domingo, 2 de setembro de 2012

Fernando Sabino (Entre dois amores ...melhor ficar o dito pelo não dito)

 Era uma voz angustiada que o chamava lá embaixo na rua, tirando-o do sono. Acendeu a luz, olhou o relógio: uma hora da madrugada.

- Você está sentindo alguma coisa? - a mulher voltou-se na cama, estremunhada.

- Estão me chamando lá na rua. Acho que é o Gil. - Foi até a janela. Era o Gil, acenando-lhe freneticamente da calçada.

- Joga a chave!

Jogou a chave dentro de um maço de cigarros vazio. Depois vestiu o roupão e foi esperar na sala.

Em pouco o Gil irrompia apartamento adentro, esbaforido:

- Entrei numa fria do diabo. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair dessa.

- Matou alguém? - disse o advogado, já alerta par as atenuantes. Só que não militava no crime, apenas no cível.

- Estou perdido - gemeu o Gil, sem ouvir - Me arranja pelo menos um troço para beber. Aceitou um conhaque. - E contou então a sua história. A mulher tinha ido fazer uma estação de águas em Poços de Caldas e levara as crianças. Aproveitou a folga para dar uma bordejada por aí, repassar um velho caso... Pois, naquela noite vinha muito fagueiro em companhia do velho caso quando o carro, também velho, ao entrar na praia de Botafogo, derrapou e bateu de cheio noutro carro. Gritos, confusão, desespero:

- Minha amiga não teve nada, só o susto. Meti a desgraçada num táxi para que ela se mandasse dali, fosse para o diabo. Eu também não tive nada, a não ser uma pancada no joelho, que posso contar ter sido no futebol de praia. Mas o outro carro! Ficou lá arrebentado. A impressão que tenho é que quem estava lá dentro vai ter de ser enterrado com carro e tudo. Como cheguei até aqui, só Deus sabe.

- Calma que tudo se arranja. Você não devia ter fugido, mas agora não interessa. O jeito é a gente ir até lá para ver o que houve.

Avisou a mulher, enquanto se vestia.

- O Gil se meteu numa fria. Sofreu um acidente.

“Isso tudo foi combinado” - pensava a mulher: - “esses dois vão pra farra”.

 No local do desastre deram com os dois carros meio destroçados, em meio a pequeno grupo de curiosos. Nenhum ferido, nenhum cadáver pudera observar à distância. A menos que já tivessem sido removidos.

- Conheço o comissário deste distrito. Vamos lá para ajeitar as coisas. Na delegacia os dois passaram por um senhor agitado, enraivecido, andando de um lado para o outro. O comissário informou-lhes que tomara conhecimento do desastre. E olhava para o Gil, penalizado.

- Então foi o senhor, é? Esse homem que vocês viram aí fora é o dono do outro carro. Está uma fera. O carro dele virou farinha. E o pior é que ele é coronel, parece. Daí pra cima. Disse que não sai daqui enquanto não resolver o caso. Como não houve vítimas...

- Não houve vítimas! - os dois respiraram, aliviados, embora pairasse no ar, ameaçadora, a patente militar mencionada. Antes que perguntassem o que estava pretendendo o coronel, este irrompeu na sala:

- Como é, comissário? O senhor não vai fazer nada? Não vai tomar nenhuma providência? Quem é esse homem? O carro é dele?

- O carro é aqui do meu amigo - interveio o advogado, conciliador. - Sou advogado dele. O senhor tenha calma, coronel, não precisa se exaltar, que tudo se arranja. Graças a Deus só houve danos materiais.

- Danos materiais? - e o coronel arregalava os olhos, fora de si, muito além da compreensão.

- Tenha calma, coronel. Com calma tudo se resolve. Talvez a gente possa chegar a um acordo.

- Acordo?... - balbuciou o coronel, tão transtornado que o outro, precavido, deu um pulo para trás. -  O senhor falou em acordo?

E respirou fundo, erguendo os braços dramaticamente:

- Acordo! Meu Deus, há duas horas estou esperando ouvir esta palavra bendita! Tomou o advogado pelo braço com a maior familiaridade e o levou a um canto, para lhe explicar a situação. Servia numa unidade em São Paulo. Tivera de vir ao Rio a serviço, apenas por um dia, e fizera crer à mulher que viera de ônibus - ele tinha horror de avião, assim ficaria tranqüila.

- E vim de carro, porque resolvi trazer uma velha amiga... O senhor compreende, não? Felizmente ela não sofreu nada. Ninguém sofreu nada, e não se sabe de quem foi a culpa, de modo que um acordo... Se por acaso minha mulher... Meu Deus, o senhor não conhece minha mulher. Faço qualquer acordo! Qualquer acordo! Como no verso de Bandeira, só falta o coronel apoplético, sair gritando: “Je vois des anges! Je vois des anges!” - O advogado lhe disse mais uma vez que não precisava se exaltar, estava tudo resolvido.

- O acordo está feito. Uma mão lava a outra.

O coronel deixou escapar sua satisfação num sorriso:

- Isso mesmo.

- Fica o dito pelo não dito - insistiu o outro.

- O dito pelo não dito. Dito e feito! Ou, melhor dizendo - e o coronel piscou um olho, - elas por elas.
 
Fonte:
Moacir Amâncio (organizador). Cronistas do Estadão. SP: O Estado de São Paulo.

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