quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Figueiredo Pimentel (A Princesa dos Cabelos de Ouro) parte III, final

 III – NOVAS FAÇANHAS DO PAJEM FORMOSO

– Consentirei em me casar com o príncipe Frederico, se me trouxeres um pouco da água da gruta Tenebrosa. É uma gruta que existe perto daqui, com dez léguas de circunferência; sua entrada é guardada por dois dragões que impedem a aproximação de qualquer mortal, deitando fogo pela boca e pelos olhos, de sorte que não pode escapar da morte quem se aventura a ali penetrar. Quando se desce à gruta vê-se a duzentos passos um único buraco, que é ao mesmo tempo entrada e saída. Esse buraco está cheio de serpentes, cobras, lacraias, em suma, toda a espécie de bichos venenosos. No fundo dele é que está a fonte da Beleza e da Saúde. É essa água que eu quero. Quem se lavar com ela se é velho, fica moço; se é doente, são; se é feio, torna-se bonito; e se é bonito torna-se lindo como os amores. Compreendes, Formoso, que não posso deixar meu reino sem ter essa água. Vai e traze-me um frasco cheio dela.

– Princesa, disse o pajem, sois tão bela que esta água vos é inútil. No entretanto, seja feita a vossa vontade: irei buscar o que deseja embora na certeza de não voltar.

A princesa dos Cabelos de Ouro, não mudou de resolução e o pajem partiu no dia seguinte em direção à gruta.

Sabendo do destino que levava, dizia toda a gente:

– É pena que um moço tão bonito, tão amável, vá à fonte dos Dragões. Nem que fossem mil soldados cada qual mais valente, lá ficariam, quanto mais ele, que vai só. Para que anda a princesa a pedir impossíveis?

O pajem, entretanto, caminhava sempre. Chegando ao alto de uma montanha, sentou-se para descansar. Deixou o cavalo pastando e Sultão começou a seguir alguns pássaros. Formoso sabia que a gruta era por ali perto, e olhava para ver se distinguia alguma coisa.

Descobriu afinal um rochedo, negro como tinta de onde saía fumaça. Após dois minutos, viu um dragão que deitava fogo pelas goelas, com o corpo malhado de preto e amarelo, e uma grande cauda que se enroscava numa infinidade de voltas.

O cachorrinho latiu, assim que avistou tão medonho bicho, e não sabia onde se esconder, tanto era o medo que tinha.

O pajem, estando resolvido a morrer, apanhou a garrafa que a princesa lhe dera para encher. Com a outra mão segurou na espada, dirigiu-se para a entrada da gruta, e disse ao cãozinho:

– Tudo está acabado para mim. Nunca poderei apanhar esta água, guardada por dois dragões. Quando eu morrer, meu leal Sultão, enche a garrafa com o meu sangue, e leva-o à princesa, para que ela veja quanto custou o seu capricho. Volta em seguida para o reino do nosso senhor e conta-lhe a minha desgraça.

Havia apenas acabado de proferir tais palavras, quando ouviu:

– Formoso, Formoso!

– Quem me chama? indagou. Olhando em torno viu por acaso no buraco de uma velha árvore, uma coruja, que lhe disse:

– Há tempos livraste-me de um laço que caçadores me tinham armado. Salvaste-me a vida. Quero te pagar essa dívida. Dá-me a garrafa que irei buscar a água da fonte da Beleza e da Saúde.

Formoso deu-lha, e, em menos de um quarto de hora, viu a coruja de volta com o vaso cheio.

Montou a cavalo, e apressadamente cavalgou para o palácio da princesa, depois de agradecer muitíssimo ao pássaro aquele favor que lhe fizera, livrando-o da morte.

Apresentou à moça a garrafa; e ela agradecendo, deu ordem para que se preparasse tudo para a sua viagem.
***
No entanto a princesa achava Formoso cada vez mais amável, e dizia:

– Se quisesses eu te teria feito rei, e não teríamos partido do nosso reino.

Ele, porém, respondia:

– Nem por todos os reinos da terra, eu seria capaz de trair meu amo, conquanto vos considere mais linda que o sol.

Passados alguns dias, a comitiva chegou, enfim à grande cidade do rei Frederico, que sabendo da vinda da princesa dos Cabelos de Ouro, foi ao encontro, levando os mais belos e ricos presentes do mundo.

Semanas após, casou-se o rei com a princesa. A moça, entretanto, que amava Formoso do fundo de seu coração, só estava satisfeita quando o via, e vivia sempre a louvá-lo.

– Eu não seria tua esposa, Frederico, se não fosse Formoso, que fez coisas impossíveis. Por minha causa, deves ser-lhe grato. Se não fosse a sua intrepidez, eu não possuiria a Água da Beleza por meio da qual nunca envelhecerei, e serei eternamente bela.

Os intrigantes, que ouviram a rainha, disseram um dia ao rei:

– Vossa real majestade não é ciumento, e tem contudo bastante motivos para o ser: a rainha gosta tanto de Formoso, que não come no dia que não o vê. Elogia-o a todo o momento; diz que lhe deve muitas obrigações; que ele é um herói como se outro qualquer que fosse designado a embaixada não fizesse tanto como ele.

– Na verdade, previno-me a tempo. Prendam-no na torre com ferros nos pés e nas mãos, ordenou ele.

Os intrigantes e invejosos, que não viam com bons olhos as atenções e honras que os soberanos prestavam a Formoso, apressaram-se em cumprir a ordem real.

Encarcerado nos lôbregos e úmidos subterrâneos da torre, Formoso vivia isolado e esquecido, exceto pelo carcereiro que, assim mesmo, lhe atirava por um buraco um pão duro e lhe dava água numa caneca de ferro.

Todavia, Sultão, o seu fiel cão, não o abandonou. Todos os dias vinha visitá-lo, e contava-lhe as novidades ocorridas no palácio.

Quando a princesa soube da desgraça que acontecera ao pajem, lançou-se aos pés do rei, pedindo o perdão do corajoso mancebo. Frederico, porém, enfurecido pela proteção de sua mulher ao pajem. maltratava cada vez mais o pobre moço.

Torturado de ciúmes, julgando que não era bonito, a ponto de não saber fazer-se amar pela esposa, o rei resolveu lavar o rosto com a preciosa água da Fonte da Beleza, que se achava numa garrafa sobre a toilette da rainha, onde ela própria a guardava, para melhor a vigiar.

Aconteceu, porém, que uma das criadas, indo uma vez espanar o lavatório, desastradamente atirou a garrafa ao chão, quebrando-a, e perdendo assim todo o precioso líquido.

Amedrontada, foi aos aposentos do rei Frederico, e apanhou uma garrafa, em tudo semelhante à que quebrara e substituiu-a.

A água que essa outra encerrava tinha a particularidade de matar a pessoa que lavasse o rosto com ela.

Frederico, que não sabia da troca feita pela criada, lavou-se na água e morreu pouco depois.

O cãozinho, assim que soube da morte do rei, chegou perto da rainha e disse-lhe:

– Linda rainha, não vos esqueçais do pobre Formoso.

A rainha, lembrando-se das penas e maldades que por sua causa o pajem sofrera, correu à torre, e com as suas próprias mãos tirou os ferros que torturavam o pajem.

Depois, colocando-lhe uma coroa de ouro sobre a cabeça e o manto real sobre os ombros, exclamou:

– Vem, amável Formoso, faço-te rei e tomo-te para meu esposo.

Os invejosos e perversos cortesãos que tanto haviam intrigado o ex-pajem, foram condenados à pena última, e subiram à forca.

Um ano depois, findo o luto, a princesa dos Cabelos de Ouro celebrava o seu casamento com o valente Formoso, realizando-se imponentes festejos que duraram sete dias e sete noites, toda uma semana de folguedos, luminárias, bailes públicos, espetáculos gratuitos, e mil festejos diversos.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

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