Era uma voz angustiada que o chamava lá embaixo na rua, tirando-o do sono. Acendeu a luz, olhou o relógio: uma hora da madrugada.
- Você está sentindo alguma coisa? - a mulher voltou-se na cama, estremunhada.
- Estão me chamando lá na rua. Acho que é o Gil. - Foi até a janela. Era o Gil, acenando-lhe freneticamente da calçada.
- Joga a chave!
Jogou a chave dentro de um maço de cigarros vazio. Depois vestiu o roupão e foi esperar na sala.
Em pouco o Gil irrompia apartamento adentro, esbaforido:
- Entrei numa fria do diabo. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair dessa.
- Matou alguém? - disse o advogado, já alerta par as atenuantes. Só que não militava no crime, apenas no cível.
- Estou perdido - gemeu o Gil, sem ouvir - Me arranja pelo menos um troço para beber. Aceitou um conhaque. - E contou então a sua história. A mulher tinha ido fazer uma estação de águas em Poços de Caldas e levara as crianças. Aproveitou a folga para dar uma bordejada por aí, repassar um velho caso... Pois, naquela noite vinha muito fagueiro em companhia do velho caso quando o carro, também velho, ao entrar na praia de Botafogo, derrapou e bateu de cheio noutro carro. Gritos, confusão, desespero:
- Minha amiga não teve nada, só o susto. Meti a desgraçada num táxi para que ela se mandasse dali, fosse para o diabo. Eu também não tive nada, a não ser uma pancada no joelho, que posso contar ter sido no futebol de praia. Mas o outro carro! Ficou lá arrebentado. A impressão que tenho é que quem estava lá dentro vai ter de ser enterrado com carro e tudo. Como cheguei até aqui, só Deus sabe.
- Calma que tudo se arranja. Você não devia ter fugido, mas agora não interessa. O jeito é a gente ir até lá para ver o que houve.
Avisou a mulher, enquanto se vestia.
- O Gil se meteu numa fria. Sofreu um acidente.
“Isso tudo foi combinado” - pensava a mulher: - “esses dois vão pra farra”.
No local do desastre deram com os dois carros meio destroçados, em meio a pequeno grupo de curiosos. Nenhum ferido, nenhum cadáver pudera observar à distância. A menos que já tivessem sido removidos.
- Conheço o comissário deste distrito. Vamos lá para ajeitar as coisas. Na delegacia os dois passaram por um senhor agitado, enraivecido, andando de um lado para o outro. O comissário informou-lhes que tomara conhecimento do desastre. E olhava para o Gil, penalizado.
- Então foi o senhor, é? Esse homem que vocês viram aí fora é o dono do outro carro. Está uma fera. O carro dele virou farinha. E o pior é que ele é coronel, parece. Daí pra cima. Disse que não sai daqui enquanto não resolver o caso. Como não houve vítimas...
- Não houve vítimas! - os dois respiraram, aliviados, embora pairasse no ar, ameaçadora, a patente militar mencionada. Antes que perguntassem o que estava pretendendo o coronel, este irrompeu na sala:
- Como é, comissário? O senhor não vai fazer nada? Não vai tomar nenhuma providência? Quem é esse homem? O carro é dele?
- O carro é aqui do meu amigo - interveio o advogado, conciliador. - Sou advogado dele. O senhor tenha calma, coronel, não precisa se exaltar, que tudo se arranja. Graças a Deus só houve danos materiais.
- Danos materiais? - e o coronel arregalava os olhos, fora de si, muito além da compreensão.
- Tenha calma, coronel. Com calma tudo se resolve. Talvez a gente possa chegar a um acordo.
- Acordo?... - balbuciou o coronel, tão transtornado que o outro, precavido, deu um pulo para trás. - O senhor falou em acordo?
E respirou fundo, erguendo os braços dramaticamente:
- Acordo! Meu Deus, há duas horas estou esperando ouvir esta palavra bendita! Tomou o advogado pelo braço com a maior familiaridade e o levou a um canto, para lhe explicar a situação. Servia numa unidade em São Paulo. Tivera de vir ao Rio a serviço, apenas por um dia, e fizera crer à mulher que viera de ônibus - ele tinha horror de avião, assim ficaria tranqüila.
- E vim de carro, porque resolvi trazer uma velha amiga... O senhor compreende, não? Felizmente ela não sofreu nada. Ninguém sofreu nada, e não se sabe de quem foi a culpa, de modo que um acordo... Se por acaso minha mulher... Meu Deus, o senhor não conhece minha mulher. Faço qualquer acordo! Qualquer acordo! Como no verso de Bandeira, só falta o coronel apoplético, sair gritando: “Je vois des anges! Je vois des anges!” - O advogado lhe disse mais uma vez que não precisava se exaltar, estava tudo resolvido.
- O acordo está feito. Uma mão lava a outra.
O coronel deixou escapar sua satisfação num sorriso:
- Isso mesmo.
- Fica o dito pelo não dito - insistiu o outro.
- O dito pelo não dito. Dito e feito! Ou, melhor dizendo - e o coronel piscou um olho, - elas por elas.
- Você está sentindo alguma coisa? - a mulher voltou-se na cama, estremunhada.
- Estão me chamando lá na rua. Acho que é o Gil. - Foi até a janela. Era o Gil, acenando-lhe freneticamente da calçada.
- Joga a chave!
Jogou a chave dentro de um maço de cigarros vazio. Depois vestiu o roupão e foi esperar na sala.
Em pouco o Gil irrompia apartamento adentro, esbaforido:
- Entrei numa fria do diabo. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair dessa.
- Matou alguém? - disse o advogado, já alerta par as atenuantes. Só que não militava no crime, apenas no cível.
- Estou perdido - gemeu o Gil, sem ouvir - Me arranja pelo menos um troço para beber. Aceitou um conhaque. - E contou então a sua história. A mulher tinha ido fazer uma estação de águas em Poços de Caldas e levara as crianças. Aproveitou a folga para dar uma bordejada por aí, repassar um velho caso... Pois, naquela noite vinha muito fagueiro em companhia do velho caso quando o carro, também velho, ao entrar na praia de Botafogo, derrapou e bateu de cheio noutro carro. Gritos, confusão, desespero:
- Minha amiga não teve nada, só o susto. Meti a desgraçada num táxi para que ela se mandasse dali, fosse para o diabo. Eu também não tive nada, a não ser uma pancada no joelho, que posso contar ter sido no futebol de praia. Mas o outro carro! Ficou lá arrebentado. A impressão que tenho é que quem estava lá dentro vai ter de ser enterrado com carro e tudo. Como cheguei até aqui, só Deus sabe.
- Calma que tudo se arranja. Você não devia ter fugido, mas agora não interessa. O jeito é a gente ir até lá para ver o que houve.
Avisou a mulher, enquanto se vestia.
- O Gil se meteu numa fria. Sofreu um acidente.
“Isso tudo foi combinado” - pensava a mulher: - “esses dois vão pra farra”.
No local do desastre deram com os dois carros meio destroçados, em meio a pequeno grupo de curiosos. Nenhum ferido, nenhum cadáver pudera observar à distância. A menos que já tivessem sido removidos.
- Conheço o comissário deste distrito. Vamos lá para ajeitar as coisas. Na delegacia os dois passaram por um senhor agitado, enraivecido, andando de um lado para o outro. O comissário informou-lhes que tomara conhecimento do desastre. E olhava para o Gil, penalizado.
- Então foi o senhor, é? Esse homem que vocês viram aí fora é o dono do outro carro. Está uma fera. O carro dele virou farinha. E o pior é que ele é coronel, parece. Daí pra cima. Disse que não sai daqui enquanto não resolver o caso. Como não houve vítimas...
- Não houve vítimas! - os dois respiraram, aliviados, embora pairasse no ar, ameaçadora, a patente militar mencionada. Antes que perguntassem o que estava pretendendo o coronel, este irrompeu na sala:
- Como é, comissário? O senhor não vai fazer nada? Não vai tomar nenhuma providência? Quem é esse homem? O carro é dele?
- O carro é aqui do meu amigo - interveio o advogado, conciliador. - Sou advogado dele. O senhor tenha calma, coronel, não precisa se exaltar, que tudo se arranja. Graças a Deus só houve danos materiais.
- Danos materiais? - e o coronel arregalava os olhos, fora de si, muito além da compreensão.
- Tenha calma, coronel. Com calma tudo se resolve. Talvez a gente possa chegar a um acordo.
- Acordo?... - balbuciou o coronel, tão transtornado que o outro, precavido, deu um pulo para trás. - O senhor falou em acordo?
E respirou fundo, erguendo os braços dramaticamente:
- Acordo! Meu Deus, há duas horas estou esperando ouvir esta palavra bendita! Tomou o advogado pelo braço com a maior familiaridade e o levou a um canto, para lhe explicar a situação. Servia numa unidade em São Paulo. Tivera de vir ao Rio a serviço, apenas por um dia, e fizera crer à mulher que viera de ônibus - ele tinha horror de avião, assim ficaria tranqüila.
- E vim de carro, porque resolvi trazer uma velha amiga... O senhor compreende, não? Felizmente ela não sofreu nada. Ninguém sofreu nada, e não se sabe de quem foi a culpa, de modo que um acordo... Se por acaso minha mulher... Meu Deus, o senhor não conhece minha mulher. Faço qualquer acordo! Qualquer acordo! Como no verso de Bandeira, só falta o coronel apoplético, sair gritando: “Je vois des anges! Je vois des anges!” - O advogado lhe disse mais uma vez que não precisava se exaltar, estava tudo resolvido.
- O acordo está feito. Uma mão lava a outra.
O coronel deixou escapar sua satisfação num sorriso:
- Isso mesmo.
- Fica o dito pelo não dito - insistiu o outro.
- O dito pelo não dito. Dito e feito! Ou, melhor dizendo - e o coronel piscou um olho, - elas por elas.
Fonte:
Moacir Amâncio (organizador). Cronistas do Estadão. SP: O Estado de São Paulo.
Moacir Amâncio (organizador). Cronistas do Estadão. SP: O Estado de São Paulo.
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