sábado, 18 de setembro de 2021

Varal de Trovas n. 524

 

Nilto Maciel (Mundoca e Mundico)

Passavam os dias nas ruas. Há muito tempo no batente da Igreja do Patrocínio. Ponto bom. Sentavam-se junto à parede, estiravam as pernas e se preparavam para os primeiros pedidos. Esmolinha pelo amor de Deus, ajudinha para os ceguinhos. E levantavam as vasilhas amassadas, para facilitar o acolhimento das moedas e cédulas. Quando se sentiam sós, conversavam. Ela sempre recebia mais. Esse povo pensa que não sou cego? Contavam e recontavam as esmolas. Hoje o povo está miserável. Havia quem parasse para conversar com eles. Fazia perguntas de todos os tipos: se eram cegos de nascença, onde moravam, com quem viviam, por que não procuravam abrigos públicos? Passavam por eles homens e mulheres de todos os feitios: lentos, bêbados, pesados, perfumados, bem vestidos, suados, bonitos. Tropeçavam em seus pés e pediam desculpas. Fossem moedinhas ou cédulas de maior valor, agradeciam sempre: Deus lhe abençoe; Deus lhe dê em dobro; Deus lhe pague. Conheciam alguns transeuntes. O doutor já passou? Ainda é cedo. Voltavam para casa ao anoitecer, bolsos e bolsas repletos de dinheiros e presentes. Quem deu esta pulseira, Mundoca? Ela se zangava. Ia querer saber de tudo? Foi homem ou mulher? Tomasse cuidado com certos homens. Começavam dando presentinhos e terminavam querendo recompensas. Ora, ora. Fosse tomar banho de bica. Por que iria dar recompensa? Por acaso ela parecia alguma sirigaita que andasse se oferecendo? Amuavam-se por horas. Iam dormir brigados.

No outro dia, ele voltava a falar do homem bonito, de paletó, perfumado, que teimava em passar pela calçada, ficar parado, olhando para ela. Você acha ele bonito? Mundoca se irritava: Como ia saber, se não enxergava ninguém? Queria saber de uma coisa? A partir daquele dia, não pediria mais naquele lugar. Ia procurar outro ponto. Se fizesse aquilo, não voltasse mais para casa. Procurasse outro besta ou fosse viver com o macho bonito. Mundico, você acha que ele me quer, eu, uma pobre cega? Não sabia se ele a queria, mas que ela o deseja, disso tinha certeza. Viu-a suspirar de noite, cheia de dengues. Prostituta!

Todo dia contavam as esmolas. Sete mulheres, oito homens. Quase nada hoje. Uma miséria! E você? Seis homens, seis mulheres. Quanto você ganhou? Porém, nem todo dia os homens e as mulheres da cidade se mostravam mesquinhos. Mais de vinte hoje, Mundico. Muitas vezes o esmolador lançava a moeda no rumo da vasilha e sumia. Quem foi, Mundoca? Nos primeiros tempos tentavam contar as pessoas que passavam diante deles: um, dois, três, cem, mil. Vamos parar no mil. Não, na terceira esmola. Tem muita gente neste mundo, Mundico. E aqui na cidade? Talvez cem mil. Muito mais. Um milhão? Sei lá o que é um milhão.

Ao meio-dia deixavam o batente e saíam à procura de restaurantes. Pediam sobras. À noitinha, pegavam o ônibus. Às vezes conseguiam lugares nos bancos. Quando se desorientavam, pediam ajuda de passageiros. Mas quase sempre sabiam onde se achavam. Depois do jantar contavam as esmolas. Quem deu a nota de dez? Um homem. E esses centavinhos?  

O homem bonito tornou a incomodar Mundico. Por que você acha que ele é bonito, Mundoca? Será porque tem muito dinheiro, veste paletó e usa perfume caro? Você quer ele, Mundoca? E, na escuridão do casebre, o torvelinho das palavras se misturou aos gestos descontrolados e aos atos mais primitivos.

No dia seguinte e nos outros, Mundico voltou sozinho aos degraus da Igreja do Patrocínio, a contar moedas e cédulas e a dizer Deus lhe pague, Deus lhe proteja, Deus lhe dê em dobro.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) – 3 –

“A NOITE ESTÁ CHEGANDO E SOPRA O VENTO”

A noite está chegando e sopra o vento;
as árvores balançam sem cessar,
esta canção que soa como um lamento
parece vir de longe, vir do mar...

Escutando-a me ponho a meditar:
onde estejas, talvez, neste momento
e se amaste e não queres mais amar,
por que viver um drama tão violento ?!

Pois, quem sabe dirás, quando sozinha:
“O que afinal meu coração anseia ?”
E nem hás de supor quanto és mesquinha...

Oh! vem comigo olhar a lua cheia,
e te sabendo finalmente minha,
eu serei teu, fantástica sereia !
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MÁGOAS E QUEIXAS

Fazer versos é fácil - dir-me-eis -
se lerdes minhas páginas singelas
e simplesmente reparardes nelas
mágoas que nem de longe conheceis....

Se assim pensardes, nunca entendereis
da própria alma as fatídicas procelas
surgindo à noite, não em tardes belas,
e sois felizes porque não sofreis...

Se, no entanto, sentirdes a tristeza
transparecendo aqui nas entrelinhas
destes versos, que os leva a correnteza

a transbordar em zonas ribeirinhas,
é possível que tendes, com certeza,
queixas amargas iguais às minhas !
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RENÚNCIA

Viver sem teu carinho, sem teu beijo,
por receio de não ser compreendido;
e, ao mesmo tempo, louco de desejo
ao vivo amor não encontrar olvido.

Querer a fuga como um triste andejo
em busca de outros ares, aturdido,
mas por desgraça não achar ensejo
onde viver amado e ser querido.

Quanto amor te devoto e, todavia,
meu sentimento vago renuncia
tua presença meiga em minha vida...

E eu me contenho alheio ao teu sorriso,
como alguém reservado e indeciso
que não sabe se elege a preferida…
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SONETO DO ABANDONADO

Se teu amor chegasse de mansinho
e aos poucos me envolvesse corpo e alma;
se ele viesse me trazer carinho
quando me desespero e perco a calma...

Se fosses o fanal do meu caminho
e me surgisses numa noite calma,
como alguém que procura um quente ninho
para amar e aquecer o corpo e a alma...

Ambos unidos pelo mesmo afeto,
tanto sincero quanto predileto,
viveríamos horas mais amenas...

Mas enquanto não vens não tenho nada;
minha vida é uma casa abandonada
onde alguém chora a sós amargas penas
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SONETO MÍSTICO

Estou sentindo um sopro realmente...
É a hora em que refrescas minha fronte
e sou Tua flor, erguida em alto monte,
a quem deste um aroma permanente.

O dia em que eu tombar murcho no chão
recolhe para Ti todo o perfume
para que eterno queime no Teu lume
incensando Tua plácida mansão.

Não o deixes perder-se em treva densa,
mas faze que ele sempre a Ti pertença
co’a glória de servir-Te e que somente

um dia - não sei quando - em Teu louvor,
retorne finalmente à mesma flor
pra que unidos os guardes eternamente.
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SUPREMA DESGRAÇA

Despetalar as flores, na demência
do desespero horrendo dum delírio.
Nem ao menos poupar o branco lírio
e já não escutar a consciência.

Arrasar o jardim desta existência
na fúria dum remorso sem martírio.
Perder a crença de encontrar o empíreo
e sufocar a luz co’a própria ciência.

Depois olhar pra trás e ver ainda
um jardim florido e uma luz infinda,
e não ter forças pra voltar atrás...

Mas ter somente uma opressão maldita,
e ao lado nem ao menos ter a dita
do perdão dos pecados e da paz…
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VÍTIMA

Nestas horas serenas e patéticas
eu canto um rio de amor em profusão;
e faço dos meus sonhos comunhão
das ondas rubro-verdes e poéticas...

As minhas esperanças são proféticas
e existe nelas uma solidão,
por quem bate em delírio o coração
se desfazendo em pulsações atléticas.

Oh! cantar tristemente noite e dia
sem demonstrar nos olhos a alegria
dos que estão satisfeitos com a vida,

é a tristeza suprema que atraiçoa,
é o copo envenenado de água boa
que nos mata sem vermos a ferida!

Fonte:
www.sonetos.com. Acesso em 15.01.2016. (site fora do ar)

Sammis Reachers (In box)

Lá se vai uma carangada de anos.

Foi dentro do antigo supermercado Max Box, no Fonseca, em Niterói.

Tudo que nasce avança em direção a seu ápice. E descai. E morre. Ali foi o ápice dele. A aceleração de seus processos. Seu arroubo ao apogeu. Numa fila de supermercado. Num dia cinza de outono quente.

Era funcionário do Detran. Aposentadoria em 12 anos.

Abriu os braços e gritou. Aqueles gritos primais, sabe, que ensinam em terapias. Depois de ter cativado a atenção de todos, sacou dois revólveres. Como se ensina nos filmes. Pessoas correram, ele fez mira. Fez e fez e deflagrou... pânico em donas de casa, estudantes comedores de Trakinas e velhotes que vão ao supermercado apenas para comprar um real de pão francês e filar um cafezinho.

Foi rendido por um segurança mais ousado e sangue-frio. Nenhum dos dois disparou. Nenhum dos que podiam, entendeu.

Puxou dois anos no Galpão da Quinta, o Presídio Evaristo de Moraes. Uma semana depois de ganhar as ruas, ao sair de um churrasco de aniversário do filho, foi atropelado por uma moto.

De sua casa seu filho herdou, além das 168 fitas VHS de westerns yankees, chicanos ou spaguettis, oitenta e sete contumazes revólveres, que, fora os dois apreendidos no mercado, formavam a coleção de revólveres de Geremias, “a maior de São Gonçalo e a segunda no Estado”.

Era meu amigo, trabalhamos juntos na antiga CTC de Leonel Brizola.

Morreu sem nunca ter dado um tiro. O Geremias.

Estante de Livros (Livros de Aluísio Azevedo)


Uma Lágrima de Mulher


Maffei, ambicioso pescador de uma das Ilhas de Lipari, no mar da Sicília, decide ir para Nápoles procurar riqueza e deixa a filha Rosalina com Ângela, uma espécie de ama. Volta anos depois, mas encontra a jovem filha apaixonada por Miguel Rizio, pobre, sem família que desse um enlace feliz a esse romance, decide levar Rosalina para Nápoles, pois lá ela arranjaria um marido, se não rico, mas que desse a ele (Maffei) um título de nobreza. Viaja pensando que matara Miguel em uma briga que tiveram, deixando ordem para que dessem fim ao corpo.

Miguel sobrevive e, anos mais tarde, consegue descobrir onde Rosalina mora, indo a seu encontro. Mas a Rosalina que existe é outra, transformada, cercada de luxos, com outros aprendizados e novas experiências.

Encontramos aí já os traços do naturalismo (excetuando-se o romantismo exagerado), quando o mundo social e hereditário influencia na formação do indivíduo.

O final do livro traz semelhanças shakesperianas, mas não surpreende. A pequena novela é ambientado na primeira metade do século XIX e é o primeiro romance de Aluísio Azevedo.

Aluísio Azevedo situa suas personagens - Miguel, Rosalina, Maffei e Ângela - em uma aldeia de pescadores nas ilhas Lipari, na Grécia, onde inicia a narrativa. Posteriormente, em Nápoles, Itália, além de mostrar as mudanças de caráter em Rosalina, antes ingênua e meiga, e em Maffei, de austero a ambicioso e amoral, põe a nu a hipocrisia daquele meio social, que define como uma sociedade flutuante, onde burgueses ricos e nobres falidos estabelecem relações promíscuas.
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Casa de Pensão

Casa de Pensão foi publicada em 1884 e é bem ao gosto naturalista, a exemplo de O cortiço, tanto que se fundamenta em um caso verídico (Questão Capistrano).

Tem como foco a trajetória de Amâncio, jovem provinciano do Maranhão, mandado pelo pai rico para a corte, onde poderia fazer um bom curso de medicina, à altura da capacidade do filho. Amâncio era um jovem com algum talento, mas estava mais interessado em “curtir” o Rio de Janeiro do que se esforçar para exercer a profissão de médico, afinal não precisava do diploma, dada a riqueza do pai. Morando em pensões de má qualidade, envolveu-se em situações não desejadas porque se julgava suficientemente esperto para viver levando vantagens e aproveitando-se de certas oportunidades.

Depois de um julgamento no qual fora acusado de sedutor, foi inocentado, mas acabou morto pelo irmão da mulher que seduzira.

Uma das últimas cenas da narrativa mostra a mãe de Amâncio chegando ao Rio para visitar o filho, assustada com o movimento da cidade. Acreditava que encontraria o filho cumprindo tudo o que a família e a província esperavam dele, até que viu uma foto estampada em uma vitrine de um estabelecimento comercial, que retratava o filho morto, com o dorso nu, deitado em uma mesa de necrotério.

O Naturalismo, presente na obra Casa de Pensão, é uma vertente literária dentro do Realismo. Suas características específicas são: o determinismo, sendo as personagens modificadas pelo ambiente em que vivem, pelo momento histórico e pela herança genética; a animalização e sexualização das personagens; e a inclinação ao pensamento socialista em detrimento do pensamento burguês.
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O Cortiço

O Cortiço foi publicado em 1890 e bem recebido pela crítica, fato que se deve à sintonia que o autor tinha com a doutrina naturalista muito prestigiada na Europa do século XIX. É composto por 23 capítulos que retratam a vida das pessoas em uma habitação coletiva – o cortiço, situada na cidade do Rio de Janeiro.

A obra é o marco do Naturalismo Brasileiro; relembrando que essa escola objetivava comprovar as teses científicas por meio de suas personagens, por isso essas obras eram chamadas de romances de tese. Mostra como o comportamento das personagens é influenciado pelo meio, pela raça e pelo momento histórico em que se insere, assim como a mistura de raças serve para a degradação humana. Portanto, a obra tece diversas críticas às diferenças sociais.

O Cortiço narra a busca do português João Romão pelo enriquecimento e para tal ele explora os empregados e é capaz de tudo para atingir seus objetivos. Romão é dono do cortiço, da taverna e da pedreira. Bertoleza, sua amante, o ajuda trabalhando sem descanso. Opondo-se a João Romão, está Miranda, um comerciante bem sucedido que disputa com o taverneiro um pedaço de terra para aumentar seu quintal, entretanto, não havendo acordo, há o rompimento provisório da relação entre eles.

João Romão motivado pela inveja que tem de Miranda que possui uma condição social superior passa a trabalhar de forma árdua e a privar-se de certas coisas para enriquecer mais que o outro português. Entretanto, quando Miranda recebe o título de Barão, João Romão entende que não basta ter dinheiro, é necessário também ter uma posição social reconhecida e ostentar certos luxos, como frequentar lugares requintados, teatros, usar roupas finas, ler romances etc, isto é, inserir na efetiva vida burguesa.

Quando Miranda recebe o título de Barão e passa a ter superioridade afirmada sobre seu rival, João Romão opta por várias mudanças no cortiço, que agora ostenta ares aristocráticos, perdendo as características de miséria e desorganização, passando a se chamar Vila João Romão.

Há, em paralelo, os moradores do cortiço que têm menor ambição, dentre eles, Rita Baiana e Capoeira Firmo, Jerônimo e Piedade. O romance busca mostrar a influência do meio sobre o homem, um exemplo bem claro disso é o português Jerônimo que tem uma vida exemplar, porém passa de trabalhador disciplinado para preguiçoso, displicente, para justificar afirma que “o calor dos trópicos tiravam-me as forças do corpo”.

Como estratégia de ascensão social João Romão pede a mão da filha de Miranda, porém, Bertoleza representa um empecilho já que percebe as manobras do dono do cortiço para livrar-se dela e exige usufruir dos bens que ajudou a acumular. Para se livrar da amante, Romão a denuncia como escrava fugida e em desespero Bertoleza comete suicídio, assim o caminho fica livre para o matrimônio de João Romão.

Em O Cortiço, o tempo é linear, com início, meio e fim. Embora não sejam mencionadas datas, apreende-se que a história se passa no Brasil do século XIX.

A obra explora dois espaços. O primeiro é o cortiço, um amontoado de casas desorganizadas, onde vivem os pobres. Representa a promiscuidade das classes baixas e a mistura de raças; funcionando como um organismo vivo (biológico). Junto a ele estão a pedreira e a taverna do João Romão.

O segundo espaço é o sobrado do Miranda, ao lado do cortiço, representando a burguesia ascendente do século XIX. Esses espaços fictícios lado a lado geram uma mistura de raças e são enquadrados no bairro de Botafogo, evidenciando a exuberante natureza do local como meio determinante.

Fontes:
Uma Lágrima de Mulher
Diário Literal
Visionvox. Sinopses.

Casa de Pensão
Wilson Teixeira Moutinho, in site Cola da Web. Resumos.

O Cortiço
Miriã Lira, in site Cola da Web. Resumos.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 5

 


Raul Pompéia (Quase Tragédia: Conto da Lua-de-Mel)

Quando se é recém-casado por esses primeiros dias velozes que fogem para o passado, com uma rapidez incrível, em que almeja-se ardentemente que a noite desça, porque se ama o recato das sombras, em que suspira-se pela manhã, porque a manhã traz aquela preciosa luz fresca que convida a esses passeios ricos de efusões e mútuas expansões amorosas. Nesses rápidos dias que os europeus gostam de saborear à beira do Adriático, cobrindo-se com o céu da Itália, ou no meio dos lagos da Suíça, entre os nevoeiros que descem das cumeadas glaciais e brancas. Nesse fragmento de vida que os Fluminenses passam refugiados nas alturas verdes e saudáveis da Tijuca, nos saborosos dias da lua-de-mel, há certas confidências murmuradas docemente entre os esposos, confissões muito em segredo, que só entre os dois pombinhos se dizem, e como arrulhos se perdem na ventania que a floresta manda...

E assim deve ser. Tal é a doçura estranha dessas conversações, tal é a intimidade religiosa, em que se confundem a expansão e a reserva, num mistério tão delicado, que é melhor, muito melhor que se percam no espaço, longe dos ouvidos indiscretos como o canto do pássaro na mata virgem...

Foi numa dessas entrevistas meigas e misteriosas, que a pequena Adélia pôde saber porque motivo, pouco antes do seu casamento, Eduardo deixara dois dias em seguida de ir vê-la à casa do pai e soubera também o motivo daquela palidez cruel com que ele reaparecera, rindo muito, jurando que aquilo fora um ligeiro incômodo, que já estava perfeitamente bem, sem conseguir entretanto, ocultar absolutamente que sofria.

Haviam se casado.

Aqueles dois dias e aquela palidez, foram a tristeza da sua alegria no casamento.

Eduardo estava pálido, dentro da casaca preta que mais pálido o fazia. Adélia ficara também pálida e melancólica.

Quando ela soube o motivo, quando descobriu a cicatriz recente que ele tinha pouco acima do calcanhar direito, foi então que a melancolia desapareceu-lhe, mas como não sofreu ainda de vê-lo doente da ferida que mal acabava de fechar-se!

Pôs-se a refletir no fato.

Teve medo de interrogar positivamente Eduardo. Fez conjeturas, todas as conjeturas, e tratou muito dele, maternalmente como uma irmã, como uma filha, muito empenhada em vê-lo completamente restabelecido...

Eduardo pelo contrário inebriado de amor por ela, não cuidava de si. Só queria beijá-la. Cobria-lhe de beijos as pálpebras, ambas as faces, os lábios, beijava-lhe até, coisa incrível! Beijava-lhe a concha das orelhinhas rosadas de veludo! Pobre Eduardo!...

Afinal Adélia veio a conhecer tudo. Tudo... que poema! Escapara de ver na candura nívea das asas do seu amor uma triste mancha de sangue. A história do seu noivado por um triz que dava em tragédia e todos os sorrisos e juras por uma linha que não degeneraram em pranto e desespero.

Felizmente tudo ficara em riso, o sangue se reduzia a salpicos vermelhinhos, pontuando as asas de neve dos seus Cupidos.

Parece invenção. Entretanto, a cicatriz lá estava, pouco acima do calcanhar de Eduardo, como a prova palpitante.

Foi assim.

Moravam em Santa Teresa. Da casa de Adélia, no alto, avistava-se embaixo, numa das ruas da encosta do morro, a casa onde morava Eduardo.

Todas as tardes, depois que ele a pediu em casamento, o moço subia a ver a noiva e visitar a família do futuro sogro.

Raramente faltava. Quando ficou determinado o dia do casamento, as visitas de Eduardo tomaram-se infalíveis. Em todo o lugar falava-se do próximo enlace.

Repentinamente, com grande espanto de todos da casa de Adélia e principalmente desta, Eduardo falta um dia. Mandaram saber porquê.

— Estava incomodado.

Falta segunda vez...

Duas vezes... Era incrível...

Um noivo como ele faltar duas vezes... era grave.

Nova visita.

— Vai melhor... mas...

Todos ficaram sobressaltados.

Quanto caiporismo!

Havia alguns dias que tudo acontecia naquela casa. Um telegrama viera, noticiando moléstia grave de um parente que estava em Cabo Frio, o padrinho de Adélia, para sinal. A estouvada da Joana quebrara uma dúzia de pratos, por querer carregá-los todos duma vez em pilha; ainda mais, entrara pelas janelas da frente, uma grande borboleta preta que fora pousar exatamente na caixa do enxoval da menina...

O cão do vizinho uivara toda a noite...

Acontecia tudo. Até na véspera mesmo da doença de Eduardo, a casa fora visitada à noite, pelos ladrões que haviam espatifado a hera de um muro que dava para a ribanceira de um morro por onde naturalmente os gatunos haviam passado. E isso não fora uma vez só. Primeiro, o pai de Adélia muito escrupuloso dos seus penates, examinando o jardim, como de costume vira o caminho aberto na hera. No outro dia achou a planta mais estragada... já começavam a desaparecer peças de roupa do quintal, por exemplo um lenço de Adélia que ficara no coradouro...

No outro dia, o velho esperou.

Pôde, apenas, distinguir uma sombra escorregando para o lado da ribanceira. Correu ao jardim com a decrépita espingarda, que representava a derradeira segurança do seu lar, mas não viu nada.

Ainda uma vez, esperou o tratante (que afinal parecia não ser tão bandido como se supusera a princípio, porque as galinhas não desapareciam do galinheiro, nem as roupas do coradouro). O velho pai de Adélia escorou-o, dedo no gatilho e olho na hera do muro. Logo que percebeu a sombra... fogo!...

Não se ouviu nem um grito, através da noite, mas o pai de Adélia não teve ânimo de ir verificar se acabava de fazer um cadáver...

Na manhã seguinte, achou-se sangue pela hera e pelo chão.

Contudo a preocupação de Adélia não era a borboleta preta na caixa do enxoval, nem o cão do vizinho uivando à noite, nem mesmo as suspeitas verificadas de que os ladrões visitavam o quintal... A sua preocupação era outra.

Havia dias, que ela encontrava, todas as manhãs, uma flor, no peitoril da janela do seu quarto.

Não acreditava em duendes, mas tinha medo de verificar qual era a mão misteriosa que depunha ali o matutino brinde. Depois, era tão bom não saber coisa alguma e adorar todo o dia aquela rosa, aquele cravo, ou aquele raminho de violetas que dir-se-iam cair do céu com o orvalho!...

Repentinamente deixam de aparecer as flores!...

E esta desgraça, que ela amargava de si para si intimamente, como nos dias anteriores, saboreara a contemplação dos brindes misteriosos, acabrunhava-a, mortificava-a.

Uma suspeita que minava-lhe o cérebro, avultou, ocupou-lhe o espírito todo... Aqueles ladrões... aqueles ramos de hera quebrada no muro da ribanceira... o sangue... o sangue sobretudo!...
.................................................................

Uma daquelas entrevistas deliciosas de mel veio trazer luz às apreensões. O gatuno era ele. Levara o lenço de Adélia com que santa intenção! O pobre... As flores era ele o duende que as depunha todas as noites no peitoril...

E o tiro! O horrível tiro da paternal vigilância fora também para Eduardo!...

Eis aí como o noivado de Adélia teve uma quase tragédia e como os Cupidos do seu amor tiveram salpicos rubros na brancura das asas.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 7


A criança encanta, enleva,
mas, com seu ar inocente
quando a gente crê que a leva
ela está levando a gente!
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A mulher tinha a mania
de achar coisas no abandono,
até que encontrou um dia
um apartamento sem dono.
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À pintura antiga e eterna
hoje chamam de caduca.
Mas quem gosta da moderna
deve ser "lelé da cuca".
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"Aqui jaz na lousa fria
o José João da Espinhela"
(Foi ao encontro de Maria
e encontrou o marido dela).
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Briga tanto o Zé Noronha
com a esposa –  que o filhinho,
por vingança da cegonha
sai a cara do vizinho.
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Casa a Maria do Céu...
e que grande trapalhada
porque segurando o véu
segue toda a filharada!
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Coleantes, envolventes,
há mulheres perigosas.
Mas, também, como as serpentes
nem todas são venenosas.
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Com seu destino sofrido
nunca a mulher colabora:
– chora por não ter marido
e quando tem... também chora!
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Curitiba é uma risonha
cidade de muito brio,
porque o amigo da vergonha
é aqui chamado: Frio!
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Diz a mulher ao marido
(velho bem intencionado)
"daqui a meses, querido,
vai nascer teu enteado".
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Era Amélia. Ele quisera
ter mulher assim somente,
até saber que ela era
a Amélia de muita gente.
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É triste lembrar (se é!)
e à nossa vaidade ataca;
que o homem foi chimpanzé
e a mulher já foi macaca...
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Hoje a moda, com jeitinho,
tapa apenas de relance.
Se despenca o tal trapinho,
"honni soit qui mal y pense"!
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Esta expressão francesa significa: «Maldito seja quem pensa mal a esse respeito!»
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Homem velho, ainda matreiro,
por qualquer mulher se engraça,
mas é só cão perdigueiro;
corre atrás, não come a caça.
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Mesmo que ele seja "um pão"
quando se torna marido
ela tem indigestão:
como enjoa o pão dormido!
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"Não tem profundeza a trova"
disse alguém - profunda asneira.
Se há muita poesia nova
mais rasa do que peneira!
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No enterro de seu Pessoa
há um aviso aos ignotos:
"Favor não trazer coroa,
só ramos cheio de brotos"
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Nua, a Godiva, coitada!
causou surpresa incomum;
ver hoje mulher pelada
não causa "suspense" algum.
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O casamento é um remanso
início de um doce lar,
onde ele vai pra descanso
e ela vai pra trabalhar !
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O homem pensa, sofisma.
Cria problemas, dá murro.
O burro, calmo, nem cisma,
qual é, dos dois, o mais burro?
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Paquerador o Andrada,
na moto ele tanto ronda,
que até a Maria Quadrada
já está ficando redonda.
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Qualquer dia Dona Lua
diz ao ianque que a aporrinha:
"Fica, bicho, lá na tua
que eu também estou na minha".
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Quem tem mulher monumento
e vizinho por ali...
lembre o antigo testamento:
mate primeiro o Davi.
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Se o julgamento ao alheio
se estampasse na fachada,
o mundo estaria cheio
de muita cara quebrada.
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– Seu Delegado examine
o que da luta sobrou.
– Qual foi o móvel do crime?
– Isso o morto não falou.
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Tanta "pílula" espalhada...
tanta gente sem-vergonha...
que uma lei foi promulgada
dando férias à cegonha.
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Treze pontos, bem contados,
na esportiva, que alegria!
Mas, depois, mil afilhados,
quem deles me livraria?
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Vai a Paris, por capricho,
e volta esnobando a dona:
"Fui ao Louvre. Quanto bicho!
Mas não era "lisa a mona".

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Ao Dr. Mário, de coração

Ele chegou aqui no início de 1960, rapaz ainda, com 28 anos. Veio conhecer a cidade a convite de um primo, Dr. Propício Caldas, um dos grandes pioneiros da medicina em Maringá. De pronto gostou, ficou. Até hoje não teve tempo de se aposentar.

O queridíssimo Dr. Mário Lins Peixoto, nosso primeiro cardiologista, nasceu em Rio Largo, nas Alagoas. Formado pela Universidade Federal de Pernambuco, fez residência médica no Hospital dos Servidores do estado no Rio de Janeiro e três anos de pós-graduação em cardiologia no Hospital Mount Sinai de New York, nos Estados Unidos.

Com esse belo currículo, em pouco tempo tornou-se um dos mais conceituados profissionais em sua especialidade, projetando-se não apenas em todo o Paraná, mas também em âmbito nacional. Basta lembrar três dos seus muitos títulos: membro titular da Academia de Medicina do Paraná; membro efetivo da Sociedade Brasileira de Cardiologia; diretor clínico da Cardioclínica Maringá e do Hospital Paraná.

Minha primeira conversa com o Dr. Mário Peixoto foi na primeira vez em que resolvi fazer um checape. Ele disse que já me conhecia de nome, costumava ler o que eu escrevia nos jornais, e revelou que, como eu, também gostava de ler e escrever. Após fazer aqueles exames todos, brincou comigo: “Poeta não dá trabalho para cardiologista. Pode ir tranquilo, porque você vai ter vida longa”. Eu tinha uns 30 anos na época, hoje tenho 88.

Depois convivi durante muito tempo com ele no Rotary e aproveitei sempre cada oportunidade para aprender bastante. Além de ler muito, Mário conhece o Brasil todo e boa parte do mundo. Fala de qualquer assunto com aquela autoridade de quem realmente sabe das coisas. Literatura, música, pintura, economia, política, história.

Mas o que mais admirei nele logo que o conheci foi o tamanho de sua generosidade. Lembro um momento comovente. Num certo dia fui fazer uma reportagem na Santa Casa e vi o Dr. Mário numa salinha recebendo umas pessoas bem pobres. Um dos religiosos que ali trabalhavam me contou: “Esse doutor tem lugar garantido no céu. Toda semana ele passa uma tarde inteira aqui atendendo carentes. E não cobra nada”. Já ouvi de vários colegas dele outras histórias parecidas com essa, referindo-se à bondade do Dr. Mário Peixoto.

Com muita razão a Câmara Municipal outorgou ao ilustre cardiologista o título de Cidadão Benemérito de Maringá, por iniciativa do seu colega D. Heine Macieira, então vereador. Mário é um dos personagens mais marcantes da história desta cidade, participante ativo de numerosas instituições sociais, ex-presidente do Rotary Clube e da Sociedade Médica de Maringá, ex-vice-presidente da Sociedade Paranaense de Cardiologia. Um homem fora de série.

Que bom que Deus me tem permitido o privilégio de privar de sua preciosa amizade e de sua linda família há mais de meio século. Um abração, Doutor. De todo o coração.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 27-5-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Arquivo Spina 50: Ana Luzia Moura


 

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 45) Chá de panela

O CONVITE ENDEREÇADO à Felisbina Monteverde, estava sobre uma espécie de aparador de canto, sobressaindo, ao lado dele, um espelho oval enorme. Enfiado entre um monte de porta-retratos, um esquecido envelope branco, de tamanho grande, jazia silencioso, à espera de que alguém, ao menos, se lembrasse de que ele estava ali. Também marcando presença, no velho móvel, dois castiçais que ela havia trazido de uma viagem de fim de semana, numa excursão que fizera à Rua Vinte e Cinco de Março, em São Paulo. Nessa peça, ficavam também, o telefone de linha, e, praticamente, todas as chaves das portas da casa. Enfeitando o rosto do envelope, um punhado de coraçõezinhos azuis e algumas rosas de cores às mais diversas, em cima do que parecia ser uma mesa com xícaras repousando sobre pires coloridos, destoando, entretanto, do bule que dava a impressão de ser de alumínio.

Também se destacavam quadrados brancos e pretos, como um tabuleiro de xadrez, com os guardanapos, ao lado, dobradinhos e à espera de serem usados. Felisbina pegou o curioso envelope, abriu e leu um bilhete que veio grampeado a um cartão-convite. Dizia o seguinte. “Amiga, finalmente vou desencalhar. Deixarei de ser solteira Meu casamento está marcado e será dentro em breve”. CONVIDO VOCÊ PARA O MEU CHÁ DE PANELA QUE DAREI NO DIA DE HOJE”. Abaixo, vinha o dia e a hora, sublinhados com uma caneta esferográfica vermelha, e, claro, o nome de quem promovia o tal encontro: “JULIETA”. Em seguida, o local onde aconteceria o evento. Terminando a singela convocação, uma frase simples, mas de certa forma impositiva: “CONTO COM A SUA PRESENÇA. NÃO FALTE!”. A seguir, um “EM TEMPO” e, na frente, uma pequena linha pontilhada onde a beldade que deixaria a solteirice colocou o que gostaria de ganhar.

E o que exatamente a Julieta gostaria de ganhar da amiga Felisbina Monteverde? Com a mesma caligrafia feia, de quem escreveu o nome dela, como anfitriã, porém, em letras garrafais, o desejo incontido: “ESCUMADEIRA PARA ARROZ COM CABO AZUL”, destaque, entre parentes, a loja e o endereço onde o tal apetrecho poderia ser encontrado. Casa dos Quebra Galhos. E uma observação de suma importância: “FAVOR DISFARÇAR O PRESENTE”. Terminava, por sinalizar o endereço da casa de festa onde aconteceria o encontro. “RUA DAS OLIVEIRAS, 1743 ao lado do EDIFÍCIO POLPA DE LARANJA. O referido prédio é uma torre alta e magra (dá a impressão de estar fazendo regime para se manter em pé), de trinta andares com pastilhas brancas desbotadas de ambos os lados. Em frente a ele, tem uma farmácia. Depois de passar a 100% DVD, uma loja que aluga fitas e bolachões antigos, verá a casa onde receberei as minhas convivas. Não tem como errar”.

Na verdade, o que fez a Felisbina lembrar do tal chá de Panela foi o telefone que, de repente, passou a tocar insistentemente. Ao atendê-lo, sem querer, topou com o convite. Tratou de se livrar do chato que estava do outro lado da linha, assim que leu o dia e a hora. Deu um tapinha na testa, apreensivamente apavorada:

— Caraca. É hoje. Tenho menos de uma hora!

Ligou imediatamente para uma vizinha que morava dois andares acima do seu.

— Malvina? Sou eu, Felisbina...

— Quem? Felisbina? Não conheço nenhuma...

— Do seu prédio, apartamento 405.

— Ah, Felisbina, claro, desculpa pela gafe. Esposa do falecido Carlos Bolinha. Que cabeça, a minha. O que você manda, amiga?

— Estou com um problema. Aliás, um problemão...

— Posso ajudar?

— Tenho de estar em um chá de cozinha, ou de panela, sei lá, qual a diferença, dentro de uma hora e ainda não comprei o presente...

— Calma. O que a pessoa quer ganhar?

— Espere. Deixa ver aqui... li e esqueci.

— Achei: uma escumadeira com cabo azul.

— Fácil, amiga. Vá até o centro, na Casa dos Quebra Galhos e encontrará o que precisa.

— Eu sei. O problema não é esse...

— E qual é?

— A Julieta...

— Quem é Julieta?

— A do chá...

— Ah!, tá bom. E ai?

— Ela quer que eu disfarce o presente. Como é que se disfarça uma porcaria de um presente?

— Qual é mesmo o bagulho que ela pediu?

— Uma escumadeira com cabo azul.

Silêncio momentâneo. Aflição de ambos os lados.

— Amiga, vou ligar para a Chiquinha. Ela deve saber. Nunca soube que alguém disfarçasse um presente...

— Nem eu! O que é que eu faço?

— Aguarde. Ligarei para ela e, em seguida, voltarei a falar com você.

Malvina desligou o telefone com um “tchau, não saia daí”. Menos de um minuto depois, retornou a ligação.

— Amiga, desculpe. Qual é mesmo o seu telefone?

— Malvina, você acabou de me ligar...

— É verdade. Desculpe. Que cabeça!

Felisbina estava a ponto de arrancar os cabelos quando o telefone gritou, de novo, dez minutos depois. Chegou a tomar um baita de um susto.

— Alô? Quem é?

— Sou eu.

— Eu quem?

— Malvina, sua amiga, dois andares acima do seu pavimento.

— Ah, desculpe. Fala minha amiga. Conseguiu contato com a Chiquinha?

— Sim.

— E o que ela falou com relação a disfarçar um presente?

— Ele me disse para você ser prática. Nada de ir em loja e gastar dinheiro com bobagens. Simplesmente se dirija  a  uma papelaria qualquer aí no centro e encomende uma caixinha de presente bem bonita e, dentro dela, não coloque nada.

— OK. E quanto a Julieta abrir?

— Ela não irá encontrar absolutamente nada, é evidente.

— Mas e a escumadeira de cabo azul?

— Diz a ela que, como pedido, você disfarçou.

— Ela vai saber que é sacanagem de minha parte. Poderá até cortar a nossa amizade...

— Qual o quê! Se ela reclamar, você alega que ela foi com tanta sede e afoiteza ao embrulho, na hora de abrir, que não notou a escumadeira azul no fundo da embalagem. Joga aquela balela do “você não olhou para o meu presente com os olhos da alma, e, sim com a visão da ganância desenfreada". Apimente a cena com umas gotinhas de “magoei”. Sempre cola...

E terminou, acrescentando:

— ...Precisa ter sensibilidade, amiga. Aprenda a ter sensibilidade que você verá a linda escumadeira de cabo azul que lhe trouxe.

— Sei não. Parece esquisito...

— Vai na fé. Dará certo. Confia.

Felisbina passou numa papelaria, comprou uma embalagem chamativa, pediu um embrulho caprichado com direito a lacinho e tudo e se mandou para o local indicado no bilhetinho.

Logo na chegada, por sorte, deu de testa com a Julieta recebendo a galera na porta de entrada. Assim que avistou a amiga, tremeu na base. Não poderia desistir. Já estava lá, carecia seguir em frente. Tentou se achegar à jovem o mais rápido possível e entregar o pacote lindamente preparado. Três ou quatro pessoas, todavia, ao mesmo tempo, se aboletaram ao seu entorno. Sem perder tempo, Felisbina passou-lhe o presente, ou seja, a caixa vazia, o que não causou nenhum alvoroço, de pronto, em face, claro, das demais criaturas que se abraçavam à felizarda, em jubilosa efusividade. Uma semana depois, o telefone tocou. Era a Julieta.

— Oi, Felisbina. Tudo bem? Desculpe, aquele dia quando me entregou o presente, não pude lhe dar muita atenção. Me perdoa, por favor.

— Nada a desculpar. Fique tranquila. E aí, gostou da escumadeira de cabo azul?

Nesse momento, Julieta começou a chorar copiosamente.

— O que foi minha amiga? Não gostou da escumadeira?

— Felisbina, você não vai acreditar. Em meio ao furdunço, alguém me roubou a lembrança que você tão carinhosamente me deu de coração...

— Credo, amiga, logo o meu presente que lhe dei com todo o amor do fundo de minha alma?! Como tal fato pode acontecer?

— Não faço a menor ideia. O sem vergonha ou a vagabunda, sei lá, teve a ousadia de levar o presente e deixar a caixa vazia...

Felisbina, por pouco, não caiu na gargalhada. Achou melhor conter o riso e se solidarizar às frustrações da amiga.

— Meu Deus, Julieta, que horror!

— Bota horror nisso, amiga Felisbina. Estou pasma!

— Eu idem. Você não imagina o meu espanto. A que ponto as pessoas chegaram.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da Vida na Privada”.

Barão de Itararé (Versos Diversos) 1

CUIDADO

A mútua simpatia, que nos liga,
Não deveria temer nenhum traidor.
Mas bem compreendo, minha doce amiga
Que é preciso ocultar o nosso amor.

Não quer isto dizer que não prossiga
A te amar, cada vez com mais ardor -
Mas... alguém nos vigia e alguma intriga
Pode toldar o céu, todo fulgor.

Evitemos, portanto, de nos ver.
Nós sabemos o quanto nos amamos,
A minha vida é tua, a tua é minha,

Paciência, pois, que havemos de vencer!
Por enquanto, somente, precisamos
Muita cautela e... caldo de galinha.
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JURAMENTO

Juro, por Deus, por tudo que é sagrado
E pela santa luz que me ilumina,
Que teu olhar me deixa transtornado
E, ao mesmo tempo, me fere e me fulmina.

Por causa desse olhar enfeitiçado,
Pelo feitiço da sua luz divina,
Nem Deus, que tudo vê, não imagina,
Por quantas privações tenho passado.

Basta de dor! Já chega o que hei sofrido!
Serás minha, aconteça o que aconteça,
Porque não será em vão que te contemplo.

Mas se não for por ti correspondido,
Juro que meto um tiro na cabeça,
Na cabeça... de um prego, por exemplo.
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MALCRIADA

Essa jovem que vês — um anjo louro —
Já foi o alvo do meu sincero afeto.
Morava com a avó, o mais completo
Modelo de mulher, talhado em ouro.

Mas a avozinha achava um desaforo
A perspectiva de um futuro neto.
Por isso mesmo, nem por um decreto,
Queria consentir no tal namoro.

Quando me via, a avó lhe perguntava:
"Quem é aquele rapaz impertinente,
Que anda contando as lajes da calçada?”

E ela, séria, pois nada a perturbava,
Respondia com cara de inocente:
"Esse rapaz é o noivo da criada!..."
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PROPOSTA

Um rapaz serio, esplêndido estudante,
Já cansado da vida de solteiro,
Considerando a crise apavorante,
Quer casar-se com moça de dinheiro.

Esse rapaz sou eu... Quero primeiro
Ver vil metal e ver papel "sonante"...
Depois... detalhes á posta restante,
Pois não tenho confiança no carteiro.

Um casamento assim é um jugo brando...
Prisão perpétua, que, de quando em quando,
Pode aceitar uma ordem de "habeas-corpus".

Se a deidade é de idade já avançada,
Tenho uma condição estipulada:
— União de bens, separação de corpos.
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TRAGÉDIA

Eram dois entes que o amor um dia,
Com ternos laços, sólidos, ligou.
Ele — de coração a estremecia;
Ela — jamais por outro suspirou.

Viveriam eles numa paz eterna,
Se um dia não surgisse grossa briga
A sogra foi meter-se na baderna
E levou uma facada na barriga.

A rapariga ao ver a sua mãe morta
Espichada no chão, de boca torta,
Caiu também, de lágrimas coberta...

E o pobre do rapaz, alucinado,
Atirou-se do alto do sobrado,
Deixando a sogra e... a janela aberta…

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.  (II Parte – Cobras e Lagartos)

Visconti Coaracy (A Máscara de Gesso)

O conto publicado em 1873, foi convertido para o português atual pelo editor do blog.
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Uma noite estávamos quatro reunidos no gabinete de uma das nossas mais festejadas artistas. Noêmia, a sedutora atriz, acabava de desempenhar no teatro um desses papéis criados pela fantasia do poeta, impossíveis sem dúvida na realidade da vida, mas que produzem sempre efeito no ânimo das plateias.

No último ato do drama, Noêmia tivera de aparecer aos espectadores vestida de negro, pálida, desgrenhados os cabelos, as faces cavadas, e fundos e empanados os olhos, como uma visão de além túmulo, mais sombra do que mulher, mais ficção do que realidade.

Naquela cena desenvolvera Noêmia tamanho talento, que o efeito fora completo: a atriz desaparecera; representara o espectro.

Findo o espetáculo, acompanharam-na à casa, Estanisláo Pimentel, o ator consciencioso tão justamente aplaudido, e tão cedo roubado á vida, M..., o mimoso folhetinista, e eu.

Noêmia fizera servir o chá em seu gabinete, onde permanecemos depois, entretidos em uma dessas variadas palestras que eram ali habituais. A conversação voltara naturalmente sobre o gênero da peça em que a interessante atriz conquistara-o aquela noite novos louros para o seu diadema de glória.

Negava M... com pertinência e cerrada lógica a possibilidade do personagem representado por Noêmia. A espirituosa atriz, com aquela linguagem fácil, tão singela quanto graciosa, e que fazia uma das mais brilhantes seduções que possuía, sustentava a verdade do papel.

Durava já alguns minutos a discussão, quando Noêmia, voltando-se para o ator, que até então conservara-se silencioso a fumar no canto de um divã, e como alheio ao que se falava no gabinete, perguntou-lhe sua opinião.

— Eu creio no espectro - respondeu Estanisláo, dando à voz uma harmonia lúgubre e tal acentuação de verdade, que não ousamos rir.

Apenas o folhetinista fez um gesto de negação.

— Creio, porque vi - acrescentou o ator.

E depois, com voz mais lobrega ainda e certo tom cavernoso, ajuntou como sob a pressão de uma dolorosa reminiscência:

— E senti!...

Seguiu-se um momento de silêncio.

Passados, porém, aqueles primeiros instantes, a espirituosa atriz prorrompeu em estrepitosa gargalhada, em que a imitamos, M... e eu.

Mas o ator, erguendo-se hirto, bradou:

— Riam-se de mim, que não minto!...

Aí então fitamos os olhos nele.

Estava terrível    de ver-se.

O semblante decompusera-se-lhe, cobrindo-se de estranha lividez, seus cabelos estavam ouriçados. Nos olhos tinha aquela expressão assustadora do pavor, e a boca, entreaberta e deixando aparecer os dentes alvos, contraía-se-lhe em franzimentos angustiados e dolentes.

Ele erguera-se de um só movimento, como se fora impelido por estranha força, e conservara-se de pé.

Nenhum de nós três ousou aproximar-se-lhe; ninguém ousou rir, nem se atreveu a falar-lhe. Após alguns momentos de completa imobilidade, Estanisláo estendeu o braço, tomou de sobre a mesa um copo d'água e esvaziou-o com devoradora ansiedade. Em seguida sacudiu os vastos cabelos negros e pôs-se a cruzar silencioso o gabinete.

Nós olhávamos para ele, e não procurávamos sequer com a palavra, com o menor gesto, pôr um termo àquela agitação. Parecia que recebíamos no ânimo a contra-pancada da emoção, qualquer que ela fosse, que daquele modo operava no espírito do ator.

Alguns minutos decorreram assim. Finalmente Estanisláo pareceu ir serenando, aproximando-se do grupo que formávamos a um canto do gabinete, sentou-se junto de nós, e disse com certa irritação na voz:

— Ouçam!

Depois como fazendo um esforço sobre a própria vontade, começou a falar assim:

“—Há cinco anos que isto foi. Passara a tarde na oficina do Querino, o hábil escultor que todos nós conhecemos, e ali impressionara-me a mascara de uma mulher, vazada em gesso, que pendia entre outras na parede escura.

“Olhara distraidamente para todas aquelas figuras, mas a minha atenção fixava-se com irritante pertinência na máscara de mulher. Não sei se pela posição por que ao acaso fora pendurada ali, não sei se pela gradação frouxa da luz que recebia, ela sobressaia às outras.

“Deveria ter sido formoso o semblante    morto sobre o qual fora moldada aquela máscara. A morte, gelando-lhe a fronte ampla, não conseguira apagar de todo o sorriso com que a sua vítima acolhera-lhe talvez a aproximação. E naquele sorriso que sobrevivera havia um certo tom de escárnio, ou antes uma pungente ironia que lhe crispava os lábios, arregaçando-os no canto da mimosa boca. A tudo isto notava eu, e vezes havia que a imaginação por tal modo se me prendia a expressão gravada na máscara, que chegava a supor viva e como que entrevia movimentos vagos, indecisas contrações naquele semblante de gesso.

« Querino notou a persistência com que eu fixava o molde, e em uma das vezes em que mais presa eu tinha nele a atenção disse-me o escultor :

“— Era uma linda mulher.

“— Era? – perguntei eu.

“— Pois se morreu!

“ — Ah!1

“Passaram-se alguns momentos, durante os quais não afastei o olhar da máscara, e tornei a perguntar;

“— Aquela mulher morreu?

“— Já te disse que sim. Ha seis meses.

“ — É pena!  – murmurei.

“Entraram então algumas pessoas na oficina, e eu logo após saí.

“Durante o resto da tarde, à noite, durante o espetáculo, não se me afastava da ideia a lembrança daquele rosto.

“Era uma perseguição desesperadora, a que não podia esquivar-me.

“Tínhamos tido essa noite espetáculo no Lírico. Eu entrara no último ato, até a ultima cena, e demorara-me no camarim lavando-me e vestindo-me, de modo que fui talvez o último a sair. Dirigia-me para casa, quando ao deixar o campo, descendo para a cidade, distingui a pouca distância de mim e caminhando à minha frente, no mesmo sentido que eu. um vulto de mulher.

“Moço, ardente, impetuoso, apressei o passo e aproximei-me dela.

“A noite era de luar: mas naquele momento uma ampla nesga de nuvens sombrias ocultava a lua. Não obstante, havia claridade bastante para eu adivinhar uma mulher moça naquela que caminhava perto de mim.

“Trajava de negro. Era esbelta. De estatura elevada, delgada e flexível, mais a resvalar do que caminhando, cingia-se como de uns tons vaporosos e sutis, o que realizava aquela ideia da conhecida gravura da Virgem da noite, onde há a luta da sombra com o corpo, em que a forma some-se na nuvem, em que a nuvem desenha a forma. Espécie de sonho através da invisibilidade.

“O semblante não lhe podia eu distinguir. Denso véu da cor do vestido caia-lhe ao longo das faces em espessas pregas.

“Mas devia ser bela. Que o era, sentia-o eu.

“Caminhei a seu lado em silêncio durante alguns minutos, e notei que nenhum gesto de esquiva ela fizera.

“Aquela indiferença, ao mesmo tempo que impunha-me respeito, incitava-me o espírito. Mas era moço, já disse, e o sangue nessa idade desconhece a razão. Falei-Ihe. Disse não sei que trivialidade dessas que são tão comuns em condições idênticas. Não obtive resposta. Mas, se ela não respondeu, não se mostrou também esquiva. Insisti.

“Sempre o mesmo silencio. E deste modo, ela calada, eu continuando a falar-Ihe, descemos juntos até o Rocio. Aquele silêncio pertinaz, aquela calma sombria, produziram em mim nervosa irritação.

“Entrevira uma aventura fácil, encontrava a indiferença, a resistência mais difícil de vencer. Entendi que devia romper. E, pois, disse-lhe despeitado, mas disfarçando o despeito com certo tom displicente :

“— Ora tenho sido parvo! Gastar o tempo em fazer a corte a uma mulher feia!... Que estupidez!...

“Havia brutalidade nesta frase. Esperava eu que ela se agastasse e seguisse direção oposta. Pois não foi. Parou e endireitou-se com a altiva imponência de uma doida. Depois, com a mesma graça e altivez no gesto, ergueu de um só movimento o véu.

“As nuvens tinham-se espalhado no céu, descortinando a lua, e os raios daquela luz refletida cabiam obliquamente sobre o lugar onde paráramos.

“Ao movimento feito por ela eu me aproximara. Apenas, porém, fitei os olhos no seu semblante, recuei horrorizado e trêmulo, curvando-me para o chão.

“Sobre aquele corpo gentil, sobre aquele colo onde eu sonhara a mais faceira e graciosa cabeça, repousava a máscara de gesso.”

Estanisláo calou-se. Limpou o suor que lhe corria da raiz dos cabelos, e depois de passados instantes continuou:

“— E era bela aquela mulher, prosseguiu ele.

“Foi há cinco anos, e tenho ainda nos recessos da memória gravados aqueles traços puros e corretos da sua divinal formosura.

“Suponham um semblante de mármore, e essa alvura aumentada ainda pelo clarão do luar. Nesse semblante de ideal beleza imaginem uns olhos negros, mas de um brilho aveludado e frouxo, como o dos olhos que ainda não extintos parecem estar olhando já para a vida de além. Depois a boca contraída em um sorriso entre irônico e pungente, mas em lábios descorados, quase sem vida.

“E era belo aquele semblante; mas da beleza da morte! Havia nele não sei que angélica candura que atraía, ao mesmo tempo que despertava a ideia do cadáver!

“Ao ver aquela mulher, por semelhante hora da noite, trajada de negro, acreditava-se na sombra fugida de alguma tumba!

“Tinha o encanto da mulher que seduzia, mas revestia o fúnebre prestigio da visão que afastava. Parecia feita de um raio de lua e envolta em uma dobra de nuvem. No clarão que a iluminava adivinhavam-se fogos fátuos.

“Não sei quanto tempo durou aquela fascinação. Quando ousei erguer novamente os olhos, ela afastava-se ao longe.

“Apoderara-se de mim estranha vertigem. Sentia arrastar-me para ela, como a atração que experimenta-se à borda do abismo. Eu não exercia uma vontade: obedecia. Mulher ou sombra, estátua ou cadáver, cumpria que fosse minha.

“Havia nesta irritação uma animalidade feroz.

“Segui após ela. Momentos depois eu a tinha alcançado. Ela voltara à rua dos Inválidos, e parara em frente de uma porta que se conservava fechada. Ao aproximar-se, voltou-se para mim e disse-me:

“— Persiste ?

“Era a primeira palavra que pronunciava. Nunca mais ouvi falar assim. A voz saia-lhe como sumida e coada. Era mais sopro que voz. Tinha à vezes acentuação de gemidos, mas graduada com esquisita harmonia. Ao mesmo tempo que encantava o ouvido, produzia no ânimo sepulcral impressão. Parecia vir através de mortalhas.

“A sua voz participava daquele pavoroso prestígio do cadáver, que lhe marcava o semblante lívido.

“— Persiste? – perguntou ela.

“— Sim! - respondi, procurando disfarçar no laconismo da frase o calafrio que aquela palavra fez-me coar nas veias.

“— Sabe a quanto se expõe?

“— Não, mas não importa. Aceito tudo!

“— E se no fim houvesse a morte?

“— A morte! – repeli com um novo estremecimento.

“— Sim.

“— Morrerei!

“Ela pareceu contemplar-me por alguns segundos; meneou tristemente a cabeça, e murmurou em uma daquelas acentuações dolentes do gemido:

“— Mas o senhor é tão moço....

“— E tu és tão bela !

“A amargura acrimoniosa (amarga) do sorriso, que então franzia-lhe o lábio, não se descreve. Sente-se-lhe o efeito doloroso pungir no coração.

“— O senhor tem um futuro....

“— Quero que seja o teu.

“— O meu!....

E seus lábios fizeram um desses movimentos que traduzem a displicência.

“— O meu futuro é…  o desmanchamento do cadáver!

“Estas palavras foram ditas com uma acentuação tão lúgubre, que percorreu-me o corpo um estremecimento de morte. Mas a decisão estava tomada. Não vinha de mim. Era estranho poder que me impunha. Assim, respondi:

“— Embora ainda que eu te sinta cadáver desfazendo-te em meus braços; ainda que eu me decomponha contigo, aceito! 

“— Pois segue-me! – disse ela com voz incisiva.

“E penetrou na casa, cuja porta abriu-se sem que eu visse como. Entrei após ela. Subimos longa escada e paramos afinal em uma vasta sala, iluminada por quatro grandes candelabros; mas cuja luz amortecia-se, coada frouxamente através de espessos véus. Ao tom suavizado daquela luz os móveis tomavam aspecto pesado e sombrio, e nas cortinas do leito, levantado era meio do aposento, desenhavam-se figuras estranhas, que moviam-se com desesperador capricho à mais    leve agitação do estofo, ao tremor mais sutil da chama das velas.

“O ar ali dentro era quente e saturado de um perfume sutil, e que se entranhava no olfato com dolorosa suavidade, de modo que, em vez do langor, que habitualmente produzem os cheiros melindrosos, causava uma acerbada irritação no cérebro. A minha fantástica visão sumira-se por momentos, deixando-me a sós. Vinham-me então ímpetos de fugir. Chegara mesmo a erguer-me; mas sobrenatural atração prendia-me e obrigara-me a ficar.

“Tudo estava silencioso. Apenas o movimento do pêndulo de um relógio denunciava vida naquela sala. Entretanto esse relógio, que era o único a romper o silêncio ali, tinha o ponteiro persistentemente fixo na hora da meia-noite.

“Afinal consegui fazer um esforço sobrehumano, ergui-me e dirigi-me para uma porta que me pareceu ser aquela por onde houveramos entrado. Ia transpo-la, quando a mais sedutora visão conteve-me o passo.

“Era ela.

“Estava em frente de mim, sem o véu que lhe tapava o rosto, sem as roupas negras que amortalhavam-lhe o corpo, tal como a primeira mulher aparecera ao primeiro homem, como Phrynéa mostrara-se aos velhos juízes no tribunal de Atenas.

“Recebi-a nos braços, ébrio, febril e convulso, apesar do frio que ao seu contato me arrepiava os lábios, tocando nos lábios dela!”

O ator interrompeu-se, derreou a cabeça no respaldo da cadeira, e, semi-fechando os olhos, entregou-se por momentos à intima meditação, como se a memória lhe estivesse reproduzindo as emoções todas daquela noite.

Ele falava com tamanha impressão de verdade, a sua fisionomia revelava tão ao vivo os sentimentos que exprimia com a palavra, que a nossa atenção estava presa, e nenhum de nós se atrevia a interrompe-lo.

Depois prosseguiu, enxugando a fronte suada:

“— Foi uma noite infernal! Todos os prazeres, todos os sonhos, todas as doces agonias, tudo experimentei naquela noite de febre e delírio!

“Ela sentia! Naqueles estremecimentos, naqueles espasmos soluçados, naquelas contorções do gozo arfava-lhe o seio túmido, e os ossos estalavam-lhe nas vibrações da sensualidade. Ao recebe-la nos braços estava pálida e fria. Depois... a febre incendera-se, formara-se a vida, fervera o sangue e o cadáver gozava.

“Era uma cobra que se enroscava nas sensações cruentas do prazer, e que sugava a vida no próprio veneno que nos consumia a ambos! Quando, lânguido e exausto, seu corpo desprendeu-se dos meus braços, e a cabeça rolou-lhe no travesseiro, quis com os lábios sedentos ainda cevar nos lábios dela os últimos ressalvos de volúpia. Nesse momento, porém, desprendeu-se o véu de um dos candelabros, e ao clarão, que de súbito iluminou o aposento, vi de novo. pronunciados, distintos, em vez daqueles lábios quentes e úmidos de lascívia, os amargurados e descorados lábios da máscara de gesso; em vez daquele semblanle divino, de olhos lânguidos e negros, o semblante lívido e olhos cavados da máscara do cadàver!

“Ergui-me horrorizado e fugi.

“No dia seguinte despertei em minha casa. De nada me recordava. Sentia apenas o corpo cansado e o semblante pálido e desfeito. Querendo ver a hora, em vão procurei o meu relógio. Ou me o haviam roubado, ou eu o tinha perdido.

“Dirigi-me à outra sala, onde havia um pêndulo. Estava parado, e o ponteiro marcava as doze horas.

“Então acudiu-me de súbito à memória toda a ocorrência da noite antecedente. Vesti-me e saí. No caminho encontrei o escultor meu amigo.

“— Aquela mulher é morta? – foi a minha primeira pergunta.

Querino parou, fitou-me com sorriso irônico que lhe é habitual, e por sua vez me perguntou:

“— Que mulher?

“— A da máscara de ontem.

“— Ah! Pois como queres que te o diga?

“— Mas tens a convicção de que ela morreu?

“— Afirmo-lhe que sim. Há seis meses. Eu próprio moldei a máscara que viste.

“— Pois eu afirmo-te que te enganas!
 
“— Oh! – exclamou o escultor encarando-me admirado. E que razões tens para afirma-lo?

“— Vi-a ontem.

“— Viste-a?

“— Ainda mais: passei a noite em seus braços.

“Querino olhou-me fixamente, sorriu com desdém, encolheu os ombros e afastou-se lentamente, murmurando:

“— Estás doido!

“Tinha ele dado alguns passos quando o tornei a chamar. Aproximei-me e perguntei-lhe:

“— Diga-me uma coisa. Onde morava? Aonde foste tirar-lhe a máscara?

“—A casa onde ela morreu, na rua dos Inválidos.

“— Oh! Então não morreu, é ela!

“— Decididamente estás doido – repetiu Querino.

“A opinião que ele formava de meu espírito não me ofendia. De nenhuma informação mais eu carecia. Deixei-o, pois, e segui para a rua dos Inválidos. Ao chegar à casa, onde passara a noite, deparei com a porta fechada. Bati. Ninguém me respondeu.

“Um homem que passava fez-me ver que a casa estava para alugar, chamando-me a atenção para os escritos que tinha às janelas, e que na minha perturbação eu não vira. Um outro escrito na porta indicou-me onde estava depositada a chave. Guardava-a um padeiro da vizinhança.

“Dirigi-me a ele e perguntei-lhe pela pessoa que na véspera morava ali. Respondeu-me que a casa achava-se vazia havia seis meses. Insisti; ele persistiu. Fiz-lhe ver que eu passara a noite lá. O homem sorriu compadecidamente e voltou-me costas.

“Pedi-lhe então a chave, e ele não só me a entregou, como acompanhou-me à casa. Subimos. Em uma grande sala, que ficava no centro da casa, reconheci aquela onde passara a noite. Somente estava despida de móveis.

“A duvida, porém, não podia subsistir, nem para mim, nem para o padeiro. No chão, em meio do aposento, no lugar onde deveria ter estado o leito, deparamos com o meu relógio. O relógio, para mais convencimento nosso, estava trabalhando. Apenas os ponteiros tinham ficado fixos na hora da meia-noite.

“Saí dali verdadeiramente louco e dirigi-me à casa. Mais tarde ganhou-me uma febre impetuosa, e pela manhã do dia seguinte eu estava morto!”

Quando Estanisláo pronunciou esta ultima palavra quisemos rir. Mas seu semblante revestira tal aspecto cadavérico, que nos contivemos e instintivamente recuamos dele, aproximando-nos um dos outros.

Depois de gozar por alguns momentos ainda da nossa estupefação, o ator soltou estrepitosa gargalhada, acrescentando:

— Não se assustem: foi um sonho. De real em tudo isto há apenas a máscara de gesso.

Fonte:
Diversos Autores. Mosaico n.2. Rio de Janeiro: Typ. Academica, agosto 1873.

Estante de Livros (O Homem que Adivinhava, de André Carneiro)


(texto de Marcello Simão Branco)
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Lançado originalmente em 1966.

André Carneiro faleceu em novembro de 2014, em Curitiba e nos deixou uma obra das mais significativas dentro da ficção científica brasileira. Muito atuante ainda antes de seu ingresso na FC, como jornalista e poeta, Carneiro tornou-se a partir dos anos 1960 no principal nome do gênero no país, e o mais publicado e reconhecido no exterior.

Três obras estabeleceram sua reputação a partir desta época. As coletâneas  O Diário da Nave Perdida (1963) e O Homem que Adivinhava (1966), ambas publicadas pela editora EdArt, e seu ensaio pioneiro Introdução ao Estudo da “Science-Fiction”, de 1967.

Em O Homem que Adivinhava, o autor retoma alguns dos temas de seu interesse já vistos em Diário da Nave Perdida. Mas longe estão de meras variações sobre os mesmos temas, pois ele os explora sob novos ângulos e pontos de vista, sobretudo a questão da incompreensão entre as pessoas e as várias formas com que essa incompreensão se manifesta.

A ficção científica de André Carneiro é sobretudo humanista, preocupada com os impactos que a ciência e a tecnologia podem ter sobre a sociedade e a cultura. Em O Homem que Adivinhava, somos expostos a níveis refinados de observações sobre a condição humana, mostrando mais uma vez como o autor é um crítico sensível sobre a ambiguidade do comportamento humano.

A coletânea apresenta oito histórias que se equilibram em termos de qualidade, o que é difícil em se tratando de um conjunto de trabalhos tão diferentes entre si. Talvez porque, além da semelhança no subtexto das narrativas, a prosa seja segura, fluente, com um estilo já maduro quando o autor tinha 46 anos, e que seria ainda mais desenvolvido nas décadas posteriores — ainda que o rico impacto de suas ideias e reflexões tenha obtido melhor resultado no conto e na novela, do que nos seus dois romances, Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991).

A questão principal que permeia os contos de O Homem que Adivinhava são as dificuldades de comunicação, relacionamento e compreensão entre as pessoas. Se é verdade que esta dimensão ganharia contornos ainda mais complexos na sua coletânea Confissões do Inexplicável (2007), livro de notável riqueza psicológico-existencial, já nos anos 1960 Carneiro possuía pleno domínio da palavra e do que queria transmitir ao leitor ao contar-lhe uma história.

Alguns contos são aparentemente esquemáticos, como “Um Casamento Perfeito”, “Um Caso de Feitiçaria”, “Planetas Habitados” e “O Relatório Secreto”, mas a previsibilidade das ações não esconde o tratamento sutil a respeito das situações humanas, nem a afirmativa de que a vida moderna e tecnológica, ou a busca e a prática de rituais sobrenaturais, não conduzem à felicidade ou paz interior às pessoas. Ou então, que o que consideramos como certo ou normal guarda estreita — e nem sempre aceita — relação com um certo relativismo moral, trazendo ao primeiro plano virtudes esquecidas ou subestimadas, como humildade ou modéstia em relação tanto ao desconhecido no plano externo (“Planetas Habitados”), quanto no interno à mente (“O Relatório Secreto”), também deixando nas entrelinhas que não devemos nos levar tão a sério.

Duas histórias abordam mais de perto a questão do preconceito e desajuste social. Em “O Homem que Adivinhava”, um sujeito tem o dom da clarividência — enxerga o futuro de outras pessoas, mas isto acaba por conduzi-lo ao caminho fácil e traiçoeiro da fama rápida. Da mesma forma que as pessoas o bajulam, também o discriminam quando seus poderes começam a falhar. Já em “O Mudo”, o talento que diferencia o protagonista é mais sutil e mesmo discutível. Ele não fala e não ouve, mas tem uma sensibilidade apurada em lidar com as plantas. Vive num mundo marginalizado e particular, até que se apaixona e descobre o que as pessoas verdadeiramente pensam dele. As duas histórias trabalham com o preconceito da sociedade e a dificuldade dos personagens em lidar com suas diferenças; e Carneiro não é nem um pouco otimista quanto aos desdobramentos.

Duas noveletas estão mais próximas de temas tradicionais da ficção científica: “A Espingarda”, uma história de pós-holocausto nuclear, e “A Invasão”, sobre o contato com seres extra-terrestres.

“A Invasão” é uma curiosa história de fc ufológica e mostra como seria a reação da imprensa, dos políticos, dos militares, das pessoas do povo e dos cientistas ante a aterragem de dois gigantescos discos voadores numa floresta. O país destinatário do contato é Calamar, nome de um Brasil fictício, que não por coincidência vive sob uma ditadura militar. Assim, o autor pode se sentir mais livre para criticar a falta de transparência, a censura e a truculência dos militares no poder, e, sob o caos, lidar com um evento de interesse a toda a humanidade. O texto é narrado como se fosse apresentado em recortes, com flagrantes de comentários e noticiosos a respeito do evento, e mostra novamente como a questão do preconceito e da luta pelo poder está enraizada no comportamento das pessoas, ainda mais numa circunstância tão especial.

Carneiro é mais feliz, porém, com “A Espingarda”, um dos melhores textos de sua carreira. Incluída em Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica, antologia organizada por Roberto de Sousa Causo em 2007, é um relato angustiante sobre um sobrevivente do pós-holocausto que vaga à procura de comida, abrigo e, sobretudo, companhia humana, que resgate algum sentido à sua vida. A certa altura ele encontra uma pessoa, mas o contato não é pacífico, pois o outro vive cercado em uma casa de muros altos e brada para que o visitante vá embora, pois ele teria trazido a praga do sul do país. Como notou M. Elizabeth Ginway (in Ficção Científica Brasileira; 2005), há uma referência sutil à clivagem entre o Sul desenvolvido e industrializado e o Norte miserável e rural. Embora o Brasil tenha mudado desde então, a desigualdade regional continua significativa.

“A Espingarda” é um flagrante de um mundo que se desfez e deixou apenas restos aos sobreviventes. Tanto é que a imagem do homem com sua espingarda e a estrada como destino, não comunica um sentido de esperança, mas antes de solidão e incerteza sobre o que virá.

Publicado há 49 anos, O Homem que Adivinhava foi premiado como “Livro do Ano”, pela Câmara Municipal de São Paulo em 1966, e ilustra o destaque que o autor trouxe à fc brasileira, ao mostrar que, se realizada como literatura de qualidade, a questão do preconceito literário recua a um plano secundário. Ainda mais se o autor reflete de forma despojada e madura sobre temas importantes da condição humana, seja em que época, conjuntura tecnológica ou tipo de sociedade que estivermos inseridos.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Versejando 76

 

Martins Pena (Minhas aventuras numa viagem nos ônibus)

Depois de um baile, o que eu gosto mais é de uma viagem nos ônibus. Lá, como em marmota animada, veem-se cenas sérias, ridículas, engraçadas, enfim tudo que pode acontecer entre pessoas de diferentes condições. O modesto cruzado faz o que não tem podido fazer a imensidade de livros e sermões, pois nivela as condições, e estabelece uma completa igualdade entre todas as pessoas que o possuem e querem fazer uma viagem nos ônibus. Abençoados ônibus!

Fiquei tão entusiasmado que estou quase fazendo uma minuciosa pintura deles... porém, não; isto levaria muito tempo; vou antes dar a relação da minha última viagem.

Eu fui um domingo pela manhã às Laranjeiras com a intenção de voltar à tarde em um ônibus, assim o fiz. Às 6 horas já eu caminhava para comprar o meu bilhete, porém o ônibus ainda não tinha chegado, e eu tive de esperar com mais dois sujeitos que lá estavam.

"Ó compadre, dizia um deles para o outro, o ‘ônis’ não chega, já é muito tarde, e a comadre já deve estar arrenegada."

"Não faça caso... Oh! Ele ali vem!"

O compadre tinha razão, o ônibus vinha chegando.

"É desaforo! — dizia um deles — estas surpresas (empresas) públicas devem ter horas certas, e não fazerem a gente esperar. Há mais de um quarto de hora já nós devíamos estar assentados!"

Enfim o ônibus chega, e cada um de nós comprou o seu bilhete. Depois que as pessoas que vinham dentro saíram, eu e os dois compadres entramos, e nos assentamos. Daí a cinco minutos chegou uma bela menina acompanhada de seu paizinho, e fui tão feliz que ela se assentou junto de mim. Oh! Que deliciosa coisa é estar no ônibus assentado junto de uma bela moça! sobretudo quando ela não traz chapéu!!...

Em menos de dez minutos o ônibus estava com as pessoas que podia levar, e entre elas (ainda me lembra com zanga) estava um rapaz que me pareceu o namorado da minha vizinha, e que se tinha assentado defronte dela. Eu estive quase furando-lhe os olhos com a bengala, porém contive-me.

Já íamos principiar a nossa viagem, quando vimos um embrulho rolando pela estrada em direção a nós, e em pouco tempo percebemos que era uma pobre mulher gorda como uma baleia, que corria a botar os bofes pela boca, para poder achar ainda um bilhete. Coitadinha! Ficou lograda! Que caretas que fez! Como eu tive pena dela, aconselhei-a que viesse rolando até a cidade, e em troco deste bom conselho deu-me uma descompostura formal. E deem lá conselhos!

"O Senhor Juca ainda não pagou", disse o recebedor, dirigindo-se para o namorado de minha vizinha.

"Aqui está o dinheiro!", e puxando por uma nota de 5$ que ele teve o cuidado de fazer que a sua amada visse, entrega ao recebedor.

"Eu já lhe dou o troco."

"Não é preciso, não é preciso, eu não faço caso de 5$." E depois de mostrar este heroico desprezo, olhou impavidamente para a sua amada. Bravo, bravíssimo, disse eu, isto vai às mil maravilhas! Assim é que se namora!

Por mais esforços que fizesse o recebedor para que o nosso namorado recebesse o troco, não foi possível.

Enfim partimos com grande satisfação dos dois compadres, e ainda não tínhamos dado vinte passos, quando o ônibus passando por uma vala deu um forte salto, e a minha vizinha com o solavanco caiu por cima de mim! Se eu fosse administrador dos ônibus, mandava fazer valas por todo o caminho, e morava dentro de um deles.

Logo que principiamos a nossa viagem, eu senti que me pisavam o pé, Em princípio pensei que seria acaso, porém eu recuava o meu pé, e o outro acompanhava-o sempre pisando. Por fim, estando já um pouco zangado com a teima, olho e vejo que era o nosso namorado que porfiava a pisar no meu pé, pensando pisar no da sua amada! Na verdade, tive vontade de dar uma risada, porém achei que era mais divertido desfrutá-lo um pouco, e logo que tive esta ideia, arrumo o pé que estava livre em cima do pé do sujeito. Oh! se vissem o prazer que brilhou nos seus olhos! Ele fazia trejeitos, revirava os olhos, lambia os beiços, enfim todas as asneiras que é capaz de fazer um namorado. O brinquedo já não me ia agradando muito, porque os calos principiavam a doer-me, e o namorado, achando pouca sensibilidade no pé, pisava cada vez mais forte. Por fim, já não podendo aturá-lo por ter machucado o meu melhor calo, disse-lhe muito arrebatadamente: "O senhor pretende alguma coisa? Se me quer falar, não é preciso pisar-me."

Todos olhavam espantados para mim, o sujeitinho ficou branco como a cal, e a minha vizinha olhou para mim com tanta raiva que quase lhe disse: “Minha bela senhora, ainda que eu tenha muita sensibilidade nos pés, pode pisar neles todas as vezes que quiser.” Porém como não queria envergonhá-la, e como também o paizinho já olhava de través para mim, calei-me, e no meio de seus arrufos, e das ameaças que me fazia o namorado, chegamos ao Largo do Machado. Aí principiou uma contestação entre os dois compadres.

"Ó compadre", dizia um deles apontando para uma bandeira holandesa que estava em um mastro, "sabes que bandeira é aquela?"

"Sei, respondeu o outro, é bandeira francesa."

"Pois não é! A bandeira francesa é perpendicular, e esta é às avessas."

"Às avessas! Ah! Ah! Essa não é má! – replica-lhe o outro - Assim não é que se diz, compadre. Você deve dizer: a bandeira francesa é perpendicular, e a holandesa oriental (horizontal)."

Uma risada geral apoderou-se de todas as pessoas que vinham no ônibus, e os dois compadres, desconfiando, por isso saíram, e continuaram a sua viagem a pé, fazendo deste modo esperar a comadre.

"Para! para!" gritaram de uma porta na Rua do Catete. O ônibus para, e entra uma mulher velha e feia como uma bruxa. Ela se assenta a meu lado, mas enfim havia compensação, se tinha uma velha de um lado, tinha uma moça de outro.

"O senhor gasta?" diz-me a velha puxando pela manga de minha casaca.

Eu calado.

"O senhor tem tabaco?" torna a insistir a bruxa.

Ora, como desta vez eu podia mostrar a minha vizinha que eu não era nenhum tolo, e que sabia meu bocado de francês, respondo em voz alta: Je n'en ai pas.

"Eu não peço jenipapo, eu peço tabaco", responde-me a velha.

Desta vez fui o alvo das risadas, O nosso namorado, achando ocasião de vingar-se, ria como um doido, e a minha vizinha fazia coro.

No meio destes e outros muitos acidentes, chegamos ao Largo do Rocio. Cada um tomou para seu lado. A minha ex-vizinha deu o braço ao paizinho, e encaminharam-se para a Rua dos Ciganos, e o namorado, que tinha talvez que fazer, e não podia acompanhá-la, ficou olhando com olhos de lula, até que ela desapareceu.

Eu fui para casa, jurando passear nos ônibus todas as vezes que pudesse.

Fonte:
Periódico Correio das Modas. Rio de Janeiro, RJ: 26 de janeiro 1839, pp. 30-32. Disponível em O Poeteiro.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVIII

“CLAREIA CINZENTA A NOITE DE CHUVA”

 
Clareia cinzenta a noite de chuva,
Que o dia chegou.
E o dia parece um traje de viúva
Que já desbotou.

Ainda sem luz, salvo o claro do escuro,
O céu chove aqui,
E ainda é um além, ainda é um muro
Ausente de si.

Não sei que tarefa terei este dia;
Que é inútil já sei...
E fito, de longe, minha alma, já fria
Do que não farei.
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“COMEÇA, NO AR DA ANTEMANHÔ
 
Começa, no ar da antemanhã,
A haver o que vai ser o dia.
É uma sombra entre as sombras vã.
Mais tarde, quanto é a manhã
Agora é nada, noite fria.

É nada, mas é diferente
Da sombra em que a noite está;
E há nela já a nostalgia
Não do passado, mas do dia
Que é afinal o que será.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“COMO ÀS VEZES NUM DIA AZUL E MANSO”
 
Como às vezes num dia azul e manso
No vivo verde da planície calma
Duma súbita nuvem o avanço
Palidamente as ervas escurece
Assim agora em minha pávida alma
Que súbito se evola e arrefece
A memória dos mortos aparece…
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“COMO É POR DENTRO OUTRA PESSOA”
 
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
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“COMO NUVENS PELO CÉU”
 
Como nuvens pelo céu  
Passam por mim.
Nenhum dos sonhos é meu  
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transforma?
Que coisa inútil me dói?

Figueiredo Pimentel (A Princesa dos Cabelos de Ouro) parte III, final

 III – NOVAS FAÇANHAS DO PAJEM FORMOSO

– Consentirei em me casar com o príncipe Frederico, se me trouxeres um pouco da água da gruta Tenebrosa. É uma gruta que existe perto daqui, com dez léguas de circunferência; sua entrada é guardada por dois dragões que impedem a aproximação de qualquer mortal, deitando fogo pela boca e pelos olhos, de sorte que não pode escapar da morte quem se aventura a ali penetrar. Quando se desce à gruta vê-se a duzentos passos um único buraco, que é ao mesmo tempo entrada e saída. Esse buraco está cheio de serpentes, cobras, lacraias, em suma, toda a espécie de bichos venenosos. No fundo dele é que está a fonte da Beleza e da Saúde. É essa água que eu quero. Quem se lavar com ela se é velho, fica moço; se é doente, são; se é feio, torna-se bonito; e se é bonito torna-se lindo como os amores. Compreendes, Formoso, que não posso deixar meu reino sem ter essa água. Vai e traze-me um frasco cheio dela.

– Princesa, disse o pajem, sois tão bela que esta água vos é inútil. No entretanto, seja feita a vossa vontade: irei buscar o que deseja embora na certeza de não voltar.

A princesa dos Cabelos de Ouro, não mudou de resolução e o pajem partiu no dia seguinte em direção à gruta.

Sabendo do destino que levava, dizia toda a gente:

– É pena que um moço tão bonito, tão amável, vá à fonte dos Dragões. Nem que fossem mil soldados cada qual mais valente, lá ficariam, quanto mais ele, que vai só. Para que anda a princesa a pedir impossíveis?

O pajem, entretanto, caminhava sempre. Chegando ao alto de uma montanha, sentou-se para descansar. Deixou o cavalo pastando e Sultão começou a seguir alguns pássaros. Formoso sabia que a gruta era por ali perto, e olhava para ver se distinguia alguma coisa.

Descobriu afinal um rochedo, negro como tinta de onde saía fumaça. Após dois minutos, viu um dragão que deitava fogo pelas goelas, com o corpo malhado de preto e amarelo, e uma grande cauda que se enroscava numa infinidade de voltas.

O cachorrinho latiu, assim que avistou tão medonho bicho, e não sabia onde se esconder, tanto era o medo que tinha.

O pajem, estando resolvido a morrer, apanhou a garrafa que a princesa lhe dera para encher. Com a outra mão segurou na espada, dirigiu-se para a entrada da gruta, e disse ao cãozinho:

– Tudo está acabado para mim. Nunca poderei apanhar esta água, guardada por dois dragões. Quando eu morrer, meu leal Sultão, enche a garrafa com o meu sangue, e leva-o à princesa, para que ela veja quanto custou o seu capricho. Volta em seguida para o reino do nosso senhor e conta-lhe a minha desgraça.

Havia apenas acabado de proferir tais palavras, quando ouviu:

– Formoso, Formoso!

– Quem me chama? indagou. Olhando em torno viu por acaso no buraco de uma velha árvore, uma coruja, que lhe disse:

– Há tempos livraste-me de um laço que caçadores me tinham armado. Salvaste-me a vida. Quero te pagar essa dívida. Dá-me a garrafa que irei buscar a água da fonte da Beleza e da Saúde.

Formoso deu-lha, e, em menos de um quarto de hora, viu a coruja de volta com o vaso cheio.

Montou a cavalo, e apressadamente cavalgou para o palácio da princesa, depois de agradecer muitíssimo ao pássaro aquele favor que lhe fizera, livrando-o da morte.

Apresentou à moça a garrafa; e ela agradecendo, deu ordem para que se preparasse tudo para a sua viagem.
***
No entanto a princesa achava Formoso cada vez mais amável, e dizia:

– Se quisesses eu te teria feito rei, e não teríamos partido do nosso reino.

Ele, porém, respondia:

– Nem por todos os reinos da terra, eu seria capaz de trair meu amo, conquanto vos considere mais linda que o sol.

Passados alguns dias, a comitiva chegou, enfim à grande cidade do rei Frederico, que sabendo da vinda da princesa dos Cabelos de Ouro, foi ao encontro, levando os mais belos e ricos presentes do mundo.

Semanas após, casou-se o rei com a princesa. A moça, entretanto, que amava Formoso do fundo de seu coração, só estava satisfeita quando o via, e vivia sempre a louvá-lo.

– Eu não seria tua esposa, Frederico, se não fosse Formoso, que fez coisas impossíveis. Por minha causa, deves ser-lhe grato. Se não fosse a sua intrepidez, eu não possuiria a Água da Beleza por meio da qual nunca envelhecerei, e serei eternamente bela.

Os intrigantes, que ouviram a rainha, disseram um dia ao rei:

– Vossa real majestade não é ciumento, e tem contudo bastante motivos para o ser: a rainha gosta tanto de Formoso, que não come no dia que não o vê. Elogia-o a todo o momento; diz que lhe deve muitas obrigações; que ele é um herói como se outro qualquer que fosse designado a embaixada não fizesse tanto como ele.

– Na verdade, previno-me a tempo. Prendam-no na torre com ferros nos pés e nas mãos, ordenou ele.

Os intrigantes e invejosos, que não viam com bons olhos as atenções e honras que os soberanos prestavam a Formoso, apressaram-se em cumprir a ordem real.

Encarcerado nos lôbregos e úmidos subterrâneos da torre, Formoso vivia isolado e esquecido, exceto pelo carcereiro que, assim mesmo, lhe atirava por um buraco um pão duro e lhe dava água numa caneca de ferro.

Todavia, Sultão, o seu fiel cão, não o abandonou. Todos os dias vinha visitá-lo, e contava-lhe as novidades ocorridas no palácio.

Quando a princesa soube da desgraça que acontecera ao pajem, lançou-se aos pés do rei, pedindo o perdão do corajoso mancebo. Frederico, porém, enfurecido pela proteção de sua mulher ao pajem. maltratava cada vez mais o pobre moço.

Torturado de ciúmes, julgando que não era bonito, a ponto de não saber fazer-se amar pela esposa, o rei resolveu lavar o rosto com a preciosa água da Fonte da Beleza, que se achava numa garrafa sobre a toilette da rainha, onde ela própria a guardava, para melhor a vigiar.

Aconteceu, porém, que uma das criadas, indo uma vez espanar o lavatório, desastradamente atirou a garrafa ao chão, quebrando-a, e perdendo assim todo o precioso líquido.

Amedrontada, foi aos aposentos do rei Frederico, e apanhou uma garrafa, em tudo semelhante à que quebrara e substituiu-a.

A água que essa outra encerrava tinha a particularidade de matar a pessoa que lavasse o rosto com ela.

Frederico, que não sabia da troca feita pela criada, lavou-se na água e morreu pouco depois.

O cãozinho, assim que soube da morte do rei, chegou perto da rainha e disse-lhe:

– Linda rainha, não vos esqueçais do pobre Formoso.

A rainha, lembrando-se das penas e maldades que por sua causa o pajem sofrera, correu à torre, e com as suas próprias mãos tirou os ferros que torturavam o pajem.

Depois, colocando-lhe uma coroa de ouro sobre a cabeça e o manto real sobre os ombros, exclamou:

– Vem, amável Formoso, faço-te rei e tomo-te para meu esposo.

Os invejosos e perversos cortesãos que tanto haviam intrigado o ex-pajem, foram condenados à pena última, e subiram à forca.

Um ano depois, findo o luto, a princesa dos Cabelos de Ouro celebrava o seu casamento com o valente Formoso, realizando-se imponentes festejos que duraram sete dias e sete noites, toda uma semana de folguedos, luminárias, bailes públicos, espetáculos gratuitos, e mil festejos diversos.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.