória da escritora santista é vitória da nossa Cidade também. Ganhamos muitos presentes, compartilhamos momentos de pura emoção dessa mulher que tem a literatura como sua companheira, como uma janela sempre aberta para o passado e para o futuro. Uma literatura que lhe deu amigos, a maioria mais do que amigos, mas irmãos sinceros. Se por acaso, nesse caminho, alguma coisa não valeu à pena foi transformada, temos certeza, pelas próprias mãos da nossa escritora em belos poemas, trovas e contos.

Emoções sem conta são os dias da trovadora, contista, poeta, santista ilustre! Ela nos diz que a literatura deu-lhe ternura à vida. Ela está sendo modesta. A sua literatura nos trouxe, mais do que ternura às nossas vidas, nos trouxe amor e nos ajudou e ajuda a viver.

São tantos os títulos recebidos, ou melhor, merecidos. Foi a primeira mulher a conquistar o Título e Troféu de Magnífico Trovador no Brasil. E os prêmios não cessaram. Em 2004, Notável Trovador, em Pouso Alegre, Minas Gerais. Seus serviços prestados à Cultural foram exemplarmente premiados, com a Medalha do Sesquicentenário da Prefeitura de Santos; a Medalha dos Andradas do Instituto Histórico e Geográfico de Santos; a Medalha de Sócio Honorário da Casa “Lampião de Gás” de São Paulo. Prêmio Ribeiro Couto da Secretaria de Cultura de Santos e União Brasileira de Escritores de São Paulo. Recebeu os Diplomas da Academia Paulistana de História, da Ordem Nacional dos Bandeirantes de São Paulo, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.                                                       

”Segredos de amor...Tolice!
Ninguém consegue esconder
Aquilo que o olhar já disse
Antes de a boca dizer!”


Assim como o segredo de amor se desfaz com o olhar, o segredo de tanto amor partilhado se desfaz pelas próprias palavras da nossa trovadora, poetisa, contista e ilustre santista. Ela nos diz: “Nas poesias, trovas e contos, minha própria alma é que passeia pelas linhas e entrelinhas”.

Obrigado, Carolina Ramos por tanto amor e emoção partilhados. Obrigado, por sermos irmãos de tantos caminhos. Obrigado, pelo Sempre, Cantigas Feitas de Sonho,  Trovas que Cantam por Mim, Um Amigo Especial e tantos outros livros de poesias, trovas e contas que você nos deu ao longo de tantos anos. Obrigado, por ter feito a sua alma passear por tantas linhas e entrelinhas.

Esteja certa, nossa poetisa Carolina Ramos, os maiores ganhadores desta vida literária SOMOS NÓS!

Antes de lhe passar às mãos a  Medalha de Honra ao Mérito Brás Cubas, a comenda que esta Casa lhe outorga, como mais alto reconhecimento que esta Terra pode conceder a um filho que honra e engrandece o nome e a tradição da Cidade, permita-me, Carolina Ramos, terminar essa homenagem  citando um companheiro seu que faz uma declaração de amor à palavra... “Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ...

Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava...
” Pablo Neruda.


Fonte:
http://www.camarasantos.sp.gov.br/noticia.asp?codigo=1134&COD_MENU=102

Fábula (O Leão e os 4 Touros)


Quatro Touros bons amigos tinham por hábito andar sempre juntos. Saíam juntos, pastavam juntos, divertiam-se juntos.

 O Leão, que morava nas proximidades, dava tratos à cabeça a ver se descobria a maneira de os fazer andar separados, cada um para seu lado, porque aquela união forte dos quatro impedia-o de atacar qualquer deles.

 - Se eu conseguisse apanhar um a jeito, de cada vez – dizia ele com os seus pêlos – tinha comida para uns poucos de dias sem me ralar nada. Mas assim… Com os quatro ao mesmo tempo é que eu não posso; davam conta de mim. Mas quem é que separa esses sócios, e de que maneira?!

 O Leão tanto pensou, tanto espremeu os miolos, até que um dia se lembrou de um meio que lhe pareceu ótimo para dividir os quatro amigos. Foi ter com a Raposa e disse-lhe:

 - Já sabe, comadre, que os nossos quatro vizinhos Touros se desentenderam?

 - Sim? —indagou a Raposa, toda interessada.

 - É verdade. Começaram ontem a discutir por causa do sítio onde iriam hoje almoçar e às duas por três puseram-se a questionar e acabaram por se insultar uns aos outros. O mais velho, então, diz tão mal dos companheiros!

 A Raposa correu a contar o sucedido ao Leopardo e ao Urso, estes passaram a outros e dentro de pouco tempo toda a floresta dizia de boca em boca o que o Leão e a Raposa iam contando acerca dos vizinhos Touros.

 Poucas horas depois isto chegava aos ouvidos dos Touros e os quatro amigos puseram-se a pedir satisfações uns aos outros. «Disseram-me que tu disseste… – Não disse nada… – Ah! isso é que disseste…»

 Então é que os quatro amigos se desarmonizaram. Ralharam, gritaram, ofenderam-se uns aos outros e acabaram por ir cada qual para seu sítio, separados pela primeira vez na vida.

 Ora isto e o que o Leão queria era precisamente o mesmo… Atacou o primeiro que encontrou só e papou-o, ao segundo fez o mesmo, ao terceiro outro tanto e o quarto foi pelo mesmo caminho.

 E os quatro amigos Touros, que tão felizes e tão fortes tinham sido enquanto viveram unidos, acabaram assim, miseravelmente, logo que acreditaram em intrigas e se isolaram uns dos outros.

 «A união faz a força».

 E aqui acaba a história.

Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

Ascenso Ferreira (Poemas Avulsos)

O GÊNIO DA RAÇA

 Eu vi o gênio da raça!!!
 (Aposto como vocês estão pensando que eu vou
 falar de Rui Barbosa).
 Qual!
 O Gênio da Raça que eu vi
 foi aquela mulatinha chocolate
 fazendo o passo de siricongado
 na terça-feira de carnaval!

MINHA ESCOLA

 A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
 E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
 Complicado como as Matemáticas;
 Inacessível como Os Luzíadas de Camões!

 À sua porta eu estava sempre hesitante...
 De um lado a vida... - A minha adorável vida de criança:
 Pinhões...Papagaios...Carreiras ao sol...
 Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
 Saltos de ingazeira pra dentro do rio...
 Jogo de castanhas...
 - O meu engenho de barro de fazer mel!

 De outro lado, aquela tortura:
 "As armas e os barões assinalados!"
 - Quantas orações?
 - Qual é o maior rio da China?
 - A 2+2 AB = quanto?
 - Que é curvilíneo, convexo?
 - Menino, venha dar sua lição de retórica!
 - "Eu começo, atenienses, invocando
 a proteção dos deuses do Olimpo
 para os destinos da Grécia!"
 - Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
 - Agora, a de francês:
 - Quand le christianisme avait apparu sur la terre...
 - Basta
 - Hoje temos sabatina...
 - O argumento é o bolo!
 - Qual é a distância da Terra ao Sol?
 - !??
 - Não sabe? Passe a mão à palmatória!
 - Bem, amanhã quero isso de cor...

 Felizmente à boca da noite,
 eu tinha uma velha que me contava histórias...
 Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
 E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.

TREM DE ALAGOAS
 
O sino bate,
 o condutor apita o apito,
 Solta o trem de ferro um grito,
 põe-se logo a caminhar…
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Mergulham mocambos,
 nos mangues molhados,
 moleques, mulatos,
 vêm vê-lo passar.
 Adeus !
 - Adeus !
Mangueiras, coqueiros,
 cajueiros em flor,
 cajueiros com frutos
 já bons de chupar...
 - Adeus morena do cabelo cacheado !
Mangabas maduras,
 mamões amarelos,
 mamões amarelos,
 que amostram molengos
 as mamas macias
 pra a gente mamar
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Na boca da mata
 ha furnas incríveis
 que em coisas terríveis
 nos fazem pensar:
 - Ali dorme o Pai-da-Mata
 - Ali é a casa das caiporas
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Meu Deus ! Já deixamos
 a praia tão longe…
 No entanto avistamos
 bem perto outro mar...
Danou-se ! Se move,
 se arqueia, faz onda...
 Que nada ! É um partido
 já bom de cortar...
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Cana caiana,
 cana rôxa,
 cana fita,
 cada qual a mais bonita,
 todas boas de chupar...
 - Adeus morena do cabelo cacheado !
 - Ali dorme o Pai-da-Matta !
 - Ali é a casa das caiporas
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...

A MULA DE PADRE

Um dia no engenho,
Já tarde da noite
Que estava tão preta
Como carvão...
A gente falava de assombração:

— O avô de Zé Pinga-Fogo
Amanheceu morto na mata
Com o peito varado
Pela canela do Pé-de-Espeto!
— O cachorro de Brabo Manso
Levou, sexta-feira passada,
Uma surra das caiporas!
— A Mula de Padre quis beber o sangue
Da mulher de Chico Lolão...

Na noite preta como carvão
A gente falava de assombração!
Lá em baixo a almanjarra,
A rara almanjarra,
Gemia e rangia
Oue o Engenho Alegria
É bom moedor...

Eh Andorinha!
Eh Moça-Branca!
Eh Beija-Flor. . .

Pela bagaceira
Os bois ruminavam
E as éguas pastavam
Esperando a vez
De entrar no rojão...
Foi quando se deu
A coisa esquisita:
Mordendo, rinchando,
As pôpas e aos pulos
Se pondo de pé
Com artes do cão,
Surgiu uma besta sem ser dali não...

— Atallia a bicha, Baraúna!
— Sustenta o laço, Maracanã!
E a besta agarrada
Entrou na almanjarra,
Tocou-se-lhe a peia
Até de manhã ...

E depois que ela foi solta
Entupiu no oco do mundo!
Num abrir e fechar d'olhos
A maldita se encantou...

De tardinha.
Gente vinda
Da cidade
Trouxe a nova
De que a ama
De seu padre
Serrador
Amanhecera tão surrada
Que causa compaixão!

.....................................
Na noite tão preta como carvão
A gente falava de assombração.

CARNAVAL DO RECIFE

Meteram uma peixeira no bucho de Colombina
que a pobre, coitada, a canela esticou!
Deram um rabo-de-arraia em Arlequim,
um clister de sebo quente em Pierrô!

E somente ficaram os máscaras da terra:
Parafusos, Mateus e Papangus...
e as Bestas-Feras impertinentes,
os Cabeções e as Burras-Calus...
realizando, contentes, o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo!

- Mulata danada, lá vem Quitandeira,
lá vem Quitandeira que tá de matá!

- Olha o passso do siricongado!
- Olha o passo da siriema!
- Olha o passo do jaburu!
E a Nação-de-Cambinda-Velha!
E a Nação-de-Cambinda Nova!
E a Nação-de-Leão-Coroado!

- Danou-se, mulata, que o queima é danado!
- Eu quero virá arcanfô!
Que imensa poesia nos blocos cantando:
"Todo mundo emprega
grande catatau,
pra ver se me pega
o teu olho mal!"
- Viva o Bloco das Flores! Os Batutas!
 Apois-fum!
(Como é brasileira a verve desse nome: Apois-fum!)
E o Clube do Pão Duro!
(É mesmo duro de roer o pão do pobre!)

- Lá vem o homem dos três cabaços na vara!
"Quem tirar a polícia prende!"

- Eh, garajuba!
Carnavá, meu carnavá,
tua alegria me consome...
Chegô o tempo das muié largá os home!
Chegô o tempo das muié largá os home!
Chegou lá nada...

Chegou foi o tempo delas pegarem os homens,
porque chegou o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo!

- Pega o pirão, esmorecido!

"OROPA, FRANÇA E BAHIA"

Num sobradão arruinado,
Tristonho, mal-assombrado,

Que dava fundos prá terra.
( "para ver marujos,
Ttituliluliu!
ao desembarcar").

...Morava Manuel Furtado,
português apatacado,
com Maria de Alencar!

Maria, era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...

A vida de Manuel,
que louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de "Oropa, França e Bahia"!

— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota , Maria.
Essas naus foram vintena
Que eu herdei da minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais a trocaria!

Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra Estrela,
perfumes de benjoim...

Nada.
A mulata só queria
que seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
prá ela ir ver essas terras
"De Oropa, França e Bahia"...

— Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só prá tu te distraire
desse pensamento ruim...
— Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!

"Ó lua que alumias
esse mundo de meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.

"Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são"...
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente no pilão...

Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah! Seu Manuel, isso chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.

— "Onde vais mulhé?"
— Vou me daná no carrosé!
— Tu não vais, mulhé,
— mulhé, você não vai lá..."

Maria atirou-se n'água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido da minha tia !
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!

Nadavam de mar em fora...
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia...
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!

De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!

E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?

— continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!

— As eternas naus do Sonho,
de "Oropa, França e Bahia"...

MARACATU

Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...

- Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queijares e dentes
De maracajás...

- Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?

A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...

- Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?

FILOSOFIA

Hora de comer - comer!
 Hora de dormir - dormir!
Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!