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domingo, 16 de outubro de 2016

Lenda do Moçambique (Lenda do Rato e do Caçador)

Antigamente havia um caçador que usava armadilhas, abrindo covas no chão. Ele tinha uma mulher que era cega e fizera com ela três filhos. Um dia, quando visitava as suas armadilhas, encontrou-se com um leão:

"Bom dia, senhor! Que fazes por aqui no meu território?" (perguntou o leão)

"Ando a ver se as minhas armadilhas apanharam alguma coisa", respondeu o homem.

"Tu tens de pagar um tributo, pois esta região pertence-me. O primeiro animal que apanhares é teu e o segundo é meu e assim sucessivamente".

O homem concordou e convidou o leão a visitar as armadilhas, uma das quais tinha uma presa, uma gazela. Conforme o combinado, o animal ficou para o dono das armadilhas. Passado algum tempo, o caçador foi visitar os seus familiares e não voltou no mesmo dia. A mulher, necessitando de carne, resolveu ir ver se alguma das armadilhas tinha presa. Ao tentar encontrar as armadilhas, caiu numa delas com a criança que trazia ao colo. O leão que estava à espreita entre os arbustos, viu que a presa era uma pessoa, e ficou à espera que o caçador viesse para este lhe entregar o animal, conforme o contrato.

No dia seguinte, o homem chegou a sua casa e não encontrou nem a mulher nem o filho mais novo. Resolveu, então, seguir as pegadas que a sua mulher tinha deixado, que o guiaram até à zona das armadilhas. Quando aí chegou, viu que a presa do dia era a sua mulher e o filho. O leão, lá de longe, exclamou ao ver o homem a aproximar-se:

"Bom dia amigo! Hoje é a minha vez! A armadilha apanhou dois animais ao mesmo tempo. Já tenho os dentes afiados para os comer!"

"Amigo leão, conversemos sentados. A presa é a minha mulher e o meu filho."

"Não quero saber de nada. Hoje a caçada é minha, como rei da selva e conforme o combinado", protestou o leão.

De súbito, apareceu o rato.

"Bom dia titios! O que se passa?", disse o pequeno animal.

"Este homem está a recusar-se a pagar o seu tributo em carne, segundo o combinado." Respondeu o leão.

"Titio, se concordaram assim, porque não cumpres? Pode ser a tua mulher ou o teu filho, mas deves entregá-los. Deixa isso e vai-te embora", disse o rato ao homem.

Muito contrariado, o caçador retirou-se do local da conversa, ficando o rato, a mulher, o filho e o leão.

"Ouve, tio leão, nós já convencemos o homem a dar-te as presas. Agora deves-me explicar como é que a mulher foi apanhada. Temos que experimentar como é que esta mulher caiu na armadilha" (e levou o leão para perto de outra armadilha). Ao fazer a experiência, o leão caiu na armadilha. Então, o rato salvou a mulher e o filho, mandando-os para casa.

A mulher, vendo-se salva de perigo, convidou o rato a ir viver para a sua casa, comendo tudo o que ela e a sua família comiam. Foi a partir daqui que o rato passou a viver em casa do homem, roendo tudo quanto existe...

Fonte:
Contos de Encantar

sábado, 15 de outubro de 2016

Lenda do Moçambique (A Lenda do Coelho)

Houve um tempo em que não chovia e os animais estavam a morrer de muita sede. Então, resolveram todos se reunir a fim de solucionar o problema. O coelho recusou-se a participar das tentativas de encontrar água. Os outros animais, cavaram, cortaram árvores, até que, uma tartaruga encontrou água, suficiente para formar uma pequena lagoa. Fizeram logo uma festa, tocaram batuque durante três semanas, pois não sentiriam mais sede.

O leão sugeriu que não deixassem o coelho beber a água deles e todos concordaram. Quando os animais saíram para a caça, deixaram a gazela tomar conta da lagoa. Sentindo sede, o coelho colocou mel dentro de uma cabaça, foi até à gazela e chamou-a. A gazela perguntou quem era e o que queria. O coelho respondeu que lhe trouxera mel de presente. Sem saber o que era o mel, o coelho convenceu que ela provasse. Ela gostou tanto que implorou mais ao coelho. Este, então, lhe disse que ela ainda não havia sentido todo o sabor do mel, pois isso só aconteceria se ela o comesse atada a uma árvore.

Dessa forma, a gazela deixou-se amarrar. O coelho não deu mais mel à gazela e, ainda, foi à lagoa beber água e tomar banho, sujando toda a lagoa. Quando chegaram os outros animais, repreenderam a gazela e puseram o macaco de guarda.

No dia seguinte, o coelho, novamente, chamou o macaco e este respondeu que não perdesse o seu tempo, pois todos os seus artifícios já eram conhecidos. O coelho disse que era uma pena, pois trazia consigo uma coisa muito saborosa, e fingiu ir-se embora. O macaco pediu para ver ao menos do que se tratava. O coelho passou um pouco de mel em seus lábios e o macaco ficou maravilhado com o sabor. Quando o macaco implorou mais um pouco, o coelho disse-lhe que não poderia dar-lhe, pois tinha medo que depois ele o seguisse para descobrir onde ele obtinha o mel. O macaco jurou que não faria isso e o coelho pediu-lhe, como prova, que o deixasse atar-lhe a uma árvore.

Louco pelo mel, o macaco permitiu, repetindo-se com ele o mesmo que com a gazela. Ao retornarem, os animais ficaram enfurecidos. O mesmo sucedeu com o búfalo, o hipopótamo, o elefante e com os demais bichos, deixando o leão desesperado. Até que a tartaruga ofereceu-se para ficar de guarda. Ela, então, resolveu ficar de vigia dentro da lagoa, escondendo-se debaixo da água.

Chegando à lagoa, o coelho pensou que os outros tivessem desistido de enfrentá-lo. Entrou na lagoa e fez a festa. Quando ia sair da água, a tartaruga agarrou-lhe a perna. Ele implorava que a tartaruga lhe largasse a perna e ela nada. Quando os outros animais retornaram, ficaram muito contentes, julgando o coelho e condenando-o à morte.

O condenado exigiu o seu direito a uma última vontade: ser executado ao colo da mulher do chefe. No momento em que ia atirar uma seta, o coelho começou a fazer gracinhas, fazendo-a rir e errar o alvo, acertando na mulher do chefe, possibilitando a fuga do coelho. Por isso, todos os animais o procuram, a fim de executa-lo. Desde então, têm-se visto o coelho, sempre sozinho, correndo de um lado para o outro, aos saltos e aos ziguezagues.

Fonte:
Contos de Encantar

sábado, 23 de março de 2013

Ungulani Ba Ka Khosa (1957)

Escritor moçambicano, de nome verdadeiro Francisco Esau Cossa, nascido a 1 de Agosto de 1957, em Inhaminga, província de Sofala.

Khosa fez o ensino primário na provincia de Sofala e o ensino secundário, parte em Lourenço Marques e parte na Zambézia. Em Maputo tira o bacharelato em História e Geografia na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane e exerceu a função de professor do ensino secundário.

Em 1982 trabalha para o Ministério da Educação durante um ano e meio. Seis meses depois de ter saído do Ministério da Educação é convidado para trabalhar na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), da qual é membro.

Iniciou a sua carreira como escritor com a publicação de vários contos e participou na fundação da revista Charrua da AEMO.

Foi a realidade vivida em Niassa e Cabo Delgado, onde existiam as zonas de campos de reeducação que eram mal organizadas, que o fez inclinar mais para a literatura e, por isso, sentiu a necessidade de escrever para falar e expor essa realidade para as pessoas

Tem publicadas a seguintes obras: Ualalapi (1987), Orgia dos Loucos (1990), Histórias de Amor e Espanto (1999) e No Reino dos Abutres (2002).

Centrada sobre a crueldade e despotismo de Ngungunyane, o último Imperador de Gaza, Ualalapi , a primeira das obras citadas, foi distinguida, em 1990, com o Grande Prémio da Ficção Narrativa; em 1994 com o Prémio Nacional de Ficção e, em 2002, foi considerada como um dos melhores livros africanos do século XX.

Ungulani Ba Ka Khosa por Ungulani:

"Os editores têm sempre a mania de exigirem uma pequena resenha das nossas vidas. Somos obrigados a abrir algumas estradas e enveredarmos por carreiros que só a nós nos diz respeito. É assim a vida. Mas vamos a ela: Nasci em Inhaminga, Distrito de Cheringoma (província de Sofala) a um de Agosto do ano 57. Nunca assentei arraiais por largo tempo num determinado local. Andei pelo país inteiro (exceptuando Tete). De formação tenho um bacharelato que sustenta o Ungulani. De livros posso mencionar Ualalapi, Orgia dos Loucos, e Estórias de Amor e Espanto. Pronto. Cá está parte do meu percurso. "

(contra-capa de No Reino dos Abutres, Imprensa Universitária, 2002, Maputo)

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaAfricana/Ungulani_Ba_Ka_Khosa.htm

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Macaco)

O coelho e o macaco eram muito amigos.

Um dia, o coelho disse: "Amigo, vamos abrir uma machamba de amendoim". "Está bem", respondeu o macaco.

Havia muita fome na povoação.

Quando começaram a abrir o campo, o macaco ria, saltava, brincava e trabalhava pouco. O coelho tirou o capim, cavou, semeou quase toda a machamba praticamente sozinho.

Chegou a altura da colheita. O coelho tirava o amendoim e punha no saco. O macaco tirava-o e comia imediatamente.

O coelho ficou furioso e resolveu castigar o companheiro porque se continuassem daquela forma, estava a ver que não tiraria qualquer proveito do seu trabalho. Aproveitou então uma altura em que o macaco estava a saborear uma grande quantidade de amendoim e enterrou-lhe a cauda de forma a que não pudesse tirá-la.

Na altura de largar o trabalho, disse o coelho: "Ó amigo macaco, hoje tenho para o jantar amendoim com carne. Aparece".

O coelho fingiu que tinha muita pressa e foi-se embora logo daí. O macaco tentou também ir-se embora e viu que estava preso pela cauda.

O macaco gritou chamando por ajuda. Passado algum tempo, apareceu o coelho todo ofegante. "O que foi, amigo macaco?" "Tira-me daqui", pediu o macaco. O coelho fingiu que o ajudava, fez algum esforço. De repente, desistiu: "Paciência, amigo macaco, não há nada a fazer, eu tenho pressa, o jantar está à espera. A cauda está muito enterrada, só cortando-a, senão ficas aí toda a noite e nunca se sabe quando é que passa por aqui o leopardo..." Quando o macaco ouviu o nome do leopardo, pôs-se aos gritos e suplicou ao coelho que lhe cortasse a cauda. "Prefiro viver sem a cauda do que ser comido..." Era o que o coelho queria. Cortou-lhe a cauda e levou-a consigo.

Quando chegou a casa, cozeu-a juntamente com o amendoim que ia oferecer ao macaco. Este, apesar das dores, como era comilão, apresentou-se em casa do coelho para o jantar.

Começou a comer com sofreguidão até verificar que aquela carne não passava da sua própria cauda. Ficou furioso, quis agredir o coelho; este fugiu. A lamentar-se com as dores, foi-se embora.

Desde esse dia que o macaco e o coelho não cultivam juntos.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Sapo)

O coelho e o sapo eram amigos.

Um dia resolveram os dois ir roubar marfim à Administração.

Depois do roubo, resolveram passar pela povoação do régulo para comemorar o feito e começaram a beber até não poderem mais.

Como toda a gente sabe, o sapo está sempre de boca aberta e a garganta a abanar. Quando o coelho viu aquilo, pensou logo numa forma de se livrar dele e ficar com o produto do roubo e começou a dizer em voz alta:

– "Então sapo, decides-te ou não a contar o que te sufoca a garganta?"

O régulo e os seus conselheiros disseram entre eles: "Nós sabemos que desapareceu o marfim da Administração. Vamos ficar atentos, o ladrão pode estar perto".

O coelho continuava:

– "Anda sapo, tens vergonha ou medo? Não disseste que não aguentavas mais? Não disseste que te bastava beber dois copos para te decidires? Então, sapo?"

O sapo estava atordoado, não sabia onde é que o coelho queria chegar.

O régulo mandou um auxiliar para perguntar:

– "Ei vocês, o que é que o sapo tem para contar?"

– "Nada, nada, senhor chefe", apressou-se a responder o sapo. Mas estava atrapalhado porque tinha bebido demais e trocava as palavras. Além disso, a presença do auxiliar do régulo metia-lhe medo por causa do roubo do marfim. O sapo olhou para o coelho como a pedir para ser ele a explicar o que se passava:
– "Anda coelho, tu és esperto, responde aqui ao senhor chefe".

O coelho disse:

– "Eu não posso dizer, o meu amigo pediu segredo... é melhor perguntar a ele próprio". E virando-se para o sapo:

– "Então, sapo, vais continuar com o problema entalado na garganta? Resolves ou não falar no roubo...".

O régulo, que já estava à espera disso, disse:

– "Eu já sabia que era o sapo quem tinha roubado o marfim do senhor Administrador. Vamos prendê-lo e levá-lo ao rei para ser julgado".

Só então é que o sapo percebeu que o coelho fizera tudo aquilo para se livrar dele e ficar com o marfim só para si.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (O Coelho e o Leão)

O coelho e o leão eram amigos.

Um dia, o leão foi a casa do coelho para o convidar a acompanhá-lo a casa dos futuros sogros como seu ajudante.

No fundo, o que o leão queria era humilhar o coelho e acabar de uma vez para sempre com as suas malandrices. O coelho aceitou ir com ele.

No dia combinado, partiram os dois. A meio do caminho, disse o leão apontando para as folhas de um arbusto: "Olha, coelho, se, por acaso, durante a refeição, eu me queimar com a comida e gritar por remédio, já sabes, vens a correr e colhes o que te pedir deste arbusto". O coelho, sem se perturbar, disse que sim. No entanto, tratou de se prevenir porque lhe cheirou logo a uma armadilha. Deixou cair uma faca e continuou viagem com o amigo. Já as casas estavam à vista quando o coelho exclamou: "Oh! mas eu não trago aqui a minha faca. Voltemos para procurá-la". Ele sabia que o leão não aceitaria a ideia de ter de voltar só para procurar pela faca. "Vai sozinho. Não estou para perder tempo indo procurar por uma faca que não se sabe onde a perdeste", respondeu-lhe o leão. O coelho queria exactamente aquilo. Correu logo e foi para junto do arbusto. Cortou folhas, raízes, partes de tronco. Secou algumas folhas, fumou outras e o mesmo fez com o caule e as raízes.

Quando chegou a casa, encontrou o leão a conferenciar com os futuros sogros mais a rapariga pretendida. O coelho chegou a tempo de ouvir o pai da rapariga dizer: "Não pense senhor leão que é o único. Por isso eu darei a minha filha ao pretendente que demonstrar maior esperteza. O tempo que ficar cá há-de estar em constante prova".

Durante o almoço, o leão começou a gritar: "Salva-me amigo". O coelho percebeu logo o que o leão queria, correu e foi buscar tudo quanto tinha trazido do arbusto. Apresentou primeiro as folhas. O leão pediu: "Quero-as fumadas, trouxeste verdes não prestam". O coelho apresentou de imediato as folhas fumadas. O leão percebeu que o coelho não tinha caído na armadilha, mas experimentou pedir cinzas do caule do arbusto. O coelho trazia-as. O leão pediu as raízes cortadas às rodelas. O coelho trazia-as. Ao fim e ao cabo, o coelho trazia tudo quanto o leão quis pedir. Não teve outro remédio senão fazer um chá com tudo aquilo e toma-lo. Enquanto isso, o coelho saboreava a comida dos dois.

À noite, a mãe da rapariga apresentou uma boa esteira e uma casca de árvore. O coelho, que sabia que aquilo fazia parte das provas para casar com a rapariga, aceitou logo a casca de árvore, pensando o leão que aquele gesto era de respeito para com ele. O leão disse para consigo: "Ainda bem que o miúdo aceitou a casca de árvore, assim não se discute quem vai dormir na esteira..."

Durante a noite, enquanto dormiam, a esteira onde se encontrava o leão foi-se transformando em cordas que se enrolavam no leão, manie-tando-o totalmente. O coelho, esse, dormia profundamente na sua casa de árvore.

No dia seguinte, o leão acordou ridiculamente amarrado e envergonhado com a figura que estava a fazer perante a sogra e fugiu para não voltar. O coelho foi recebido como genro e casou com a rapariga.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rozário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Leão)

O coelho e o leão eram amigos.

O coelho indicava onde estavam os animais e o leão ia caçá-los.

Um dia disse o coelho: 

- "Sabes amigo, arranjei uma maneira de caçar animais sem precisares de ter de caminhar".

- "Como assim?" perguntou o leão admirado. 

"Olha, na base da montanha é o lugar mais indicado. Tu ficas cá em baixo num lugar que te vou indicar e eu vou lá acima espantá-los. Verás que até os apanhas com os olhos fechados". 

O leão concordou satisfeito e até achou graça a essa de poder apanhar os animais de olhos fechados.

No dia conbinado, lá foram. O coelho colocou o leão num lugar por ele escolhido e foi lá acima onde deslocou uma grande pedra. Esta começou a rolar com estrondo. Quando o pedregulho se aproximou do lugar onde estava o leão, o coelho gritou: 

- "Fecha os olhos para os animais não verem o seu brilho. Apanha-os todos". 

O leão assim fez e apanhou com o pedregulho na cabeça, tendo ficado esmagado. 

O coelho foi-se embora.

Desde esse dia, os leões não gostam do coelho.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Cágado)

O coelho e o cágado eram amigos.

Certo dia, combinaram semear, juntos, feijão jugo.

Quando o feijão ficou maduro, colheram-no e foram cozê-lo.

Enquanto preparavam a refeição, o coelho disse: "Amigo, lembrei-me agora que tinha de ir dar um recado a uma pessoa. Não me demoro, volto já". O cágado prometeu que esperaria por ele.

Tendo-se afastado uns metros, o coelho começou a atirar pedras contra o companheiro. Este, vendo-se numa situação inesperada em que corria o perigo de apanhar uma pedrada, fugiu e deixou abandonada a panela do feijão. Então, o coelho aproximou-se e comeu tudo sozinho. Depois espalhou as cascas à volta. Quando o cágado regressou, passado o medo, o coelho mostrou-se aborrecido. O cágado pediu desculpas e disse: "Se calhar foram os macacos". "Se calhar", respondeu o coelho.

Nos dias seguintes, o coelho repetiu a cena e foi comendo sozinho o feijão.

Um dia, o cágado que já havia muito que andava desconfiado daquelas saídas do coelho à mesma hora, fingiu que fugia quando o coelho começou a atirar-lhe pedras. Escondeu-se por detrás de uns arbustos e observou atônito quem era afinal o autor das pedradas. E resolveu por sua vez pregar-lhe uma partida. Disse o cágado: "Olha amigo, desde que colhemos o feijão, não nos lembrámos dos espíritos dos nossos antepassados. Eles habitam este riacho. Se calhar até são eles quem nos anda a atirar pedradas. Atiremos, pois, algum feijão para o rio". O coelho, que respeitava as crenças e ficava cheio de medo quando se falava em espíritos, concordou com o cágado e atiraram todo o feijão à água. O cágado, que tem possibilidades de viver na água e fora dela, entrou para dentro do rio e comeu o feijão todo. A cena repetiu-se nos dias seguintes.

O coelho não estava a gostar da situação. Desconfiado, enfiou um dos feijões num anzol. Quando o cágado mergulhou para comer o feijão, comeu o que tinha o anzol e o coelho pescou-o.

A partir daí, a amizade entre ambos terminou.
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Outra versão do quarto parágrafo:

"Tendo-se afastado uns metros, o coelho despiu a pele e ficou completamente pelado. Voltou para junto do cágado e disse: "Compadre, olha o animal pelado". O cágado ficou apavorado e fugiu, deixando a panela do feijão. O animal pelado, que era o coelho, aproximou-se e comeu o feijão todo. Depois espalhou as cascas. Quando o cágado regressou, o coelho mostrou-se indignado, pois já tinha vestido a sua pele. O cágado disse: "Se tu estivesses, fugias como eu". O coelho respondeu: "Talvez".

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (1949)


Lourenço Joaquim da Costa Rosário nasceu em 1949, em Marromeu, Moçambique.

É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português/Francês, pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e Doutorado em Letras, especialidade de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, pela mesma Universidade, desde Janeiro de 1987.

Tem leccionado em várias instituições de ensino superior de renome internacional como, entre outras, a Universidade de Hamburgo, na Alemanha, Universidade de Milão, em Itália, Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil.

Actualmente professor da Universidade Nova de Lisboa e Reitor do Instituto Superior Politécnico e Universitário - ISPU - em Maputo, Moçambique.

Tem também a seu cargo a orientação de trabalhos de licenciatura, mestrado, doutoramento e pós-doutoramento. 

Com várias obras publicadas, é inúmeras vezes solicitado para participar como orador em congressos e conferências. 

Para além de outras funções ligadas à defesa e preservação da língua portuguesa, faz também parte do seu vastíssimo currículo a Presidência do Projecto Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa.

Fonte:
http://www.macua.org/livros/contoszamb.html

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Amosse Mucavele (A Lavoura do Tempo)


Luís Serguilha
A  Lavoura do Tempo: A Filosofia das Luzes Ontológicas do Distante Universo Poético Serguilhiano e a Renovação Estética do Futuro da Linguagem Gnósica do Futuro Contínuo  Ou o Conhecimento e a Experiência em KOA’E.  
                                                                                            Para Cláudia Carvalho Machado e   Aurelino Costa
                                                      
                                                      << O desconhecido é quase a nossa única tradição>>
                                                                                       José Lezama Lima, A partir de la poesia

Se tomarmos a “arte’’ segundo Jürgen Habermas como poder de reconciliação que aponta para o futuro, podemos dizer desde logo que estamos perante um vulcão de vozes a romperem paralelamente na sinfonia harmônica da linguagem “poética” e do “ objecto estético” universal na óptica de Mikel Dufrenne.

Em KOA’E a poesia assume-se desde o inicio ou desde o fim pois é difícil discernir onde ela começa e onde termina, mas tem algo que assumo com toda propriedade, que ela é eterna, nasce cresce e chega até aos nossos olhos como “o objecto estético no estado de um possivel aguardando a sua epifania”( op.cit. por  Carlos Nogueira da Silva – O objecto estético como mundo, la phénomenologie de l’experience esthétique l,de Mikel Dufrenne,in Phainomenon, Revista de fenomenologia, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Edicões colibri 2001), há uma notável pluralidade de “contextos” deste novo “texto” onde multiplicam-se vivências com o pensamento “pós-moderno” e o “ conflito com o tempo” “pós-utópico”.

Cláudio Daniel ( Protocolos Críticos-Itaú Cultural 2009) no ensaio “Geração 90: uma pluralidade de poéticas possíveis” ressalta que “ a poesia (...) manifesta essa tensão na linguagem, construção estética que dialoga com história, pessoal e colectiva, ao mesmo tempo que afirma a sua própria identidade com artefacto artístico”.

Segundo Ernesto Melo e Castro em resposta a eterna, conflituosa e conflituante questão: O que é poesia?  feita na Casa das Rosas do Centro Cultural de São Paulo, pelo poeta Edson Cruz:

- A poesia corporiza em textos contraditórios ondas energéticas, as que nos atacam e destroem mas também  as construtivas que nós (só nós os poetas) sabemos e podemos transformar, enviando para destinatários universais que as saberão, ou não, descodificar e entender...lá onde quer que se encontre e como quer que entendam  aquilo que esta escrito...

Caracteristica consideravelmente patente no poema a seguir:

A fantasmagoria dos grânulos fluviais inflama AS MANGAS

BIFURCADAS dos salmonetes antropológicos
                             como as asparas das povoações a desembaraçarem 
os circuitos      exaustos  das     estátuas  dos   bandos-insectos-
alienigenas
                         sobre os anzóis  dos equilíbrios  das portarias
mumificadas  que refractam   os veios extensos  das putrescências
das solenidades (...) pag. 374

Creio que a mesma “ fantasmagoria”que Luís Serguilha se refere é a mesma que “inflama” sobre a “antropologia das povoações” que habitaram a cidade de KOA’E degradada e levada abaixo por um vulcão, há aqui uma “arquitectura hieróglifica” que tenta (re)construir ou ressuscitar  a cidade no meio do escombros da “consciência do tempo” que a cada traço apresenta fragmentos 

(...) na musica poderosa dos utensílios-plasmas-dos-lances-fluorescentes
                      como as venialidades das esporas terrestres
                                      sobre os sigilos das tranqueias arbóreas    pag.374 e 375
                                      
A música tocada em KOA’E escuta-se no silêncio dos ouvidos da distância, onde cria um espaço de concordância ( Einverständnis- em alemão) entre a orquestra, o fisico, o matematico, o escritor, o cineasta, e outros, assim sendo “produz-se uma relação de reciprocidade consciente das pessoas (dos leitores-grifo meu) e, ao mesmo tempo, uma relação unitária das mesmas( dos mesmos-grifo meu) a um mundo circundante comum” disse Edmund Husserl. Nota-se a transposição (Übersetzen- em alemão) de sonoridades e ritmos para pinturas com fotos e nomes dos pensadores modernos, traz consigo a “poesia como fim último da humanidade” onde subjaz o retorno da nova “arqueologia do ser e estar” camuflada por um discurso renovado estéticamente pela consciência poético-pensante-totalizante que o passado almeja tê-lo no seu repertório, o presente estranha a gigantesca imagem, a forma como as mãos  de Serguilha (pro)criam o mundo e o futuro será que esta preparado para ver estes “reflexos coloridos”? Para assistir a celebração do “fim da arte” ?  O matrimônio quântico, sentimental, ingênuo entre a teologia, filosofia, artes, música, matemática, quimica e fisica?

Em suma existem  versos, conversas, encontros do pensamento universal em KOA’E tais como estes:

(...) a perspectiva-dos-fragmentos de Godard e as abreviaturas-das-armações-dos-nómadas de Kusturica (...) pag.25

(...) a progressão paciente do ar escoa-se nos despojos da ferida dos teoremas ( de Pasolini e Pitágoras) (...) pag. 35

 (...) as celas dos exílios-de BRECHT-Pavese expandem a direcção profundissima do húmus-gestual(...) pag.73

Importa agora compreender que em KOA’E  estes encontros aqui me referi e o “texto” poema  acima lido mostra de forma clara e objectiva a ideia de “flecha de sentido” na feliz expressão de Pierre-Jean Labarriére “no que esta imagem denota de força e tensão, apontando e devotando o próprio  texto ao tempo”(Isabel Matos Dias, Tradução: palimpsestos e metamorfoses in Heidegger, Linguagem e Tradução, Colóquio Internacional, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2002)   que logo no primeiro olhar  ganha este duplo sentido “a produtividade e a intertextualidade” disse Julia Kristeva. Daí que “o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo”(Roland Barthes, o prazer de texto) e torna-se um espaço polivalente e polifónico ( Isabel Matos Dias, op.cit)  onde os polos ( a ciência, a teologia, a filosofia, arte,a literatura ) confluem na tonalidade desta “iluminação profana”( W. Benjamin) e na totalidade desta Einbildungskraft( força de formação em imaginação) tal como pedia Schelling.

A leitura e a visão do mundo em KOA’E transforma toda cadeia de conceitos sobre o estatuto da poesia e do poeta em um mecanismo de conhecimento metafisico ( no contexto Kantiano) e da experiência ontológica ( na visão do Aristoteles) do “objecto estético”.

Afinal qual é o papel do poeta na óptica de Serguilha?

(...) O poeta manifesta a sua origem na cegueira, no desassossego da luz que é projectada na metamorfose polimórfica-vibratória regenerando os ecrâs  da reciprocidade do animal-poema com o movimento da imersão fulgurante como a gênese da recomposição do abismo a centralizar-se na profundidade, na exteriorização da descoberta absoluta do mundo (...) pag 122

(...) A visão-outra do poeta emancipa-se no silêncio, liberta-se no conhecimento caótico, no anticonvencionalismo porque é selvagem, não aceita interpretações ou qualquer tipo de determinações sociais, politicas, religiosas porque a efervescência da sua linfa-linguagem é única e sagrada ao elevar/aprofundar a regeneração/purificação cristina do mundo, sacralizando-a como um mosaico-corpo-não-efêmero, formador de vertiginosos rizomas, de disseminações vulcânicas. (...) pag. 123

Assim em KOA’E  “o poeta é selvagem” e a sua poesia caminha no silêncio da distante (in)consciência poética do tempo e da (in)temporalidade profética do mundo, ele usa uma linguagem ciclica- magnética-digladiadora-destruitiva-construitiva-poderosa-rizómatica, sua “única e sagrada” “atitude para a mensagem enquanto tal”( Roman Jacobson, Linguística e Poética)

E o que é  poesia para Serguilha?

 (...) A poesia reconstitui-se na língua anterior ao conhecimento e esculpe as suas sismologias-tapeçarias no mundo-outro como uma partilha do desassossego, uma sanguinidade do poema-poeta-poesia-liberdade na exploração mutual do enigma, na germinalidade do deserto (...) pag.109

(...) A poesia fortalece a energia transmutadora, a expressão dos ecossistemas da não evidência, da eclipse, a multiplicabilidade das prespectivas que interrogam a busca da unidade perdida.(...) pag. 116

Se para K. Marx “a finalidade dos trabalhadores é de produzir para viver” e qual é/será a finalidade dos poetas?

Para  Luis Serguilha a finalidade dos poetas é de procurar “ a área primordial da metamorfose para se unir ao cântico transmissor  do livro natureza” .pag 109
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Amosse Mucavele nasceu em 1987 em Maputo onde vive, sonha em ser poeta, ensaísta, antologiador, tradutor, cronista, Director do projecto de divulgação Literária Esculpindo a Palvra com a Língua , é chefe da redacção da Revista Literatas-Revista de Literatura moçambicana e lusófona,membro do Conselho Editorial da Revista Mallarmagens-Brasil, membro da academia de Letras de Teófilo Otoni-Minas Gerais, membro da International Writer association (IWA-Ohio-USA) possui textos publicados em diversos jornais do mundo Lusófono, representou Moçambique na 1 Raias Poéticas- Vila Nova de Famalicão-Portugal
Email- amosse1987@yahoo.com.br,                arqueologiadapalavra@gmail.com 

Fonte:
O autor

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Mia Couto (Os Negros Olhos de Vivalma)


Há mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a alguém que lhes tira o mundo.

Este foi o destino de Vivalma, mulher entre as mulheres, cheia de desgraça, nem o Senhor punha oração nela. Mulher gorda, exibia os seios em cacho, carnes de muito volume e herança. Tanta redondeza, aliás, suprimia a curva. Vivalma era esposa do latoeiro Xidakwa, homem zangadiço e com nervo florindo na pele.

A volumosa senhora saía de manhã para o serviço de sentar no bazar, em banca rente ao chão. Eram tão poucas e abreviadas as coisas que vendia que ela nunca fazia as contas. A vida é um por enquanto no que há-de vir. Vivalma se deixava no assento, mais vagarosa que orvalho. Até a mão dela poupava esforços, num mesmo gesto de ida e volta: para lá, enxotava mosca; para cá, chamava cliente. Seus braços eram tão curtos que nem era capaz de arregaçar as mangas.

Pois Vivalma se dava a conhecer pelo modo como zarolhava, olho deitado abaixo. Razão de que o marido lhe batia, por dádiva daquela palha. Nem carecia de motivo:  o murro era a língua dele, vingança de lhe fugirem desejos de sua vista. Todos se admiravam: Xidakwa até que parecia tranquilinho, sonolento, incapaz de violência. Mas os hematomas no rosto da mulher, o sangue pisado lhe enchendo a cotidiana pálpebra dela, eram provas indesmentíveis. Todos punham a devida pena na vendecora. Tão batidinha, coitada. E ainda por cima, sempre no mesmo olho. As colegas lhe sugeriam:

-  Você podia pedir a ele para variar-se: cada vez num lado, cada vez no outro- .

Ela sorria, parecia isenta de pensamento. A gordura era sua única resposta. Ela sabia: mais se engorda, menos se sofre. Com o volume a dor vai ficando mais e mais distante, perdida lá nas curvas das entranhas. As vendeiras lhe puxavam o brio:

-  Mas você Vivalma, nem viva nem alma?- 

Quem fala consente? E a mulher gorda suspirava:

-  Deus me reze, minhas amigas- .

Ela é que sabia. Xidakwa, seu marido, enganava era nas aparências. Ele era um mosca-viva, esgazelado, tratando-lhe a berro e fogo. Outros já lhe tinham chamado as atenções. Mas o latoeiro varria os reparos, explicando:

-  A vida é dura de mais para aceitar carícia: cabedal se cose é com dedal- .

As colegas do bazar insistiam:

-  Ora, Vivalminha, lhe deixe de vez, esse homem não vale uma vida. Você é como o nariz: toda a vida no meio, sem nunca fazer escolha- .

Em silêncio, Vivalma amealhava suas razões. Não que houvesse segredo: para ela, aquela era a ordem do mundo, estavam-se cumprindo destinos. Nem ela nem ele teriam tempo para uma outra ocasião. O mundo dele era de outra razão, um confim. Ele lhe queria à razão de pontapés? Que fosse. Ela não tinha querer nem ser. E quem não tem vontade, não tem lamento.

E era sem lamento que ela regressava a casa, tardes a fio, sempre última das vendedoras. Demorava os vinte  e quatro ponteiros no caminho. Perto de casa colhia uma flor mas, ao entrar no portão, a deitava no chão. No pátio se acumulavam pétalas brancas, secreto e perfumado lençol da noiva que nunca houve.

Até que, um dia, o olho negro de Vivalma se apresentou piorado, em feio e ampliado derrame. As vendeiras transbordaram-se. Não, aquilo era demais! E se conluiram para desafiar o marido violento. Sem que Vivalma suspeitasse, umas delas lá foram a casa de Xidakwa. Enquanto pisavam aquele mar de flores desfeitas souberam o espantável: que o dito marido, Xidakwa, há tempo que se fora, amanteado com outra. As vizinhas diziam e comprovavam. Os tais derrames que Vivalma exibia no rosto eram por ela mesma fabricados, sem infligência de mais ninguém.

As vendedores regressaram ao bazar, caladas, sob uma bategazinha de Verão. A chuva caía tristonha como um luto, cada gota uma mulher em Outono, chuviuvinha. Ingrata é a morte que não agradece a ninguém. Vivalma teatrava, para que ninguém suspeitasse de seu abandono? Pois as amigas se compustararam em igual disfarce. Na Natureza ninguém se perde, tudo inventa outra forma.

Sucedeu, por astúcia do acaso, o seguinte percalço: a nova mulher de Xidakwa ouviu dizer que Vivalma continuava a revalidar suas equimoças, olho da cor do chão. Se assim era, quem mais poderia ser o batedor senão o dito latoeiro? E a moça, mais nascida que a gorda vendeira, contraverteu caminho e foi agasalhar outra felicidade.

O homem, desconcertado, voltou a casa para afinar contas com Vivalma. Se admirou de ver o pátio varrido, limpo das habituais florinhas. Os vizinhos se surpreenderam, depois, a ouvir os gritos dele, batendo em sua original esposa.

Manhãzinha seguinte, viram Vivalma sair de casa, canteirando pelo jardim, a encher as mãos de petalazitas  brancas. Haveria quê nessas flores: alegria de quem se ilude vencer? Ou eram pequenitas raivas, desapercebidas como lágrimas em seu rosto molhado? Só ela, a matinal vendeira, sabe do valor dessas minusculinhas naturezas em seus dedos decepadas. Dizem, finalmente, que sob o véu de seus enegrecidos olhos havia, nessa manhã, uns fiapos de satisfação. Poderá ela, alguma vez, ser sabida? Se, como diz nenhuma canção, a água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Porto: CPAC, 1998.

domingo, 9 de setembro de 2012

Mia Couto (O Homem da Rua)

Ainda o dia andava à procura do céu, vinha eu em vagaroso carro que mais a mim me conduzia. De repente, um homem atravessou a calçada, desavultado vulto avulso. Uma garrafa o empunhava. E ele, todo súbito e poentio, se embateu frentalmente na viatura. Saltou pelos ares, se aplacando lá mais adiante, onde se iniciava o passeio. Saí do susto para inspeccionar sua sobrevivência.

Me debrucei sobre o restante dele, seu rolado enrodilhado. Não havia sangue nem quebradura de osso. O maltrapalhado estava a salvo, salvo erro. Todavia, me meteu pena: suas vestes eram a sujidade. Havia quase nenhuma roupa em seu sarro. Mesmo o corpo era o que menos lhe pesava. Os olhos estavam parados, na grade do rosto. Me pareciam pedir, o quê nem sei.

De inesperado, o vagabundo se ergueu e apressou umas passadas para encalçar o longe. Se entrecruzou com sua sombra, assustado de haver escuro e luz. Em muito zig e pouco zag ele acabou por se devolver ao chão. Voltei a acudir, cheio dessa culpa que não cabe na razão. Apanhei o vulto, desarranjado, sem estrutura. Pareceu tontolinho, sempre agarrado ao arregalado gargalo. Me deitou olhos muito espantados e pediu desculpa por incómodos. Apalpou o lugar onde se deitava, e disse:

- Um de nós está morrendo- .

Entreolhei-me a mim e ao restante mundo. Ele se precisou:

- Estou falando da terra, parece ela está moribundando- .

Lhe disse que o levaria dali para um sítio que fosse dele. Ajudei-lhe a entrar no meu carro. Ele recusou com terminância:

- Não entro em coisa que serve para levar morto- .

Amparei o desandrajoso. Se sustentou em meu ombro e me foi levando pelo passeio sombrio, através dessa desvastidão onde o negro escurece a preto.

- Agora o senhor me entorne aqui...

- Aqui?-

Esfregando-se no pescoço como se as mãos fossem de outrem, acrescentou:

- Aqui, sim. Quero acordar com dormência de lua- .

Dali ele passou a esbanjar conversa. Quem sabe o homem desjejuava palavra? E dizia sem aparência nenhuma:

- Bem hajam as folhas, minha cama!-

E explicava-se enquanto alisava as folhagens mortas: quando se deitava lhe doía a curva da terra, a costela quebrada do próprio universo. Assim deitadinho, todo simetrado com o planeta, um subterrâneo rio falava com suas veias.

- Até foi bom me aleijar um bocado. Ri-se? Nem sabe como é bom haver um chão para a gente ter onde cair- .

E nos trocamos nessa conversa com vontade de ser corpo, encosto, adormecimento. Ficámos a ver as luzinhas da cidade, lá em baixo, a lembrar que o homem sofre de incurável medo de ser noite. O país daquele homem seria a noite. Meu território era o dia, com sua luminesciência tanta que serve mais é para deixarmos de ver.

E pensei: o primeiro alimento é a luz. Nos invade logo quando nascemos. Depois, a luminosidade, com suas infinitas cascatas, nos fica a engordar a alma. Em mim, pelo menos, a primeira saudade é da luz. Direi, então: me falta a minha luz natal? Quem sabe a alma deste homem, sempre ninhado no escuro, emagrecera assim a olhos não-vistos? O homem é bicho diurno. O dia é bicho humano?

Me foi descendo, espesso, o sono. Avancei despedida não sem retirar do bolso algumas notas que estendi em direcção ao desastrado:

- Deixo o senhor com algum dinheiro. Quem sabe lhe virão, mais tarde, as dores do acidente?-

Para meu espanto ele recusou. Sem veemência, sem nenhum ênfase. Era recusa verdadeira.

- Posso pedir uma qualquer coisa?

- Peça.

- Me dê um pouco mais da sua acompanhia. Só isso: acompanhia- .

Ainda hesitei, inesperando aquele pedido. O homem nem me fitava, estivesse envergonhado. E assim, de cabeça baixa, insistiu:

- É que, sabe, eu não tenho ninguém. Antes ainda tinha quem me dispensasse migalha de conversa. Mas, agora, já nem. E me dá um medo de me sozinhar por esses aís- .

Quase que falava para dentro, eu devia baixar orelha para o entender. Assim, cabismudo, prosseguiu:

- Sabe o que faço? Vou dizer... mas o senhor me prometa que não zanga...

- Prometo.

- O que eu faço, agora, é me deixar atropelar. É. Ser embatido num resvalo de quase nada. Indemnização que peço é só esta: companhia de uma noite- .

Fiquei quieto sem me achar conveniência. Nem gesto nem palavra me defendiam. O atropelado centrou esforço em se erguer, mão sobre o joelho. Já de pé me segurou o cotovelo:

- Pode ir, à vontade. _nem imagina como senhor me faz bem, me bater e, depois, me falar. Agora já nem sinto dor nem dentro nem fora- .

Anda fiz menção de ficar, perdido entre garganta e coração. Mas o andrajoso levantou o braço, em serena sentença:

- Vá, meu amigo, vá na sua vida- .

Regressei ao carro. Arranquei-me dali, devagar. Olhei no espelho para retrover o vagabundo. Me lembrei então que nem o nome dele eu anotara. Lhe chamo agora: o homem da rua. Seu nome ficará assim, inominável, simplesmente: homem da rua. Lembrando este tempo em que deixou de haver a rua do homem.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

sábado, 8 de setembro de 2012

Mia Couto (Gaiola de Moscas)

Zuzé Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem por baixo da grande pahama se erguia sua banca. Quando a manhã já estava em cima, Zuzé Bisgate assentava os negócios. O que ele fazia? Alugava bisga, vendia o cuspo dele. A saliva de Zuzé tinha propriedades de lustrar sapatos.

-  É melhor que graxa, enquanto graxa nem há- .

Além disso, o preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saía a trezentos, incluindo o lustro. Maneira como ele procedia era seguinte: o cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do cliente sobre uma fogueirita. O pé ficava ali apanhando uns fumos para purificar dos insectos infecciosos. Zuzé Bisgate pegava no sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada cuspidela contava na conta. Passava o lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo. Raz+o do pano, motivo de esfregar com o cotovelo:

-  Dessa maneira a minha saliva me volta no corpo. É que este não é um cuspe qualquer, um produto industrioso desses. Não, isto é uma saliva bastantíssima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos foi um pequeno projecto de apoio ao sector informal. É que  Deus conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contactos lá em cima- .

Os clientes não se faziam enrugados. Às vezes até abichavam frente à banca dele. Fosse da saliva, fosse da conversa que ele lustrava. Verdade era que o negócio de Zuzé corria em bom caudal.

Quem não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. - _Não se pode beijar aquela boca engraxadora dele- , se lamentava. - _Prefiro beijar uma bota velha- , concluía.
- _Ou lamber uma caixa de graxa- .

Armantinha sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo, água fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu sonho se fabricava nos recônditos.

Avisaram o marido. Armantinha estava sonhando longe de mais. O homem respondeu em variações. - _Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois, minha boca cheira a coisa falecida. Quem se aflije com matéria morta? Só os da cidade. Nós, daqui, sabemos bem: é do podre que a terra se alimenta- .

Acontece que Zuzé Bisgate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões. Tudo servia de líquido, Zuzé destilava até pedra. De toda a substância se pode espremer um alcoolzinho, dizia. Mais e mais ele desleixava a caixa de cuspos e lustros. Até que os clientes reclamaram: a saliva de Zuzé está ganhando ácidos, aquilo é bom é para de entupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.

Até Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele lhe fez murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral. Pouco a pouco Zuzé perdeu toda a clientela e o negócio das salivas fechou.

Se decidiu então a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a máxima: a alma é o segredo de um negócio.  Alma, era isso que se necessitava. E assim ele imaginou um outro negócio. E agora quem o vê, nos actuais dias, constata a banca com sua nova aparência. E Zuzé mais seu novo posto. Seu labor é um quase nada, coisa para inglês não ver.

Ali, na fachada, arregaça as calças, com cuidado para não as desvincar. Sempre com desvelo de burocrata, desembrulha um volume retirado das entranhas de sua banca: uma gaiola forrada a rede fina. Dentro voam moscas. Pois é o que ele vende: moscardos. Matéria viva e mais que viva -- vital para o mortal cidadão. Pois, diz o Bisgate, cada um deve tratar as moscas que, depois de mortos, nos visitarão o túmulo.

- São os nossos últimos acompanhantes ...

A pessoa passa por ali, se debruça sobre o vendedor e escolhem as voadoras bastas, as mais coloridas que engalanarão o funeral:

-  Esta há-de ficar mesmo bem na sua cerimónia.

Ele convida o hesitante cliente a ir à banca ao lado, a banca da Dona Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.

-  Lavar as moscas?

- Sim, é lavagem a seco.

Armantinha cada vez mais se distancia daquela loucura. O marido se apronta é para grandes descansaços.

-  Ai nosso Senhor Jesus Cristo! Você, homem, você vende alguma coisa?

-  Faça as contas, mulher.

-  Que contas? Que contas se pode fazer sem números?

-- Ainda hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou à aldeia.

-  Qual que chegou?

-  Esse gajo que montou banca lá nas traseiras do bazar. Uma banca que até mete as graças, chama-se "Pinta-_Boca".

-  O homem se chama Pinta-_Boca?

-  Qual o homem! A banca se chama- .

Armantinha se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquidesfaz. Sua boca pedia pintura como a cabeça lhe requeria sonho. E, logo nessa manhã, ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se declina:

-  Sou Julbernardo, venho de lá, da cidade- .

Banca Pinta-_Boca. O nome faz jus. Na prateleira ele tem uma meia dúzia de bâtons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as brancas, vermelhudas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.

Armantinha, já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma coloradela.

-  Aqui, se paga em adiantado- .

Ela retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas à procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia cruzar os braços.

-  Está aqui seu dinheiro.

-  Não chega nem basta. Essa tabuleta do preço era na semana passada. Agora é 250 um lábio.

-  Um lábio?

-  Se for o de cima, o de baixo custa mais caro. Por causa que é maior.

-  Estou fracassada com você, Julbernardo. Vá, pinte o de cima, amanhã venho pintar o de baixo.

-  Está certo, eu vou pintar- .

Julbernardo pegou no bâton com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser vista. Metade do povoado vinha assistir às pinturas. A gente seguia caladinha, aquilo era cena à prova de fala. Julbernardo metia um avental, ordenava à cliente que sentasse no tronco cortado do canhoeiro.

Armantinha obedecia ao ritual. Sentada, ergueu o rosto. Fechou os olhos, compenentrada em si. O pintador limpou as mãos no avental. Se debruçou sobre a tela viva e fez rodar o bâton no ar antes de riscar a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha  deu largas ao sonho. O bâton acariciava o lábio e tornava seu corpo misteriosamente leve, como se naquele toque se anulasse todo o peso dela.

Sonhava Armantinha e o sonho dela se apoderava. Nesse devaneio o bâton se convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando húmidas ternuras. Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zuzé também lhe esvoaça na cabeça.

E eis que Armantinha abre os olhos e ali, bem à sua frente, o seu marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a gentalha rodopiando em volta. De repente, já um deles se apresenta de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na mão de Zuzé. Depois, num sacão, se separam os dois corpos. Estão ambos ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho dá dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se avizinha. Zuzé, vitorioso, aponta a mulher:

-  Vê? Vê as moscas que vendi a esse cabrão?-

Mas as moscas, em lugar de escolherem o tombado Julbernardo, circundam a cabeça de Zuzé. Alarmado, ele enxota-as. Em vão: já a moscardaria lhe pousa, vira e revira. Então, Zuzé Bisgate desce dos seus próprios joelhos e se derrama em pleno chão. O sangue se vê brotar de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral. Com mão corrige a mancha vermelha com que o bâton esmagado enchera o seu branco avental.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Mia Couto (Poemas Recolhidos)

É VITALÍCIO

 É vitalício: comer a Vida
 deitando-a entontecida
 sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
 dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.

IDENTIDADE

 Preciso ser um outro
 para ser eu mesmo

 Sou grão de rocha
 Sou o vento que a desgasta

 Sou pólen sem insecto

 Sou areia sustentando
 o sexo das árvores

 Existo onde me desconheço
 aguardando pelo meu passado
 ansiando a esperança do futuro

 No mundo que combato morro
 no mundo por que luto nasço

A ADIADA ENCHENTE

 Velho, não.
 Entartecido, talvez.
 Antigo, sim.

 Me tornei antigo
 porque  a vida,
 tantas vezes, se demorou
 E eu a esperei
 como um rio aguarda a cheia.

PARA TI

 Foi para ti
 que desfolhei a chuva
 para ti soltei o perfume da terra
 toquei no nada
 e para ti foi tudo
 Para ti criei todas as palavras
 e todas me faltaram
 no minuto em que talhei
 o sabor do sempre
 Para ti dei voz
 às minhas mãos
 abri os gomos do tempo
 assaltei o mundo
 e pensei que tudo estava em nós
 nesse doce engano
 de tudo sermos donos
 sem nada termos
 simplesmente porque era de noite
 e não dormíamos
 eu descia em teu peito
 para me procurar
 e antes que a escuridão
 nos cingisse a cintura
 ficávamos nos olhos
 vivendo de um só
 amando de uma só vida

DESTINO

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

Mia Couto (Os Negros Olhos de Vivalma)

Há mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a alguém que lhes tira o mundo.

Este foi o destino de Vivalma, mulher entre as mulheres, cheia de desgraça, nem o Senhor punha oração nela. Mulher gorda, exibia os seios em cacho, carnes de muito volume e herança. Tanta redondeza, aliás, suprimia a curva. Vivalma era esposa do latoeiro Xidakwa, homem zangadiço e com nervo florindo na pele.

A volumosa senhora saía de manhã para o serviço de sentar no bazar, em banca rente ao chão. Eram tão poucas e abreviadas as coisas que vendia que ela nunca fazia as contas. A vida é um por enquanto no que há-de vir. Vivalma se deixava no assento, mais vagarosa que orvalho. Até a mão dela poupava esforços, num mesmo gesto de ida e volta: para lá, enxotava mosca; para cá, chamava cliente. Seus braços eram tão curtos que nem era capaz de arregaçar as mangas.

Pois Vivalma se dava a conhecer pelo modo como zarolhava, olho deitado abaixo. Razão de que o marido lhe batia, por dádiva daquela palha. Nem carecia de motivo:  o murro era a língua dele, vingança de lhe fugirem desejos de sua vista. Todos se admiravam: Xidakwa até que parecia tranquilinho, sonholento, incapaz de violência. Mas os hematombos no rosto da mulher, o sangue pisado lhe enchendo a quotidiana pálpebra dela, eram provas indesmentíveis. Todos punham a devida pena na vendecora. Tão batidinha, coitada. E ainda por cima, sempre no mesmo olho. As colegas lhe sugeriam:

-  Você podia pedir a ele para variar-se: cada vez num lado, cada vez no outro- .

Ela sorria, parecia isenta de pensamento. A gordura era sua única resposta. Ela sabia: mais se engorda, menos se sofre. Com o volume a dor vai ficando mais e mais distante, perdida lá nas curvas das entranhas. As vendedeiras lhe puxavam o brio:

-  Mas você Vivalma, nem viva nem alma?-

Quem fala consente? E a mulher gorda suspirava:

-  Deus me reze, minhas amigas- .

Ela é que sabia. Xidakwa, seu marido, enganava era nas aparências. Ele era um mosca-viva, esgazelado, tratando-lhe a berro e fogo. Outros já lhe tinham chamado as atenções. Mas o latoeiro varria os reparos, explicando:

-  A vida é dura de mais para aceitar carícia: cabedal se cose é com dedal- .
As colegas do bazar insistiam:

-  Ora, Vivalminha, lhe deixe de vez, esse homem não vale uma vida. Você é como o nariz: toda a vida no meio, sem nunca fazer escolha- .

Em silêncio, Vivalma amealhava suas razões. Não que houvesse segredo: para ela, aquela era a ordem do mundo, estavam-se cumprindo destinos. Nem ela nem ele teriam tempo para uma outra ocasião. O mundo dele era de outra razão, um confim. Ele lhe queria à razão de pontapés? Que fosse. Ela não tinha querer nem ser. E quem não tem vontade, não tem lamento.

E era sem lamento que ela regressava a casa, tardes a fio, sempre última das vendedoras. Demorava os vinte  e quatro ponteiros no caminho. Perto de casa colhia uma flor mas, ao entrar no portão, a deitava no chão. No pátio se acumulavam pétalas brancas, secreto e perfumado lençol da noiva que nunca houve.

Até que, um dia, o olho negro de Vivalma se apresentou piorado, em feio e ampliado derrame. As vendeiras transbordaram-se. Não, aquilo era de mais! E se conluiaram para desafiar o marido violento. Sem que Vivalma suspeitasse, umas delas lá foram a casa de Xidakwa. Enquanto pisavam aquele mar de flores desfeitas souberam o espantável: que o dito marido, Xidakwa, há tempo que se fora, amanteado com outra. As vizinhas diziam e comprovavam. Os tais derrames que Vivalma exibia no rosto eram por ela mesma fabricados, sem infligência de mais ninguém.

As vendedores regressaram ao bazar, caladas, sob uma bategazinha de Verão. A chuva caía tristonha como um luto, cada gota uma mulher em Outono, chuviuvinha. Ingrata é a morte que não agradece a ninguém. Vivalma teatrava, para que ninguém suspeitasse de seu abandono? Pois as amigas se compustararam em igual disfarce. Na Natureza ninguém se perde, tudo inventa outra forma.

Sucedeu, por astúcia do acaso, o seguinte percalço: a nova mulher de Xidakwa ouviu dizer que Vivalma continuava a revalidar suas equimoças, olho da cor do chão. Se assim era, quem mais poderia ser o batedor senão o dito latoeiro? E a moça, mais nascida que a gorda vendedeira, contraverteu caminho e foi agasalhar outra felicidade.

O homem, desconcertado, voltou a casa para afinar contas com Vivalma. Se admirou de ver o pátio varrido, limpo das habituais florinhas. Os vizinhos se surpreenderam, depois, a ouvir os gritos dele, batendo em sua original esposa.

Manhãzinha seguinte, viram Vivalma sair de casa, canteirando pelo jardim, a encher as mãos de petalazinhas  brancas. Haveria quê nessas flores: alegria de quem se ilude vencer? Ou eram pequeninas raivas, desapercebidas como lágrimas em seu rosto molhado? Só ela, a matinal vendedeira, sabe do valor dessas minusculinhas naturezas em seus dedos decepadas. Dizem, finalmente, que sob o véu de seus enegrecidos olhos havia, nessa manhã, uns fiapos de satisfação. Poderá ela, alguma vez, ser sabida? Se, como diz nenhuma canção, a água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

sábado, 25 de agosto de 2012

Mia Couto (Governados pelos mortos)

(- fala com um descamponês- )

-  Estamos aqui sentados debaixo da árvore sagrada da sua família. Pode-me dizer qual o nome dessa árvore?

- Porquê?

-  Porque gosto de conhecer os nomes das árvores.

- O senhor devia saber era o nome que a árvore lhe dá a si.

-  Depois de tanta guerra: como vos sobreviveu a esperança?

- Mastigámo-la. Foi da fome. Veja os pássaros: foram comidos pela paisagem.

-  E o que aconteceu com as casas?

- As casas foram fumadas pela terra. Falta de tabaco, falta de suruma. Agora só me entristonho de lembrança prematura. A memória do cajueiro me faz crescer cheiros nos olhos.

-  Como interpreta tanta sofrência?

- Maldição. Muita e muito má maldição. Faltava só a cobra ser canhota.

-  E porquê?

-- Não aceitamos a mandança dos mortos. Mas são eles que nos governam.

- E eles se zangaram?

-- Os mortos perderam acesso a Deus. Porque eles mesmos se tornaram deuses. E têm medo de admitir isso. Querem voltar a ser vivos. Só para poderem pedir a alguém.

-  E estes campos, tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?

- Foram. Nós só ficámos com o descampado.

-  E agora?

- Agora somos descamponeses.

-  E bichos, ainda há aqui bichos?

- Agora, aqui só há inorganismos. Só mais lá, no mato, é que ainda abundam.

-  Nós ainda ontem vimos flamingos...

- Esses se inflamam no crepúsculo: são os inflamingos.

-  E outras aves da região. Pode falar delas?

- Antes de haver deserto, a avestruz pousava em árvore, voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Agora, há nomes que eu acho que estão desencostados. . .

-  Por exemplo?

- Caso do beija-flor. É um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o título de beija-pássaros.

-  Mas outros animais não há?

- A bichagem vai acabando. O mabeco, dito o cão-selvagem, vai sofrendo as humanas selvajarias. Antes de acabar a lição, ele já terá aprendido a não existir.

-  Parece desiludido com os homens.

- O vaticínio da toupeira é que tem razão: um dia, os restantes bichos lhe farão companhia em suas subterraneidades. Eu acredito é na sabedoria do que não existe. Afinal, nem tudo que luz é besouro. É o caso do pirilampo. Pirilampo morre? Ou funde? Suas réstias mortais aumentam o escuro.

-  Tanta certeza na bicharada...

- Você não olhou bem esse mundo de cá. Já viu pássaro canhoto? Camaleão vesgo? Papagaio gago?

-  Acredita em ensinamento de bichos?

- Todo o caranguejo é um engenheiro de buracos. Ele sabe tudo de nada. Há outros, demais. O mais idoso é o escaravelhinho. Mas, de todos, quem anda sempre de janela é o cágado.

-  Você não sofre de um certo isolamento?

- Sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho-do-mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa.

-  Mas a sua mulher não lhe faz companhia?

- Ela é minha patrã. De vez em quando a gente dedilha uma conversa. É uma acompanhia, faz conta uma estação das chuvas. Mas a tradição nos manda: com mulher a gente não pode intimizar. Caso senão acabamos enfeitiçados.

-  Uma última mensagem.

- Não sei. Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Mia Couto (A Carteira de Crocodilo)

A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo. As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

-  E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

-  Cale-se, Clementina- .

Mas o governador Sacramento também se havia contemplado a ele mesmo. Adquirira um par de sapatos feitos com pele de cobra. O casal calçava do reino animal, feitos pássaros que têm os pés cobertos de escamas. Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade. O governador-geral contraíra grave e irremediável viuvez. A esposa, coitada, fora comida inteira, incluído corpo, sapatos, colares e outros anexos.

-  Foi comida mas... pelo mando, supõe-se?

-  Cale-se, Clementina- .

Mas qual marido? Tinha sido o crocodilo, o monstruoso carnibal. Que horror, com aqueles dentes capazes de arrepiar tubarões.

-  Um crocodilo no Palácio?

-  Clemente-se, Clementina- .

O monstro de onde surgira? Imagine-se, tinha emergido da carteira, transfigurado, reencarnado, assombrado. Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva. Tentou assegurá-la: tarde e de mais. Foi só tempo de avistar a dentição triangulosa, língua amarela no breu da boca. No resto, os testemunhadores nem presenciaram. O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração d crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

No princípio, houve relutâncias, demoras no entendimento. Mas logo os aplausos abafaram as restantes palavras. O que sucedeu, então, foi o inacreditável. O governador Sacramento suspendeu a palavra e espreitou o chão que o sustinha. Pedindo urgentes desculpas ele se sentou no estrado e se apressou a tirar os sapatos. Entre a audiência ainda alguém vaticinou:

-  Vai ver que os sapatos se convertem em cobra...

-  Clementina!-

Sucedeu exactamente o inverso. O ilustre nem teve tempo de desapertar os atacadores. Perante um espanto ainda mais geral que o título do governador, se viu  o honroso indignitário a converter-se em serpente. Começou pela língua, afilada e bífida, em rápidas excursões da boca. Depois, se lhe extinguiram os quase totais membros, o homem, todo ele, um tronco em flor. Caiu desamparado no mármore do palácio e ainda se ouviu seu grito:

-  Ajudem-me!-

Ninguém, porém, avivou músculo que fosse. Porque, logo e ali, o mutante mutilado, em total mutismo, se começou a enredar pelo suporte do microfone. Enquanto serpenteava pelo ferro ele se desnudava, libertadas as vestes como se foram uma desempregada pele. O governador finalizava elegâncias de cobra. O ofídio se manteve hasteado no microfone, depois largou-se. Quando se aguardava que se desmoronasse, afinal, o governador encobrado desatou a caminhar. Porque de humano lhe restavam apenas os pés, esses mesmos que ele cobrira de ornamento serpentífero.

-  Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

Falas do velho tuga

Quer que eu lhe fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E sabe porquê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora, que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido.

Estou deitado neste mesmo leito há cinco anos. As paredes em volta parecem já forrar a minha inteira alma. Já nem distingo corpo do colchão. Ambos têm o mesmo cheiro, a mesma cor: o cheiro e cor da morte. Morrer, para mim, sempre foi o grande acontecimento, a surpresa súbita. Afinal, não me coube tal destino. Vou falecendo nesta grande mentira que é a imobilidade.

Também eu amei uma mulher. Foi há tempo distante. Nessa altura, eu receava o amor. Não sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia insuficiente, a palavra soava a demasiado. Eu a desejava, sim, ela inteira, sexo e anjo, menina e mulher. Mas tudo isso foi noutro tempo, ela era ainda de tenrinha idade.

Este lugar é a pior das condenações. Já nem as minhas lembranças me acompanham. Quando eu chamo por elas me ocorrem pedaços rasgados, cacos desencontrados.  Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Mas não: mesmo para morrer sofro de incompetências. Eu deveria ser generoso a ponto de me suicidar. Sem chamar morte nem violentar o tempo. Simplesmente deixarmos a alma escapar por uma fresta.

Ainda há dias um desses rasgões me ocorreu por dentro. É que me surgiu, mais forte que nunca, esse pressentimento de que alguém me viria buscar. Fiquei a noite às claras, meus ouvidos esgravatando no vão escuro. E nada, outra vez nada. Quando penso nisso um mal-estar me atravessa. Sinto frio mas sei que estamos no pico do Verão. Tremuras e arrepios me sacodem. Me recordo da doença que me pegou mal cheguei a este continente.

África: comecei a vê-la através da febre. Foi há muitos anos, num hospital da pequena vila, mal eu tinha chegado. Eu era já um funcionário de carreira, homem feito e preenchido. Estava preparado para os ossos do ofício mas não estava habilitado às intempéries do clima. Os acessos da malária me sacudiam na cama do hospital apenas uma semana após ter desembarcado. As tremuras me faziam estranho efeito: eu me separava de mim como duas placas que se descolam à força de serem abanadas.

Em minha cabeça, se formavam duas memórias. Uma, mais antiga, se passeava em obscura zona, olhando os mortos, suas faces frias. A outra parte era nascente, reluzcente, em estreia de mim. Graças à mais antiga das doenças, em dia que não sei precisar, tremendo de suores, eu dava à luz um outro ser, nascido de mim.

Fiquei ali, na enfermaria penumbrosa, intermináveis dias. Uma estranha tosse me sufocava. Da janela me chegavam os brilhos da vida, os cantos dos infinitos pássaros. Estar doente num lugar tão cheio de vida me doía mais que a própria doença.

Foi então que eu vi a moça. Branca era a bata em contraste com a pele escura: aquela visão me despertava apetites no olhar. Ela se chamava Custódia. Era esta mesma Custódia que hoje está connosco. Na altura, ela não era mais que uma menina, recém-saída da escola. Eu não podia adivinhar que essa mulher tão jovem e tão bela me fosse acompanhar até ao final dos meus dias. Foi a minha enfermeira naqueles penosos dias. A primeira mulher negra que me tocava era uma criatura meiga, seus braços estendiam uma ponte que vencia os mais escuros abismos.

Todas as tardes ela vinha pelo corredor, os botões do uniforme desapertados, não era a roupa que se desabotoava, era a mulher que se entreabria. Ou será que por não ver mulher há tanto tempo eu perdera critério e até uma negra me porventurava? Me admirava a secura daquela pele, 0 gesto cheio de sossegos, educado para maternidades. Enquanto rodava pelo meu leito eu tocava em seu corpo. Nunca acariciara tais carnes: polposas mas duras, sem réstia de nenhum excesso.

Os dias passavam, as maleitas se sucediam. Até que, numa tarde, me assaltou um vazio como se não houvesse mundo. Ali estava eu, na despedida de ninguém. Olhei a janela: um pássaro, pousado no parapeito, recortava o poente. Foi nesse pôr do Sol que Custódia, a enfermeira, se aproximou. Senti seus passos, eram passadas delicadas, de quem sabe do chão por andar sempre descalço.

-  Eu tenho um remédio- , disse Custódia. - _É um medicamento que usamos na nossa raça. O Senhor Fernandes quer ser tratado dessa maneira?

-  Quero.

-  Então, hoje de noite lhe venho buscar- .

E saiu, se apagando na penumbra do corredor. Como em caixilho de sombra a sua figura se afastava, imóvel como um retrato. Na janela, o pássaro deixou de se poder ver. Adormeci, doído das costas, a doença já  tinha aprisionado todo meu corpo. Acordei com um sobressalto. Custódia me vestia uma bata branca, bastante hospitalar.

-  Onde vamos?

-  Vamos- .

E fui, sem mais pergunta, tropeçando pelo corredor. Dali parei a tomar fôlego e, encostado na umbreira da porta, olhei o leito onde lutara contra a morte. De repente, estranhas visões me sobressaltaram: deitado, embrulhado nos lençóis, estava eu, desorbitado. Meus olhos estavam sendo comidos pelo mesmo pássaro que atravessara o poente. Gritei - _Custódia, quem está na minha cama?-  Ela espreitou e riu-se:

-  É das febres, ninguém está lá- .

Fui saindo, torteando o passo. Afastámo-nos do hospital, entramos pelos trilhos campestres. Naquele tempo, as palhotas dos negros ficavam longe das povoações. Caminhava em pleno despenhadeiro, o pequeno trilho resvalava as infernais e desluzidas profundezas. Me perdi das vistas, mais tombado que amparado nesse doce corpo de Custódia. Voltei a acordar como se subisse por uma fresta de luminosidade. Aquela luz fugidia me pareceu, primeiro, o pleno dia.

Mas depois senti o fumo dessa ilusão. O calor me confirmou: estava frente a uma fogueira. O calor da cozinha da minha infância me chegou. Escutei o roçar de longas saias, mulheres mexendo em panelas. Saí da lembrança, dei conta de mim: estava nu, completamente despido, deitado em plena areia.

-  Custódia!- , chamei.

Mas ela não estava. Somente dois homens negros baixavam os olhos em mim. Me deu vergonha ver-me assim, descascado, alma e corpo despejados no chão. Malditos pretos, se preparavam para me degolar? Um deles tinha uma lamina. Vi como se agachava, o brilho da lamina me sacudiu. Gritei: aquela era a minha voz? Me queriam matar, eu estava ali entregue às puras selvajarias,  candidato a ser esquartejado, sem dó na piedade. Me desisti, desvalente, desvalido. De nada lucrava recusar os intentos do negro. O homem cortou-me, sim. Mas não passou de uma pequena incisão no peito. Sangrei, fiquei a ver o sangue escorrer, lento como um rio receoso.

Um dos homens falou em língua que eu desconhecia, seus modos eram de ensonar a noite, a voz parecia a mão de Custódia quando ela me empurrava para o sonho. Voltei a deitar-me. Só então reparei que havia uma lata contendo um líquido amarelado. Com esse líquido me pintavam, em besuntação danada. Depois, me ajeitaram o pescoço para me fazerem beber um amargo licor. Choravam, pareceu-me de início. Mas não: cantavam em surdina. Dores de morrer me puxavam as vísceras. Vomitei, vomitei tanto que parecia estar-me a atirar fora de mim, me desfazendo em babas e azedos. Cansado, sem fôlego nem para arfar, me apaguei.

No outro dia, acordei, sem estremunhações. Estava de novo no hospital, vestido de meu regulamentar pijama. Qualquer coisa acontecera? Eu tinha saído em deambulação de magias, rituais africanos? Nada parecia. Verdade era que eu me sentia bem, pela primeira vez me chegavam as forças. Me levantei como uma toupeira saída da pesada tampa do escuro. Primeira coisa: fui à janela. A luz me cegou. Podia haver tantas cores, assim tão vivas e quentes?

Foi então que eu vi as árvores, enormes sentinelas da terra. Nesse momento aprendi a espreitar as árvores. São os únicos monumentos em África, os testemunhos da antiguidade. Me diga uma coisa: lá fora ainda existem? Pergunto sobre as árvores.

Quer saber mais? Agora estou cansado. Tenho que respirar muito. Há tanto tempo que eu não falava assim, às horas de tempo. Não vá ainda, espere. Vamos fazer uma combinação: você divulga estas minhas palavras lá no jornal de Portugal --  como é que se chama mesmo  o tal jornal? -- e depois me ajuda a procurar a minha família. É que sabe: eu só posso sair daqui pela mão deles. Senão, que lugar terei lá no mundo? Traga-me um qualquer parente. Quem sabe, depois disso, ficamos mesmo amigos. Você sabe como eu confirmo que estou ficando velho? É da maneira que não faço mais amigos. Aqueles de que me lembro são os que eu fiz quando era novo. A idade nos vai minguando, já não fazemos novas amizades. Da próxima vez venha com um parente. Ou faça mesmo o senhor de conta que é meu familiar.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.