O faustoso sultão de Kambalu, Abbas I, que tinha por avós, em linha direta, Manuel José Fernandes, de Trás-os-Montes, reino de Portugal, e Japira, índia de nação potiguara, a qual nação habitou antigamente o império do Brasil e desapareceu, à vista da penúria do seu povo e da fome e da peste que o dizimavam, resolveu certo dia reunir em conclave as pessoas mais graduadas do reino, fossem elas de que credo fossem, professassem as teorias que professassem, a fim de se aconselhar e resolver a situação. Vieram um bispo, um mago oriental, um sábio doutor em medicina, uma cartomante, um jurista, um engenheiro e um brâmane.
Abbas I assim falou, abrindo a sessão:
— Meus senhores: todos sabeis o motivo da nossa reunião. É a dor e a piedade pelo meu querido povo que me movem a pedir-vos conselho para lhe dar lenitivo. Falai com franqueza que vos ouvirei com prazer. Falai!
O bispo levantou-se, fez o sinal-da-cruz, orou durante alguns minutos, contando as contas do rosário e começou:
— “Ad victum quae flagitat usus — Omnia jam mortalibus esse parata”. Precisamos de igrejas, conventos, recolhimentos — Majestade!
O Mago — Não concordo. A luz é tudo, de luz é feito o mundo e Deus. Precisamos mais luz elétrica.
O Doutor— Isto tudo é delírio; é pura paranoia, temperada com psicastenia, frenastenia. Na etiologia da peste há duas fases: primeira, a do aparecimento, dúbio, auroral, das auroras claras de maio, que é imperceptível; depois: manifestação ostensiva, horrível, de um belo horrível que só os médicos conhecem. Keats diz: "Our songs are...
O Engenheiro — Que diabo é isto? Uma encampação é mais útil…
A Cartomante — Vou deitar as cartas...
O Jurista — Cuidado com a polícia! O Código Penal, no seu livro V, art. 1824, parágrafo...
O Brâmane — Tudo o que vem de mim, o boi, a vaca...
Abbas I — Ora bolas! Vocês não me aconselham coisa alguma... São uns tagarelas aborrecidos. Vou decidir por mim; vou construir um palácio magnífico. Vão-se embora, e já!
Abbas I cumpriu a sua palavra. Cobriu o reino de impostos; mandou vir jaspe e ouro e mármore e pórfiro; contratou no estrangeiro hábeis arquitetos e operários e construiu o palácio, para enriquecimento de seu povo e extinção das moléstias que o dizimavam.
Acabada a construção, meteu-se nele. Daí a dias, porém, nem mais um criado tinha para servi-lo. Toda a gente do país havia morrido de fome e de moléstia; e ele veio também a morrer de fome porque não havia mais quem plantasse, quem colhesse, quem criasse, etc., etc.
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HÓSPEDE ILUSTRE
Todos os dias, anunciam as folhas a chegada de um hóspede ilustre, estampando-lhe algumas vezes o retrato. O Rio de Janeiro, se não está ficando o Instituto de França ou a Royal Society de Londres, pode bem ficar sendo o Museu do Trocadero.
Não me canso de ler tais notícias e causa-me assombro que semelhantes sumidades não figurem no Larousse e em outras publicações congêneres. Não vem isto, porém, ao caso. O que estas linhas tencionam é protestar contra a omissão que eles fizeram, do nome do ilustre marroquino Mulay Mâlek Ben-Bélek.
Ele vem superintender a construção do pavilhão de Marrocos que será erguido no estilo original daquele próspero império.
Os materiais empregados, como se sabe, são caniços e uma argamassa feita de bosta de camelo e lã de carneiro. Como aqui não havia camelos, portanto, o primeiro elemento da aludida argamassa, o imperador de Marrocos fretou um barco suíço e atestou-o daquele primordial elemento dos partenons dos seus domínios.
Vai ser uma lindeza, debaixo da féerie iluminativa que o senhora Carlos Sampaio contratou com os seus amigos americanos e vai nos custar os olhos da cara. Diz-se o mesmo que as experiências realizadas, no morro da Favela, mostraram de que forma mágica iluminações ianques transformam, em palácios de “Mil e uma Noites", cubatas africanas.
O emir Mulay Málek Ben-Bélek é especialista em agricultura. Ele já ensinou ao senhora Carlos a fazer brotar do caroço da uva, pés de algodão do mais estimável fio.
Além disto, conhece os outros gregos da mais alta antiguidade do que ele lê, não só em grego, como em árabe, tais como Aristóteles, Ptolomeu, Estrabão, etc. até dos propriamente árabes, persas e hindus.
Uma tal sabedoria está a indicá-lo para professor de “relatividade", na Escola Politécnica, ao lado das "Máquinas" do senhora Frontin.
O emir Mulay tem oitenta e três mulheres e cento e cinquenta concubinas. Não as trouxe por dois motivos: a) por não haver grande necessidade; b) porque supôs que, aqui, não houvesse carros "especiais" em que as suas mulheres e concubinas pudessem passear pela cidade, islamicamente enclausuradas como manda o Corão. Desconhecia que, entre nós, há os carros-fortes da polícia...
Este homem eminente, entretanto, segundo dizem, está disposto a fazer-se bufarinheiro (mascate), no Rio.
Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
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