quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 34, 35 e 36

O INTÉRPRETE


Certo homem chamado Loio era ouvido pelos amigos sobre questões que diziam respeito ao interesse comum, e emitia juízos acertados.

— O Loio é o nosso líder — diziam eles. — Cabeça fria está ali.

— E coração quente — rematavam outros. — Sabe o que se deve fazer e tem um sentimento muito forte de solidariedade.

O que tornava Loio querido e respeitado pela roda é que, no fundo, ele não fazia mais do que descobrir o que cada um desejava e não sabia dizer com clareza. Loio era intérprete.

Seu nome começou a ser apregoado fora do círculo de amigos como o de bom candidato para tudo: dirigente de empresa, senador, defensor público, presidente da Nuclebrás e até da República.

Sondado a respeito dessas possibilidades, Loio abanou a cabeça negativamente:

— Nada disso. Os amigos, eu entendo bem o que eles querem e traduzo. Mas é dificílimo entender aquilo com que vocês me acenam. E eu receio que, se chegasse a entender, sairia correndo o resto da minha vida para não me envolver nessas coisas. Com licença, estou ocupado. Até.
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O LOCUTOR ESPORTIVO

O locutor esportivo mais festejado em 1929 foi Anselmo Fioravanti, que não entendia de futebol e por isso inventava.

Sua estreia ao microfone gerou uma tempestade de protestos. Os ouvintes exigiam sua dispensa, mas o diretor da estação considerou que muitos outros se pronunciaram encantados com Anselmo, classificado como humorista de primeira água. Foi mantido, e sua atuação despertou sempre o maior sucesso. Jogo narrado por ele era muito mais fascinante do que a verdadeira partida.

Anselmo creditava o gol ao time cujo arco fora vazado. Trocava os nomes dos jogadores, invertia posições e fazia com que o clube derrotado empatasse ou ganhasse, conforme a inspiração do momento. Na verdade, ele não mentia. Apenas, ignorava as regras mais comezinhas do esporte e contava o que lhe parecia estar certo.

Torcedores e agremiações o tinham em alta conta, porque ele mantinha aceso o interesse pelo futebol. Os vencedores de fato não se magoavam com a informação contrária, pois a vitória era inquestionável. E os derrotados consolavam-se com o triunfo imaginário que ele generosamente lhes concedia.

De tanto assistir a jogos, um dia ele narrou corretamente um lance. Houve pênalti e Anselmo anunciou pênalti. Foi a sua desgraça. Nunca mais ninguém lhe prestou ouvidos, e Anselmo terminou os dias como gari em Vila Isabel.
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O PÃO DO DIABO

Espalhou-se no bairro a notícia de que Ludovico, ao partir o pão quando jantava, teria exclamado:

— Este é realmente o pão que o Diabo amassou.

O padeiro Romualdo sentiu-se ofendido em sua honra profissional e foi pedir satisfação. Ludovico não só confirmou o que dissera como aduziu:

— É também o Diabo que fabrica a sua farinha, Romualdo. Fique alerta e verá.

O padeiro não dormiu aquela noite. De madrugada, pé ante pé, entrou na padaria e surpreendeu um estranho ser que retirava os pães do forno, fazendo-os desaparecer e substituindo-os por outros que eram amassados na hora, feitos de uma farinha especial, com vago cheiro de enxofre.

Petrificado de espanto, Romualdo nada pôde fazer. Mesmo porque logo em seguida caiu duro no chão, onde foi encontrado ao amanhecer, e pouco a pouco recuperou a consciência.

Seu primeiro gesto foi pedir um pão e cheirá-lo. Cheirava natural, mas o padeiro não ousou prová-lo. Fechou o estabelecimento e sumiu no mundo.

Ludovico arrematou as instalações e passou a ser o padeiro do bairro, sem problemas.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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